”Operar parte do fígado e a bolinha de ping pong do tumor maligno foi a experiência mais incrível que já vivi, eu que sou proveniente das torrentes de escuridão mais profundo”
Foi uma experiência incrível. Não poderia dizer que foi tranquilo ou foi bom. As pessoas engolindo a vida sem mastigar; outros destruindo o país sem pensar; e eu aqui a defender minha pequena vida para não acabar... Bukowishi, ao falar de filósofos como Kierkegaard, Sartre, Hume e Descartes, afirma: "Quando você compara esses homens com os outros que caminham nas ruas ou aparecem nas telas da TV, a diferença é tão grande que alguma coisa se contorce dentro de mim , me chutando as tripas." A mim ficou essa parte do "chutando minhas tripas" em realce. Pois senti que chutavam mesmo lá por dentro e estavam acabando comigo. Operá-las, tirar parte do fígado e a bolinha de ping pong do tumor maligno (parece um olho mau nos encarando) foi a "experiência incrível". A mais incrível que já vivi, eu que sou proveniente das torrentes de escuridão mais profunda.
Não havia dor. Só o corpo todo sob ameaça. Pressão. Essa coisa que sobe na garganta e faz engolir em seco. Mas a alma, ah! Essa crescia e encolhia, assustada. Temi que não coubesse de volta; o risco é que se soltasse em um espirro junto com os perdigotos. O corpo, que sempre foi muito forte, perigava esvair-se. A alma que sempre esteve em perigo, finalmente, ameaçava se firmar. Havia um sentido na vida, até na dor e no sofrimento. Preso por um gancho que segurava bolsas de sangue e soro ligadas a meus braços e pescoço por doloridas agulhas, eu divagava.
Vivemos atormentados em busca de algo que devia estar mas não esta e nem sabemos o que seja. Juntos somos uma multidão escura que grita desesperada, lutando para sobreviver ao sonho impossível de ser feliz. E somos sempre derrotados. Na derrota vencemos o sonho e vivemos nossas realidades, percebendo que felicidade é consequência e não objetivo.
Cogitava enquanto algo penetrava minhas veias e meu cérebro, me apagando. Um "quik" e eu estava na UTI no outro dia. 24 horas longe da vida, do corpo, de mim mesmo, sem alma. As tripas ardiam, agora algo pisava em cima. A cada movimento, sua dor. Fui rodeado por enfermeiras que me informaram que eu acordava da cirurgia. O médico disse que fora uma boa operação, sem ser excelente. Cogitei por dentro sobre a diferença entre "boa" e "excelente". No que isso me prejudicava, quanto mais isso ia doer. Mas parecia tudo tranquilo, rotina para todos que me cercavam, como mais uma fornada de pão na padaria.
Olhei para baixo e um monte de curativos escondia meu abdome. Tinha acontecido, eu não sentira nada, pronto. Eu estava de fraldão, todo enrolado e coberto e passei o dia assim, rezando para não fazer nada que me envergonhasse. À noite me passaram para a enfermaria, em um quarto com mais 3 pessoas recém operadas. Eu já estava sociável, com a alma novamente minha e pude andar (com muita dificuldade) até o banheiro para o valoroso "xixi". Digo "valoroso" porque dai para a frente todos que entravam no quarto perguntavam se eu havia feito "xixi". Quando chegou o Dr. Rafael Pinheiro, meu médico cirurgião, quis saber porque tamanha curiosidade com o que eu expelia de meu organismo. Fazer "xixi" significava que meus rins estavam funcionando bem. Quando se meche no fígado, os rins reagem se trancando. Aquele era o sinal que a cirurgia havia dado certo. Fiquei ali, de bobeira e à mercê das agulhas dos enfermeiros. Um ponto fixo no pescoço e outro no braço para entrar líquidos e o resto dos braços para extrair sangue. Odeio agulhas! Elas me doem, incomodam...