Gostosa pra Jesus!
A cena trivial, entre a evangélica e o guardador de carros ? que não se conhecem ?, tocou as entranhas do país mexendo com todos os colunistas
Por Redação
em 16 de dezembro de 2005
Um guardador de carros, encostado num muro. Uma morena bonita, passando pela rua. “Gostosa”, diz o guardador, naquele tom ao mesmo tempo elogioso e escroto, que qualquer brasileiro conhece. “Gostosa para Jesus”, responde rápida a gostosa, evangélica, ofendida, decotada. Silêncio, breve. E o guardador pondera: “É, sem dúvida, pra Jesus também”.
Eu vivi essa cena, como figurante, enquanto caminhava hoje à tarde por uma travessa da avenida Faria Lima, aqui em São Paulo. Os seis segundos do diálogo e do gestual estavam sobrecarregados de Brasil. Eles acenderam em mim dois lampejos fulminantes de compreensão. Primeiro, eu entendi que havia participado da encenação espontânea de um mito, um mito pedestre, que o poeta definiu como “o quase nada que é quase tudo”. Depois, eu entendi quase tudo. Com a fagulha daquele instante, a máquina da nação se entreabriu para os meus sentidos. Eu vi, senti as entranhas dela. De nós. E a pátria, uma vez na vida, fez algum sentido. Pena que o sentido tenha durado só três respirações. Ele me sumiu de súbito, como se eu tivesse sido desperto de um sonho remoto pelo bafo carbônico da rua, logo que dobrei a esquina. Mas deixa eu tentar lembrar. Um lado meu, que é quase um Diogo Mainardi de tão chato, admito, viu só indícios de treva, de metástase social. Viu a boçalidade do guardador, essa praga rastaqüera da fauna urbana brasileira, que vende do lado de cá do apartheid social uma proteção barata contra si próprio. E viu também o outro lado da mesma moeda corrompida que gera o guardador: o carolismo da neo-Iracema catequizada, através de quem Jesus parece se transformar no exato oposto do que se propôs a ser – uma obsessão escravizante e alienadora.
Por sorte, eu também tenho um lado quase que Dorival Caymmi. Ele viveu a cena de um modo completamente diferente. Viu só uma morena linda, de valores cristãos tão saudáveis quanto as próprias pernas, viu só um maracujazinho incorruptível exalando o ar da graça pelas ruas poluídas da cidade, fruta cotidiana da paixão, beata redentora, gostosa de Jesus. E viu no guardador um homem gaiato, de bem, ganhando a vida como pode, senhor de uma linguagem corporal liberta, brincando com a realidade sem perder o rebolado, em paz com o mundo e alheio à miséria – tanto a dele quanto a do mundo.
Gols das rodadas: futebol & CPIs
Agora é tarde da noite. Enquanto olho aqui para o computador, a televisão sintonizada na Globonews mostra os gols da rodada. Da rodada de jogos de futebol e da rodada de CPIs. E projeta-se óbvio na tela da minha mente sonolenta o fato de que existe uma relação umbilical entre o Brasil da TV e a verdade transeunte que me escorreu pelo bueiro da rua, há poucas horas, indo talvez parar num encontro improvável entre os rios do pensamento do Diogo Mainardi e do Dorival Caymmi.
Essa relação entre Brasis, ao contrário do próprio mito de esquina, é lembrável, traduzível, racionalizável. Mas tem só uma coisa em que meus lados Mainardi e Caymmi concordam (um por achar frescura e o outro por ver a vida com eterno frescor): não vale mais a pena teorizar sobre brasileirismos. É hora de ação, simples.
Como todo mundo, eu tenho uma multidão de outros lados. Alguns até gostariam de escrever uma tese subsociológica sobre o que foi há pouco visto e sentido na rua. Felizmente eles já foram dormir. O que sobrou de mim, colunista que sempre suspeitou da própria necessidade mensal de produzir uma opinião, também quer ir para a cama. E acordar amanhã. Sair para a rua com a mente aberta para o quase nada. Viajar. Querendo achar o mundo gostoso, e gostoso para Jesus.
London, Luton Airport. CrÉditO: Charles Skilton & Fry Ltd / saiba mais na acp desta edição
*Carlos Nader, 41, videoartista, tem o olhar treinado para encontrar grandes questões sociológicas em cenas corriqueiras como a acima. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
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