por Pedro Doria
Trip #179

A atriz da Record foi a escolhida para viver a ex-prostituta Bruna Surfistinha no cinema

Ela era só uma menina assustada. Karen Junqueira tinha 17 anos quando chegou ao Rio vinda de Caxambu, Minas. Ano 2000. Não tinha pai, sua mãe fora abandonada grávida. Quem a criou e a registrou foi o padrasto. Comerciante, alugava umas casinhas, vivia uma vida direita. Ele não aprovava a mudança. Karen queria ser atriz. Para ele, atriz era outra coisa.

Ela desceu na rodoviária com R$ 150 no bolso e o telefone de Paula.

Paula era tudo. Menina do Rio que passava as férias na cidadezinha das águas mineiras. Nas mãos da amiga, pelas suas cartas no tempo pré-e-mail, Karen viu as fotos de aulas de teatro no Tablado e ouviu as histórias do Rio. E agora, pisando na cidade grande, o coração batia forte e ela suava frio – “Meu Deus, mas que cidade linda”, lembra ter pensado quando o ônibus a levava pra zona sul e nem percebe que repete um verso de Renato Russo.

Foi ser vendedora no shopping da Gávea, ali entre a PUC e o Baixo, num tempo em que às segundas todo o Rio descia para beber chope por lá. Contava cada moeda. O dono da padaria deixou que comesse fiado. No Flamengo, bem longinho, alugou cama num quarto de microapartamento. Trancava o armário com cadeado. Um dia, ganhou um computador na raspadinha. Vendeu por R$ 1 mil.

Karen vai ser Bruna Surfistinha no filme O doce veneno do escorpião, que será realizado ainda este ano com produção da TV Zero e direção de Marcus Baldini.

As duas não se conheceram, mas têm um mundo todo em comum. O pai adotivo opressor. A fuga de casa em busca de um sonho vago aos 17. Essa dureza que é estar longe da família. Os telefonemas para casa e o pai que se recusa a falar. O medo de dar tudo errado. Até a transição brusca da cidade pequena para a grande as duas têm. Raquel – que virou Bruna – se internou num privê. Karen virou modelo, estudou, foi ser atriz. Mas o mundo de Bruna esteve sempre ali. Era dar um passo.

“Se não conseguir nada como modelo, vou pra Centaurus”, lhe disse certa vez uma companheira de trabalho. “É em Ipanema. Parece que pagam bem por lá.” Viveu numa república em Copacabana, e a moça do quarto ao lado saía sempre à noite. Ninguém perguntava para quê. A menina da PUC, presença constante nas rodas, carro importado, nem sequer escondia. “Como modelo não consigo pagar a faculdade, então me viro assim.”

Era dar um passo. Tantas o deram. Mas Karen nunca. “Eu era séria. Chegava pras fotos, ficava no meu canto com meu discman.”

O pai postiço, que era pai ainda assim, um dia mudou de ideia. Demorou três anos, mas mudou. “Quero ver como essa menina está vivendo.” Foi buscá-lo na rodoviária de ônibus. Mas quando passavam pelo Rio Sul, shopping grande, o retrato da moça ocupava a fachada. Enorme.

Pausa na entrevista. É Karen que dá essa pausa, os olhos brilham um tanto de nada da lágrima que só ameaça. “Você não sabe o que foi ouvir aquilo”, ela diz. “Eu estava errado, minha filha.”

Seu pai já morreu.

Assim, como o passo esteve sempre ali mas nunca foi dado, ela seguiu carreira como, modelo procurando espaço de atriz até que, de um anúncio de sandálias na TV, alguém na Globo a viu e achou por bem chamá-la. Karen virou Tuca, na Malhação. Dois anos depois, o contrato expirou. Aí ligaram da Record: fez-se mulher meio felina, uma mutante na novela.

As fotos estão aí: Karen é linda. E tem resistência. Estamos em seu apartamento, na Barra da Tijuca. Ontem, passou o dia com J. R. Duran em São Paulo. “Bonita”, ela diz e vai assim, imitando o sotaque catalão do fotógrafo. “Tira o lençol!”, diz o Duran feito por Karen ao que ela responde em sua voz “Não!”, enquanto faz o gesto de que o pano foi caindo. Simula as fotos radiante.

Devia estar exausta, posto que é noite, posto que o repórter já a esperava na portaria. Não teve nem sequer a chance de um banho e a casa estava cheia. O empresário, a assessora de imprensa, o Rafael. (Ela não responde ou explica quem é o Rafael.) Nada é problema, ela só sorri e fala num tom alto, tem energia – e, como sorri sempre muito, logo mostra o traço mais marcante de seu rosto, uns caninos pontiagudos que só, num sorriso de dentes todos certinhos. É claro que a puseram de felina na novela dos mutantes.

“Eu não sei como vou fazer uma prostituta. Não sei realmente como é viver aquela vida.” Terá um mês de preparação intensiva. Ela nem sabe: mas tire os cinco clientes por dia, aquele passo nunca dado, e Karen sabe muito mais sobre como foi ser Bruna do que imagina. É uma linha tênue, uma única decisão, que separa a vida das duas.

*Pedro Doria é autor de quatro livros, colunista do jornal O Estado de S. Paulo e criador do site Pandorama. Mas, como ele gosta de brincar, a coisa mais importante que fez na carreira foi descobrir Bruna Surfistinha, a original

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