Entrevista: Fabio Trummer

por Felipe Maia

Em lançamento de projeto solo, o vocalista da banda Eddie conversa com a Trip sobre música, política e punk após os quarenta anos de idade

Ao cantar “Salve a América do Sul”, o olindense Fabio Trummer, no imperativo, conclama e sauda o continente explorado anos a fio pelos impérios do norte. As filigranas da letra se confundem com a crueza de alta fidelidade da canção gravada com o clássico power trio punk: guitarra, baixo e bateria. Como cartão de visitas, a faixa abre o primeiro disco solo do vocalista da banda Eddie, “Super Sub América”.

Esse despretensioso grito de guerra latino-americano pode soar como uma releitura do “lixo ocidental” cantado por Milton Nascimento. Não menos mordaz que a visão do mineiro, a inspiração para Trummer se estende pelo álbum. “O Super Sub América vem do Eduardo Galeano”, diz o músico. Para o escritor uruguaio, o continente, sucessivamente subjugado por países mais ricos, é visto mundo afora como uma América de segunda classe.

A corrosão das letras consome as bases certeiras de Luca Bori e Diego Reis, baixista e baterista do Vivendo do Ócio. Rebentos do selo Sub-Pop como Pixies e Nirvana fazem parte do panteão de referências de Trummer, especialmente nesse disco. “Esse disco tem um sabor de anos 80”, conta o artista, um punk de meia idade como ele mesmo explica. “Tem a coisa do faça-você-mesmo e eu aprendi a tocar em banda, mas agora tenho 25 anos de experiência.”

Toda essa carreira foi dedicada à banda Eddie. O grupo, surgido no caldeirão do manguebeat, sempre correu por fora das misturas de maracatu, embolada, hip hop e música eletrônica - embora Trummer reconheça a natural influência do meio em que vive. “Continuamos até hoje porque criamos o nosso mercado”, diz ele, ainda vocalista da banda que se mantem ativa mesmo com seu projeto solo.

O disco “Super Sub América” tem participações de Daniel Ganjaman e foi produzido por Daniel Bózio com capa de Mozart Fernandes. Abaixo, ele pode ser ouvido em primeira mão. A seguir, Fabio Trummer fala sobre as inspirações para seu novo trabalho, a produção do álbum, cena pós-manguebeat, América do Sul e até rolezinho. “Isso mostra o que é o Brasil”, sentencia o músico ainda punk, ainda americano.

Trip: Como surgiu a ideia de fazer um disco solo? Fabio Trummer: Desde o carnaval no inferno eu tinha uma necessidade de fazer um formato diferente. A banda também desgasta muito. Às vezes você está com a banda mais tempo que com a família. Nos últimos dez anos eu fiquei mais tempo com a banda que com a família. Eu precisava desse exercício criativo, eu precisava de mais uma possibilidade de trabalho porque só eu moro em São Paulo e eu queria ter mais possibilidades de trabalho. Eu queria testar minha disciplina também. Chegar a uma técnica apurada de composição em que eu pudesse trabalhar mais rápido. Às vezes recebo encomendas e a composição é muito orgânica.

E como isso aconteceu? Fiquei de maio até o começo de dezembro completamente focado no trabalho. O Super Sub America vem do Eduardo Galeano. Ele fala que, no máximo, somos uma sub América, porque América mesmo é a América do Norte. Outra coisa que pensei é o punk de meia idade. Em 1985 o punk rock estava começando com bandas brasileiras e naquela época o Brasil estava saindo de uma ditadura para uma democracia que até hoje não se organizou. Me identifiquei com o punk porque ele se identifica com a situação. Ele tem a coisa do faça-você-mesmo e eu aprendi a tocar em banda, mas agora tenho 25 anos de experiência. Esse é o punk de meia idade. Queria muito cumprir prazos e isso é uma crítica que eu sempre faço em processos de trabalho de gravação. Os músicos não cumprem prazos. Isso é uma questão meio existencial. O artista tem um ritmo diferente, mas tem uma parte que é só técnica na gravação e não precisa de um ritmo diferente. Queria cumprir prazos e tive como meta cumprir os prazos de composição.

Qual foi sua agenda? Comecei em maio. Tinha alguns rascunhos, mas a maioria das músicas foram feitas até agosto. Chamei os meninos do Vivendo do Ócio, o Diego Reis e o Lucas Bori. Eu estava com tempo livre e queria tocar, ensaiar, fazer show, exercitar a guitarra também. O Eddie no início era muito roqueiro. Eu tenho uma técnica de distorção que era muito certeira, mas uma hora isso ficou repetitivo. Comecei a ouvir Fela Kuti, o Jorge Ben da década de 60 e fui descobrindo novas técnicas de guitarra. Eu queria aperfeiçoar o meu cantar também. Desenvolvi uma guitarra mais rítmica, a partir da Bossa Nova, do Afrobeat. São três acordes numa guitarra rítmica mais complexa mesmo. E nesse disco eu me voltei à guitarra com distorção, mais roqueira. Ano passado eu comprei guitarras, comprei amplificador. Eu estava sentindo uma necessidade de tocar melhor. Queria fazer tudo a partir do mínimo. Botei tudo com voz e violão e depois tudo com power trio. Já tinha a letra, mas terminei de compor no estúdio. Depois de ensaiar com o trio a gente fez um show e amarramos tudo mais ainda. Depois a gente gravou tudo ao vivo. Depois fui brincar com amplificadores e guitarras.

Você tinha uma timbragem pra cada música? Na mesma música havia timbragens diferentes. Normalmente eu faço isso, mas sem tanta atenção a timbres, sem garimpar ao que eu queria. Tem uma atenção maior com o instrumento. Uma relação mais afetiva na busca do timbre ou do feedback da guitarra com o amplificador. Foi uma brincadeira mesmo. Ouvi muito Smiths, Nirvana, Pixies, Placebo. Foram cinco ou seis bandas que ficaram me orientando. A minha escola de harmonia são os anos 80. É o trabalho desses caras. Esse disco tem um sabor anos 80. Eu disse para o Daniel, que está produzindo comigo, e para o pessoal da arte: há uma intenção dos anos 80. A poesia dos anos 80 parece um pouco com o que acontece hoje. O mundo de 87 é completamente diferente do que o mundo é hoje, a sociedade é diferente, mas musicalmente, não. Não em como acontece a comunicação com o público. Há uma necessidade de voltar pra rua. A gente vive numa geração que não é de garagem, é de quarto. Há uma certa necessidade de ir pra rua mesmo. Salve a distorção dos sons das ruas.

Você acha que a América do Sul sofre disso? Isso é típico de uma cultura estuprada por outra que é comercial e ditadora. Assim acontecem essas deformações. O McDonalds muda a cultura de todo o mundo. Ele vem e todo mundo deixa de comer algo saudável para comer aquilo que não alimenta, não nutre, apenas sacia. Esse tipo de ditadura do poder econômico é muito comum. Lugares como a América do Sul são lugares onde somos explorados a vida inteira. Eles tem uma bancada imensa de poder e ficamos à mercê do que eles querem fazer com a gente.

Você acha que as coisas tem mudado nos últimos dez anos? Mudou para o consumo. Hoje temos o poder consumista, mas não vejo infraestrutura. O Bolsa Família fez uma diferença tremenda. É um produto mundialmente copiado. Funciona. Agora falta a infraestrutura, a continuidade disso. O cara só tem o pão, mas não tem a oportunidade de fazer nada. Essa mão de obra está virando quase que mão de obra escrava em subempregos e primeiros empregos. A massa no Brasil é principalmente de gente em primeiro emprego.

As letras do disco transitam nessa manifestação? A maioria é. Na minha música sempre tiveram os dois lados: um momento de alegria e a minha veia mesmo, a coisa do punk rock de denúncia. Diferente de antigamente, isso vem de uma maneira com mais poesia, o que faz parte desse amadurecimento.

E antigamente qual era a relação da Eddie com o movimento manguebeat? Quando surgiu o movimento todo mundo já se conhecia, mas o Fred 04 e o Chico já tinham na cabeça uma maneira de eles conseguiram uma atenção na mídia. Eram bandas mais maduras na época. O Chico falou “o pessoal da Sony está vindo aí, vamos todo mundo pro estúdio, vamos botar umas percussões e a gente embrulha”. Eu falei “a música tem seu ritmo de desenvolvimento e se a gente mudar a gente não vai conseguir longevidade”. Todo mundo, de alguma maneira, sabia que ia ser músico profissional. Todo mundo acreditava muito e era muita gente, alguns muito talentosos. Na época que o Nação Zumbi e o Mundo Livre assinaram [com a Sony], a gente ainda estava buscando nossa identidade. Podíamos ter gravado com eles, podia ser bom ou ruim, mas a gente não teve esse pressa. E 25 anos depois vocês ainda continuam.

Por quê? Exatamente por isso. A música autoral não se desenvolve da noite pro dia, ainda mais uma música autoral que não tem nenhum nicho de mercado em que você se encaixe. É uma coisa diferente o que a indústria brasileire lhe oferece.Tem que ser a médio e longo prazo. É o tempo para se desenvolver como compositor, como cantor. Ninguém estudou, todo mundo aprendeu fazendo. É o tempo de formatar o seu mercado. Continuamos até hoje porque criamos o nosso mercado. Não é o mercado que a gente vê na MTV, nem na rádio, mas é o nosso mercado. Fizemos shows agora e foi lotação no SESC, em Brasília, etc. É um público conhecedor, que gosta de música, um consumidor consciente que não existe apenas para o Eddie. Ele existe para a música autoral. As mesmas pessoas que vão ao show do Criolo em Recife, vão ao show da Eddie. As mesmas pessoas que vão no show do Mundo Livre em Porto Alegre, vão ao show do Lucas Santtana. É um universo de música autoral que tem público fiel e cativo. Tem gente que acha que ser bem sucedido é virar um fenômeno de massa, mas nisso há um marketing muito grande. Quando você tem uma música autoral, a música tem personalidade que quase nunca é tão popular, mas tem seu público. No Brasil existe isso, só não é reconhecido pela mídia. O engraçado é que a mídia frequenta esse show, mas na maior parte dos veículos de comunicação aparecem outras coisas.

Mas você acha que esse conflito de popularidade e público é culpa de quem? Em Recife a gente tentou que uma rádio tocasse nossa produção musical desde o início do manguebeat. Nunca conseguimos, porque rádio é concessão pública. Eles só dão concessão pública para quem já tem várias concessões. As poucas rádios que tem concessões são comerciais. Uma gravadora paga para tocarem na programação os lançamentos. Sempre foi assim. Falta espaço mesmo. Falta uma democracia dentro da comunicação. Precisa de políticas voltadas a uma certa educação, a um certo conteúdo para TVs, rádios e revistas. Precisa de coisa de qualidade. A impressão que tenho é que o que está a frente das bancas e nas vitrines é superficialidade extrema. Precisa de mais conteúdo na TV, precisa afastar os vampiros da desgraça dos outros, precisa de qualidade e limites. A gente precisa fazer um trabalho de qualidade para que esse público que nos acompanha desde o começo continue nos acompanhando até os 80 anos. Isso acontece com o Eddie, porque tem crianças chegando agora e indo aos shows.

Isso tem a ver com o seu novo disco? O Trummer Super Sub America começou desde lá de trás com o que está errado. Ninguém contou essa história tão bem contada quanto o Eduardo Galeano no seu livro [As Veias Abertas da América Latina]. A gente ainda vive uma crise de identidade. Essa história do rolezinho, por exemplo. Acho que isso mostra o que é o Brasil. A gente tende a pensar que o Brasil é seu bairro, mas agora, através das informações via internet, você tem confrontos sociais. Você descobre que seu vizinho, de quem você sempre gostou, é um fascista. A gente erra muito sem saber, por ingenuidade. Em Olinda a gente sempre foi invadido. No Carnaval, pelas camadas mais pobres e mais ricas. Eu sempre vivi essa situação como olindense. Acho engraçado esse medo do rolezinho. Li o relato de um garoto dizendo que não tinha nada pra fazer, o único lazer é o shopping. Hoje o passeio cultural em Recife é ir ao shopping. Criaram esse valor. Isso é que está errado. Em vez de dar entretenimento de qualidade, você dá consumo.

E, falando sobre o disco, você ainda acredita nele? Nessa estrutura fechada do álbum? Sim. Acredito em ter um conceito e trabalhar nele. É como um filme. Gosto de pegar um álbum inteiro. Quando gosto muito de uma banda e escuto apenas uma música eu fico com vontade de mais. Qual o futuro da Eddie agora com seu trabalho solo? A Eddie continua e vou me dividir entre os dois projetos. Depende da demanda. Vou dar uma atenção a esse trabalho. É um presente que estou me dando. Perdi meu pai ano passado vendi o carro que ele me deixou -- sou um pedestre assumido. Então estou mixando em Nova York e, embora não esteja gastando muito em comparação aos números da indústria fonográfica, estou fazendo um trabalho independente com qualidade. Com pessoas que escolhi a dedo por conta da energia da pessoa. É uma realização, um prazer mesmo. Já tenho clipe produzido pelo Gomes, grafiteiro daqui de São Paulo. Estamos experimentando formatos.

Você mantem mesmo o espírito punk... É uma busca de tentar algo diferente. O tempo inteiro eu tentei fugir dos formatos da indústria. Sempre gostei de me envolver com todas as fases de um álbum porque, pra mim, é um conceito que precisa ter unidade. A gente não trabalha nas avenidas das indústrias fonográficas. A gente trabalha nas ruelas, procurando atalhos, comendo pela beirada. Eu entro nas avenidas também, mas não dependo delas.

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