O craque Marinho Chagas prenunciou a metrossexualidade de Cristiano Ronaldo e o descontrole de Edmundo Animal
“D-E-S-T-R-U-I-U tudo! Chiquinho, lateral esquerdo craque, craque, craque do Riachuelo, receba as nossas congratulações! É seu o troféu Motoradio de melhor jogador em campo, por unanimidade de votos!”, berrava Roberto Machado na cabine da rádio Nordeste AM, em Natal, no fim do empate de 1 a 1 entre o pequeno clube da periferia da capital potiguar e o ABC Futebol Clube. Era outubro de 1969. Quarenta e um anos depois, Francisco Chagas Marinho – o Marinho Chagas, nome que adotou desde aquela data e com o qual entrou para a história do futebol mundial – lembra de todas as frases do anúncio acima, impostando a voz e com o dedo em riste como se fosse o próprio locutor.
Trip o encontrou morando de favor na pousada de um amigo na praia de Ponta Negra, abalado pela perda recente do irmão mais velho e de uma irmã, três meses atrás. Com a morte do irmão, foram-se as poucas reservas financeiras que restavam. “Tudo que eu ainda tinha estava no nome dele. Agora os filhos vão tomar e eu não posso fazer nada”, lamenta.
A situação atual de Marinho em nada lembra o passado do “touro”, como o chamava o jornalista Franklin Machado, 66, à época comentarista e um dos votantes da eleição que premiava desde o começo dos anos 60 o craque das partidas de futebol profissional no Brasil com um rádio portátil movido a pilhas elétricas. “Marinho era indomável”, sentencia.
O Motoradio foi um rito de passagem para o moleque de 17 anos, peladeiro dos campos da Salgadeira e Sete Bocas, periferia à beira do mangue em Natal. Presenteado à mãe quando chegou em casa, o rádio foi o primeiro dos 47 com que foi agraciado Marinho Chagas ao longo de sua carreira.
CHAPÉU EM PELÉ
“Vamos ter cuidado com o galego. Dizem que é craque. E doido”, alertou Pelé ao time do Santos em 1972, na partida contra o Botafogo no Maracanã, em que se anunciava a estreia de Marinho como titular, recém-chegado do Náutico de Recife, -PE. “Quando vi Pelé em campo quase chorei.” Admiração, admiração, futebol à parte. No primeiro encontro dos dois “o doido” pôs o estádio abaixo com um chapéu que fez o rei perder o rumo. “No fim da partida ele veio até mim, apertou minha mão e disse: ‘Vê se me respeita, não vem com essa história de chapéu de novo, não, hein!’. Mandei ele tomar no cu e saí rindo.”
Era o segundo desaforo em menos de uma hora. Pouco antes, com o Botafogo perdendo por um gol, Jairzinho preparou a bola na entrada da área para bater a falta. Deu seis passos para trás e, dois antes de chutar, viu a pelota entrar no ângulo da trave pelos pés de Marinho, que lhe roubou a cobrança.“Ele ficou muito puto! ‘Porra, que merda é essa!’ Eu falei: ‘Bicho, vai tomar no cu, o gol tá feito!’.” Marinho garantiu o empate.
"João moreira salles lembra “de um gigante com cabelos de viking que parecia ser uma força da natureza”
Até vestir a camisa do Botafogo, Marinho ziguezagueou do Riachuelo para o ABC e o Náutico. Dois fatos marcaram a passagem pelo clube pernambucano. No fim de uma série de amistosos no Caribe, surpreendeu-lhe a aclamação de um rastafári que cantou no intervalo de uma partida no estádio de Kingston, Jamaica. No vestiário, Marinho recebeu, além de um abraço, uma proposta de escambo de Bob Marley, o tal cantor: três discos em troca da camiseta que vestiu na partida.
Pelas mãos de outro cantor, seis meses depois, Marinho chegou ao Botafogo. Aguinaldo Timóteo, acompanhando o time numa partida contra o Náutico, em Recife, lançou por telefone um ultimato ao presidente do clube: “Marinho Chagas! É um menino, um monstro, tem que ir para o Botafogo!”. Foi.
Casado e pai de um filho, Marinho chegou ao Rio de Janeiro em 1972, meses antes de levar a esposa, Lucia, então com 16 anos. A senha para a permissividade estava do outro lado da rua: o mítico “balança mas não cai”, condomínio onde moravam as mais assediadas morenas do Sargentelli e as chacretes. “No dia em que aluguei o apartamento, as três primeiras coisas que comprei foram um colchão, um fogão e um binóculo. Eu ficava na varanda vendo todas elas nuas”, conta rindo e emenda: “Até que um dia eu estava do lado de lá”. Instado a listar as beldades inesquecíveis com as quais se envolveu, Marinho não titubeia: Fátima Boa Viagem e Regina Polivalente, dançarinas do Chacrinha.
O Rio foi tanto a consagração quanto a perdição de Marinho Chagas. Ganhando dinheiro como nunca, fez jus ao alerta de Pelé aos colegas de elenco de que “o galego é doido”. Impulsivo e vaidoso, não refugava os entreveros. Já conhecido pelo apelido que se aferrou à imagem, Bruxa Loura, alimentava a fama de mulherengo nas areias de Copacabana, que frequentava paramentado com roupas coloridas, uma faixa no cabelo e colares, as portas do Karman Guia abertas, no banco ficavam as caixas de som de uma radiola Philips que tocava os discos anos antes presenteados por Bob Marley. “Chovia mulher.”
No gramado, Marinho permanecia incansável, como recorda João Moreira Salles, documentarista e botafoguense ilustre: “Eu era pequeno, então me lembro de um gigante com cabelos de viking que parecia ser uma força da natureza. Era meio improvável, um lateral esquerdo que era destro. Tinha uma garra que depois eu viria a chamar de argentina. Quando ele entrava em campo, a gente não tinha medo de ninguém. Podia até perder, mas nunca entregar”.
"Marinho prenunciou a metrossexualidade de Cristiano Ronaldo e o descontrole de Edmundo Animal"
Ao mesmo tempo em que consolidava a posição hoje conhecida como ala esquerda, Marinho perdia pouco a pouco o controle sobre as finanças: “Gastei demais, demais...”. A metrossexualidade de Cristiano Ronaldo e o descontrole de Edmundo, o Animal, foram prenunciados por Marinho. Craque, habilidoso, revolucionário, mas emocionalmente instável. “Marinho foi um fenômeno como ala. Mas uma criança como profissional”, justifica o jornalista Juca Kfouri, entusiasta do jogador que, apesar dos percalços anunciados pelos excessos fora de campo, chegou à seleção brasileira em 1973 e seguiu até a Copa do Mundo do ano seguinte.
PORRADA EM LEÃO
Na Alemanha, sede da Copa, Marinho deu nos cascos de Emerson Leão, goleiro da seleção. A ousada movimentação de ataque que lhe rendeu a glória foi a mesma que fez João Saldanha, então comentarista de futebol, apelidá-lo de “Avenida Marinho Chagas”, tamanhos os espaços que deixava em campo quando precisava retornar à base. Numa dessas falhas, a Polônia avançou pela lateral e marcou o tento que tirou do Brasil o terceiro lugar naquele mundial. Marinho se defende: “Quando o jogador chegou à pequena área eu estava a um passo e meio. O problema é que o puto do Leão, que era como carrinho de sorvete na praia, só sabe ficar enterrado e, quando sai, sai errado, adiantou-se demais. Tomamos o gol”. Provocado por Leão no vestiário, foram aos sopapos. Da Fifa, veio um consolo: foi o único brasileiro a figurar na seleção do mundial eleito melhor lateral esquerdo do campeonato.
Um ano depois da Copa, transferido para o Fluminense, onde permaneceu até 1979, Marinho pôs a paciência do cartola Francisco Horta no limite. Foi dele a ideia de levar pandeiros, chocalhos e tam-tans para a concentração. Virou hábito.
Não bastasse o barulho, na disputa do torneio Teresa Herrera, na Europa, em 1977, ia ao limite do bom senso nas cobranças de pênalti em que ensaiava o que hoje se chama “paradinha”. “Mas eu não parava. Eu girava na frente do goleiro, 360°. Quando eu chutava pra valer ele já estava no chão.” Do banco, Horta ameaçava prendê-lo no hotel se repetisse a malandragem. Ele a repetiu por três vezes durante a viagem. Marcou em todas elas.
ELE NÃO USA BLACK-TIE
No fim do campeonato no qual o Fluminense sagrou-se campeão vencendo em Corunha o Dukla Paha, o time carioca embarcou para mais dois amistosos na França. De Paris a Nice, Marinho viajou num Mercedes-Benz preto, conversível, com bancos de couro, alugado, para uma festa de gala em homenagem ao time carioca, dali a dois dias, num castelo da cidade litorânea francesa.
“Foi a primeira vez que usei black tie. Coisa fina. Muito artista, empresário e político no castelo. Enchi a cara e parti para a guerra. No meio da festa me apontaram a mulher mais bonita da noite e, quando me disseram quem era ela, não pensei duas vezes. Cheguei dançando, com uma taça de champanhe na mão, dei uma encoxada, encostei o pau devagar, esperando que ela pulasse fora. Mas ela riu. E, quando ela riu, eu tremi na base. Era demais pra mim; não tinha cacife pra comer uma princesa, jamais.” A mulher em questão era Grace Kelly, então princesa de Mônaco. Horta confirma o relato.
Depois de 1979, quando deixou o Fluminense, Marinho brilhou nos Estados Unidos na companhia de Pelé, Franz Beckenbauer e Michel Platini, no Cosmos de Nova York. Estava, enfim, à vontade em outro panteão depois da Copa de 74, a única que disputou, fechando 33 jogos com a camisa da seleção brasileira.
Do Cosmos até o fim da carreira, em 1988, passaram-se nove anos e sete clubes, incluindo três boas temporadas no São Paulo F. C., onde conquistou o Campeonato paulista em 1981, com atuações que lhe renderam a terceira Bola de Prata, prêmio da revista Placar aos melhores de cada campeonato. Foi um espasmo.
“Dei uma encoxada na grace kelly e ela riu. eu tremi na base. não tinha cacife pra comer uma princesa”
A irregularidade nas atuações o fez definhar. Bangu (RJ), Fortaleza E. C., América-RN e Los Angeles Heat (EUA) seguiram-se sem brilho digno de nota. Quando chegou para jogar na Alemanha, em 1987, onde um ano depois encerrou a carreira, uma manchete do jornal Sporting Bild deu conta “do perigo que a Bruxa representa para as jovens senhoras alemãs” mais do que para os adversários. Marinho havia se transformado em folclore.
UMA MÃO DE PLATINI
Hoje, morando novamente em Natal, financeira e fisicamente derrotado, pai de 13 filhos, cinco dos quais em países onde jogou (Alemanha e EUA) e com quem pouco mantém contato, enfrentando o alcoolismo, o ex-ala esquerdo não guarda vestígios da beleza e da forma física que possuiu na juventude.
Os problemas com hepatite C o levaram ao estaleiro por dois meses ano passado e mais 20 dias no início deste ano. Deprimido, separado da esposa e sem dinheiro, Marinho foi ajudado por uma campanha do ABC F. C., que destinou renda da venda de camisas especiais com o seu número para custear o tratamento.
Há anos comenta-se à boca miúda uma ajuda de custo enviada por Platini, da França, fruto da amizade estreitada no Cosmos. “Já aconteceu, mas não quero falar sobre isso”, Marinho desconversa para em seguida arrematar uma volta por cima: “A Copa de 2014 vai ser a minha ressurreição. Quero escrever minha biografia até lá”, diz, com um rasgo de confiança que quase lembra o touro, o doido que foi em campo.
Agradecimentos Serhs Natal Grand Hotel