José Falero: A literatura deve pertencer ao povo

Autor de "Os Supridores", o escritor gaúcho fala sobre sua relação com a literatura, que começou nos tempos em que trabalhava como servente de pedreiro, e como ela pode ser menos elitista e desigual

por Renata Moniz em

José Falero não nasceu em um mundo de leitores. Durante muitos anos, o gaúcho dividiu-se entre os trabalhos como servente de pedreiro, supridor de supermercados ou auxiliar de cozinha e a prática disciplinada da escrita. Ele tinha 20 anos quando leu um livro inteiro pela primeira vez, na tentativa de provar para a irmã que literatura tinha menos valor que os filmes, mangás ou jogos de videogame que gostava. Mas ali o escritor encontrou algo que transformou sua vida. “Eu passei a pensar: se ler é tão bacana e eu fiquei a vida toda pensando o contrário, quantas outras coisas bacanas devem existir, coisas ao meu alcance, e que até agora eu não experimentei?”, conta.

O ofício do supridor, que é o responsável por estocar as gôndolas dos supermercados, dá o nome e o ponto de partida do primeiro romance de Falero, lançado em dezembro pela Editora Todavia. Os Supridores conta a história dos amigos Pedro e Marques, funcionários da rede de mercados Fênix, que resolvem vender maconha para tentar melhorar de vida, uma representação nua e crua da realidade de um Brasil desigual. Esta é a segunda publicação do escritor, também autor do livro de contos Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019). 

Crédito: Diego Apoli/Divulgação

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"Não há nada de fantástico em escrever um livro. Eu tenho horror aos sistemas de distinção que imperam na nossa sociedade. A quem interessa acreditar que uns são naturalmente capazes disso e daquilo enquanto outros não são?", questiona Falero. "Eu penso que a gente tem que arrancar a literatura do altar burguês em que ela foi metida. Eu acredito que a literatura deve pertencer ao povo". Para o escritor, as políticas públicas são o que podem derrubar as estruturas que tornam a literatura um espaço ainda tão desigual e inacessível. "Podemos seguir usando uma lixa para desfazê-la, isto é, podemos seguir com os nossos pequenos progressos, ou então podemos usar um trator pra apressar um pouco as coisas", diz.

Trip. Você leu seu primeiro livro inteiro quando completou 20 anos. Como a literatura te foi apresentada?

José Falero. Realmente fui ler o primeiro livro por volta dos vinte anos. Antes disso, eu não acreditava que a leitura podia ser uma prática prazerosa. Tem uma coisa que hoje em dia me parece meio óbvia, mas que não me passava pela cabeça naquela época: eu não pertencia a um mundo de leitores, digamos assim. Acho que nunca vi o meu pai com um livro na mão. Minhas tias e tios não liam, meus primos não liam, meus amigos não liam. Minha mãe, sim, de vez em quando abria livros espíritas pra ler. Eu achava esquisitíssimo aquilo que ela fazia: abria livros e lia, sem que fosse uma obrigação. O fato é que às minhas voltas, nos círculos onde eu me criei, os livros eram coisas que na maior parte do tempo simplesmente não estavam presentes entre nós, de modo que não pensávamos sobre eles, muito menos sobre a sua utilidade, e menos ainda sobre a possibilidade de lê-los. Depois, minha irmã também se tornou leitora, a certa altura da vida. Foi ela quem me convenceu a ler.

Crédito: Diego Apoli/Divulgação

Como foi isso? Quando ela vinha visitar a gente no Pinheiro, ficava enchendo o saco, dizendo que eu tinha que ler livros. Mas o prazer da leitura era uma coisa impensável pra mim. Eu gostava muito de filmes, mangás e jogos de videogame, e então argumentava que os livros não podiam ser tão bons quanto essas coisas, porque todas elas também contavam histórias, como os livros, mas diferente deles possuíam características extras sensacionais: os mangás tinham ilustrações, os filmes tinham imagens e efeitos sonoros, os jogos de videogame ofereciam a possibilidade de controlar os personagens. O que era um livro diante disso? Um dia, como havia de ser, a minha irmã se cansou de tentar me convencer. E, agora, pensando nisso, até me lembro de um provérbio, acho que chinês: às vezes encontramos o nosso destino no caminho que tomamos para evitá-lo. Ela disse o seguinte: “Tá, eu nunca mais vou falar sobre livros contigo, só que tu precisa entender que a tua opinião não tem valor nenhum, porque tu nunca leu um livro inteiro na vida, e portanto não pode saber como é”. Aquilo me pegou. Eu queria provar pra ela que ela estava enganada. Eu podia, claro, mentir: dizer que li um livro, mesmo sem ter lido, e que não gostei. Mas eu queria provar também pra mim mesmo que ela estava enganada. Então arranjei um livro emprestado e li inteiro. Se chamava Besta-Fera, era sobre lobisomens. 

O que mudou na sua vida depois desse livro? Quando eu já estava me acostumando com o ato de ler, começou a acontecer comigo a magia que todo leitor conhece bem: de vez em quando eu conseguia me concentrar na leitura de tal maneira, que já não via mais as palavras impressas no papel diante de mim; em vez disso, era quase como se eu estivesse vivenciando as cenas do livro. E isso é que foi potente. Só que a leitura daquele primeiro livro não transformou apenas a minha relação com a literatura: transformou a minha subjetividade em muitos aspectos. Uma coisa que eu passei a pensar foi o seguinte: “Poxa, se ler é tão bacana e eu fiquei a vida toda pensando o contrário, quantas outras coisas bacanas devem existir, coisas possíveis pra mim, coisas ao meu alcance, e que até agora eu não experimentei?”. Esse pensamento, esse estado de espírito potencializou algo que eu acho que já era uma tendência em mim: o desejo de aprender coisas, o desejo de entender como as coisas funcionam, o desejo de me inteirar de assuntos variados. Era como se eu estivesse começando a tentar saciar uma sede insaciável: quanto mais eu aprendia, mais eu queria aprender. 

Crédito: Divulgação/Editora Todavia

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Você já trabalhou em três redes de supermercado como supridor, responsável por estocar as gôndolas, e também foi servente de pedreiro. A escrita esteve com você nesse meio tempo? Sim, a escrita esteve comigo o tempo todo. Desde que comecei, por volta dos 21 ou 22 anos, acho que nunca cheguei a ficar um mês inteiro sem escrever absolutamente nada. Eu tive muita, muita disciplina. Nos períodos em que eu ficava sem emprego, passava no mínimo dez horas diárias praticando a escrita, testando possibilidades, estudando, lendo, lendo, lendo (e tentando compreender a mecânica do estilo dos autores). Nos períodos em que eu estava trabalhando (fosse como servente de pedreiro, fosse como supridor, fosse como auxiliar de cozinha, fosse como fosse), eu tentava conciliar a escrita e o trabalho. Não era fácil. Era como ter dois empregos: o primeiro me garantia alguma renda imediata para os problemas da vida real; o segundo (a produção de texto) me ajudava a suportar o primeiro, porque era o que me permitia acreditar num futuro mais digno, era o que me permitia acreditar que a minha vida seria melhor algum dia.

Quando você se entendeu um escritor? Essa é uma pergunta curiosa, porque parte da premissa de que nós, eu e tu, compartilhamos um mesmíssimo conceito de “escritor”, e na prática essa coincidência raramente se aplica. Vamos lá: o que é um escritor? Acho que eu me entendi escritor várias vezes na vida, cada vez de um jeito diferente. Por exemplo, na época em que eu decidi ficar isolado em casa escrevendo as minhas histórias em cadernos velhos, cheio de esperanças, ali eu já me entendia como um escritor, mesmo que nem os meus parentes lessem os meus textos. Depois de uns anos, tive uma crise. Perdi todas as esperanças de que a escrita pudesse me levar a algum lugar, achei que jamais haveria qualquer tipo de retorno pelos meus textos. Mas, mesmo assim, percebi que eu não seria capaz de simplesmente deixar pra lá. Então, aceitei de bom grado o destino que àquela altura me parecia infalível: o de escrever até o fim dos meus dias sem ganhar nada em troca por isso. E, assim, tornei a me entender como escritor, dessa vez de uma outra forma. Uma terceira ocasião foi quando eu publiquei o Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019), meu livro de estreia, que é um livro de contos. Agora as pessoas por aí afora me chamavam de “escritor”, até resenha nos jornais saiu. As pessoas do mundo literário de Porto Alegre agora me conheciam, conheciam o meu trabalho. E de novo eu me entendia como escritor, de novo de maneira diferente. No início de 2020, eu consegui começar a me sustentar exclusivamente com o que eu ganho escrevendo, vendendo direitos de textos, participando de eventos literários etc. E adivinha só? Mais uma vez eu me entendi como escritor, mais uma vez de forma diferente.

Crédito: Diego Apoli/Divulgação

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Você teve dificuldade em encontrar apoio no mercado editorial no início. Como fazer com que abra-se espaço para a literatura periférica? Os progressos que a gente tem feito, por mais importantes que sejam na vida de um ou dois como eu, ainda são insignificantes quando se leva em consideração todo o povo de um país como o Brasil. Por mais importantes que sejam, esses progressos são apenas farelinhos que se desprenderam da estrutura de poder, tal como se configurou historicamente no nosso país. E aqui vai uma analogia do auxiliar de pedreiro que eu sou: estamos tentando desfazer essa sólida estrutura de poder que se ergue diante de nós, mas temos a pachorra de usar uma lixa, e assim levaremos séculos para desfazê-la completamente. O melhor seria desfazê-la a marretadas, ou então derrubá-la com um trator. Como fazer para abrir espaço para a chamada “literatura periférica”? Bem, repare que, se é necessário “abrir espaço”, é porque não há espaço. Praticamente todo o espaço disponível está ocupado por outra literatura que não a chamada “literatura periférica”.

Podemos seguir usando uma lixa para desfazê-la, isto é, podemos seguir com os nossos pequenos progressos, ou então podemos usar um trator pra apressar um pouco as coisas. Seja como for, acredito que tudo passa por políticas públicas. Ficar esperando que os brancos ricos — os donos das editoras e os editores — se interessem pela literatura produzida por pessoas que não se parecem com eles, que não têm a mesma origem e experiência social, isso é desfazer a estrutura de poder com uma lixa, e, tudo bem, isso não deixa de abrir espaço para a chamada “literatura periférica”, tanto é que aqui estou eu, editado pela Todavia. E mesmo nesse caso observa-se a importância das políticas públicas: esses donos de editoras e editores brancos e ricos só se interessaram pela chamada “literatura periférica” porque isso virou pauta no debate público, e isso só virou pauta por causa das pessoas que entraram nas universidades nas duas últimas décadas, e essas pessoas só entraram nas universidades por causa de políticas públicas. Agora, se quisermos desfazer a estrutura de poder com um trator, isto é, se quisermos ver grandes progressos num pequeno espaço de tempo, precisamos de políticas públicas ainda mais incisivas. Mas, nesses tempos que atravessamos no Brasil, falar em políticas públicas é quase uma piada de mau gosto.

Como nasceu a ideia de Os Supridores? Você levou quanto tempo para escrever? Sou péssimo com essas coisas de lembrar datas ou quanto tempo demorou isso ou aquilo. Talvez eu tenha levado uns 3 anos pra escrever Os Supridores inteiro. A ideia veio do seguinte: em primeiro lugar, minha irmã, após ler um romance de ficção especulativa que eu andava escrevendo, disse que gostou da minha escrita, mas que eu precisava escrever algo que tivesse mais a ver com o mundo real de modo geral e com a nossa experiência social em particular; em segundo lugar, o momento da minha vida em que comecei a ter contato com o pensamento marxista coincidiu com a minha entrada no primeiro supermercado em que trabalhei como supridor. 

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Um elogio que você disse ter gostado de receber foi de um amigo que falou que “qualquer um poderia ter escrito esse livro”. Por que isso é importante? Sim, foi um primo meu que disse isso. Na verdade, ele disse isso em relação ao Vila Sapo, mas eu gosto de pensar que se aplica a Os Supridores também. Acho isso importante simplesmente porque é a verdade. Não só em relação à minha produção literária em particular, mas em relação ao próprio ato de produzir literatura de modo geral. Escrever um livro, seja o livro que for, não é grande coisa. Não há nada de fantástico em escrever um livro. Qualquer um pode escrever um livro. Eu tenho horror aos sistemas de distinção que imperam na nossa sociedade. Sabe? Esses sistemas de distinção compõem o mecanismo por meio do qual a nossa sociedade se especializou em deixar gente como eu de fora de tudo. Não quero tomar parte nisso. Isso, além de ser mentira, serve pra quê, senão promover a exclusão? A quem interessa acreditar que uns são naturalmente capazes disso e daquilo enquanto outros não são? Eu jogo noutro time. Eu penso que a gente tem que arrancar a literatura do altar burguês em que ela foi metida. Eu acredito que a literatura deve pertencer ao povo.

Antes de começar a escrever, você buscou referências em obras mais clássicas até concluir que você poderia criar o seu jeito próprio de escrever. Como foi esse processo? Bom, na verdade, depois que eu li o Besta-Fera e quis continuar lendo livros, eu simplesmente não podia escolher o que ler. Foi assim durante muito tempo. Eu não tinha dinheiro pra comprar livros. Então, eu tinha que ler o que estava disponível. Comecei com os “livros que contam histórias”, como eu dizia na época. Pouquíssimos eram brasileiros; Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas são dois que consigo lembrar que estavam na minha casa. A maioria eram romances e coletâneas de contos estrangeiros, alguns clássicos famosos, absolutamente nada de poesia. Depois, li os livros didáticos que estavam por ali. Foi um processo totalmente alheio às minhas vontades, tanto quando eu não tinha dinheiro como quando já tinha dinheiro: sem dinheiro, eu não podia escolher nada; com dinheiro, eu obviamente teria interesse por livros de autores contemporâneos com experiências sociais parecidas com as minhas, mas não fazia a menor ideia de que existiam escritores assim. Então as minhas escolhas acabavam sendo norteadas por outros fatores, como o senso comum do que seriam bons livros, digamos assim, e o tipo de leitura que eu já tinha experimentado.

De um supridor na vida real para a ficção dos supridores no seu livro: até que ponto esta obra é autobiográfica? Não há uma balança ou um termômetro pra medir o quanto um livro é autobiográfico. Mas algumas ideias me ajudam a refletir. Por exemplo, me parece que mesmo quando a gente conta histórias nossas, da nossa vida, em um livro ou mesmo oralmente, por vezes há coisas que não desejamos contar e omitimos, assim como há detalhes que preferimos minimizar ou valorizar, além dos aspectos que não nos lembramos muito bem e vamos preenchendo com a imaginação. Dessa perspectiva, mesmo uma autobiografia propriamente dita terá, forçosamente, algo de ficção. O inverso também me parece verdade, porque a matéria-prima daquela construção é a sua experiência de vida e a sua visão de mundo. Encarando a questão desse modo, consigo te responder com um pouco mais de tranquilidade: Os Supridores é um livro de ficção, não é um livro autobiográfico. Apesar de eu ter trabalhado como supridor em supermercados e de ter roubado tantos bombons quanto pude.

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Você apresenta e destrincha no livro de uma maneira simples conceitos marxistas que são bem acadêmicos. Essa ideia de desmistificar temas complexos era um dos objetivos dessa obra? Não, não, eu não pensava nisso. Na época em que eu comecei a escrever Os Supridores, eu não estava, como ainda não estou, em posição de “traduzir a teoria marxista para uma linguagem mais simples”. Eu não podia e ainda não posso fazer isso pelo simples fato de que eu não entendo o marxismo de outra maneira. Isto é, a forma acadêmica de pensar o marxismo não faz sentido pra mim, eu não compreendo, e, se não compreendo, como poderia traduzir? A forma como eu apresento o marxismo no livro é a forma como eu entendo o marxismo, é o resultado do meu esforço pra compreender o marxismo. 

Os protagonistas do livro, Pedro e Marques, sonham em melhorar sua condição de vida e o tráfico é um caminho possível. Você acredita que é sequer possível falar em sonhos dentro desse cenário desigual entre classes que vivemos? Eu não só acredito que falar em sonhos seja possível, como acredito que seja mesmo necessário. Todos sabemos, e não é de hoje, que a nossa sociedade necessita de uma transformação, e essa transformação precisará ser sonhada primeiro. 

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