Entre cobras e lagartos

Famoso pela música, Paulo Vanzolini fala sobre suas duas maiores paixões na vida e crava: “Sou zoólogo!”

Lendário boêmio e compositor de sambas como “Ronda” e “Volta por cima”, Paulo
Vanzolini não aceita o rótulo. “Sou zoólogo!”, insiste, e repassa seu legado mais importante: o científico

Em 1934, o pequeno Paulo Vanzolini fez um acordo com seu pai. Em troca de boas notas no colégio, ganharia uma tão sonhada bicicleta para seu aniversário de 10 anos. Dito e feito. Saiu-se bem nas provas (hábito que cultivou por toda a vida) e, assim que recebeu sua parte do trato, atirou-se em uma ainda pacata São Paulo. Do Jardim Paulistano, onde nasceu e foi criado, o moleque atravessou o rio Pinheiros e deu no bairro do Butantã. Descansando da longa pedalada, entrou pela primeira vez no instituto biológico. Entre cobras e lagartos nos aquários, ainda impúbere decidiu o que seria pelos 78 anos seguintes: um herpetologista. Em português mais... vulgar: um zoólogo especializado em répteis e anfíbios.

Nunca pensou em ser outra coisa, Paulo? “Nunca”, postula. E por que o fascínio tão específico? O que répteis e anfíbios têm de tão especial? Após um breve suspiro, como que entediado pela pergunta, Vanzolini simplifica: “Eu gosto deles...”. Em vez de elaborar especulativos porquês, cientista que é, prefere se ater aos fatos como são. E por isso conduz a entrevista quase sozinho, contando o que ele considera as histórias, e feitos, mais importantes de sua longa trajetória. Seja nos laboratórios, na mata, em gabinetes – ou em uma longeva boemia. Foram manhãs e tardes de pesquisa que lhe deram o internacional nome de grande zoólogo. E noites e madrugadas que lhe deram a fama fora da academia, entre os milhões que preferem decorar sambas a nomes de espécies em latim.

“Sou zoólogo!”, insiste há anos, se defendendo toda vez que alguém o acusa de ser sambista. “Um poeta de rua, na melhor das hipóteses...”. Assim, o autor de “Ronda”, “Volta por Cima” e “Samba Erudito”, dos mais consagrados sambas brasileiros, prefere gabar-se de sua assinatura em uma obra de título bem menos popular. Mas de implicações bem mais difundidas do que seus mais célebres versos. O estudo sobre a teoria dos refúgios, desenvolvido nos anos 50, tornou-se um paradigma científico que hoje é ensinado até em escolas secundárias.

Mas investir tempo e tutano em teorias como essa era um tanto herético para o status quo da biologia da primeira metade do século 20. “Eles diziam que era ‘fosfórico’ estudar especiação”, diz aos risos Vanzolini para um flutuante repórter. Fosfórico? “Era o jeito deles para chamar alguma coisa de bobagem”, explica, e emenda: “Naquela época o pessoal era tarado por descrever a espécie, dar nomes e só. Mas para mim isso era bobagem. O que eu queria saber era de evolução. De como as espécies apareciam.”

Um grande mistério em seu tempo, que desafiava o mais fundamentalista dos darwinistas, era a fabulosa biodiversidade amazônica. Tantas espécies, em inúmeras variações, convivendo em um espaço tão denso e próximo não correspondiam à lógica da seleção natural. Foi um estudo de Vanzolini, e insights do naturalista Ernest Williams, que determinou que antigas, e diversas, mudanças climáticas na região criaram espaços secos e isolaram certas áreas da floresta. Dessa forma os animais se diferenciavam e, quando a mata se adensava novamente, as novas variações passavam a conviver. Sem macular a mecânica evolutiva, Vanzolini ajudou a estreitar a relação entre geologia, clima e estudos estatísticos na compreensão do desenvolvimento e da distribuição da vida na Terra.

Espécie nômade, Vanzolini tornou-se doutor em Harvard, onde estudou e conviveu com lendas da biologia como o evolucionista Ernst Meyer. Embrenhou-se em todos os ecossistemas a que teve acesso. Tinha um barco laboratório na Amazônia, onde passou incontáveis dias coletando espécies, mapeando habitats. Circulou em todos os bares de São Paulo e do Rio, habitats de espécimes de raro talento como Adoniran Barbosa, Chico Buarque, Toquinho... Nessas explorações, urbanas e selvagens, que compunha.

Nada mau para um médico de formação. Por uma bem-aventurada dica de um amigo de seu pai, Paulo dispensou a faculdade de biologia dos anos 40 para ingressar em medicina. “O pessoal da biologia era muito boa gente. Mas quanta ideia errada...”, sentencia sem rodeios e segue contando as querelas internas, rivalidades pessoais e ideológicas da academia com a língua tão rápida quanto a dos répteis que estudou.

Não à toa, Ana, sua esposa, não se acanha em manter-se por perto para lembrar do acordo que fez com Vanzolini antes da entrevista: não abrir muito o bico sobre as histórias de samba... Sem muito esforço do jornalista, Paulo disseca sinceras – e quase sempre hilárias – críticas a grandes nomes da música brasileira. “Ele não está nem aí”, explica Ana, “e depois um monte de gente que gosta dele fica chateado. Ouviu, Paulo?!” Ele apenas ri, e segue falando sobre outro mérito que, em sua opinião, é maior que qualquer samba.

“Perto do que já fizemos com o meio ambiente, era para estar muito pior. A natureza vai seguir firme. quem vai se dar mal somos nós”

No gestão de Carvalho Pinto no governo de São Paulo, Vanzolini foi responsável por criar a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o maior financiador científico do Brasil por décadas. Foi assim que ele, e tantos outros, conseguiu trazer para a cidade grande incontáveis criaturas da floresta. Como diretor do Museu de Zoologia da USP, ele ampliou a coleção de répteis de 1.200 exemplares para 230 mil. Dezenas de milhares coletados por ele mesmo. “Só do Chile voltei com 10 mil lagartos na mala”, conta, explicando sem constrangimento a necessidade de matar para estudar e identificar espécies.

Um macaco chamado Vanzolini

Além de sambas, 15 animais levam “Vanzolini” no nome. Quase todos répteis ou anfíbios. Entre três insetos, uma aranha e um mamífero apenas. Saimiri Vanzolinii, mais conhecido como macaco-de-cheiro, uma espécie ameaçada da Amazônia. Ele conta o motivo de o macaco ter ganho tão boêmio sobrenome: “Um amigo avistou esse macaco e suspeitou que não havia sido identificado. Ele bem que tentou, mas fui eu quem conseguiu atirar em um”. Matou o macaco? “Claro! Está empalhado até hoje no Museu da USP.” Crueldade? “Ora, claro que não. Os cientistas são os maiores conservacionistas do mundo!”

Por isso, a desilusão com o estado do planeta. Fala, seu Paulo: “A coisa vai de mal a pior. Não tem um político que entenda de meio ambiente. E nem querem entender. O Ibama é uma porcaria. E as ONGs também!”. As ONGs? “Sim. Tem umas até com boas intenções”, ele reconhece, “mas ninguém estudou. Vira só uma conversinha fiada esse papo de ecologia hoje em dia.” Sob a orientação da esposa, recolhe seus argumentos antes de citar nomes. E deixa claro que seu pessimismo em relação ao futuro se desfaz quando vê, por exemplo, a serra do Mar. “Perto do que já fizemos, era para estar muito pior. A natureza vai seguir firme, forte sempre. Quem vai se dar mal somos nós...”.

Hoje Vanzolini está oficialmente aposentado. Está certo de que nunca mais vai pisar na Amazônia. Nem entrar em um laboratório. Nem orientar mais teses ou pesquisas. Escrever músicas? “Nem pensar! É uma coisa muito obcecante. Não tenho mais paciência pra isso. Encerrei minha carreira”, resume, contando que das poucas atividades que mantém, uma é frequentar um samba aos sábados no bar de um amigo perto do Palmeiras.

E emenda, mantendo sempre o papo sob sua batuta, contando do encontro que teve com uma onça. Ou do hino que compôs para seu batalhão. Dos bondes que pegava depois da USP até os bares do centro de São Paulo. Ou de como japoneses adoram cantar “Honda” (escrevendo com H mesmo) em karaokes. De como nunca, nunca mesmo, foi picado por cobra ou se deu mal com qualquer bicho. Ou de como, no fundo, sabe que ele, Paulo, é também um deles. Explica: “Claro que eu me sinto um animal. Um primata. Não tem diferença”. Nenhuma? “Bem, nós temos uma incrível habilidade social. Só nós temos cultura. É a única diferença.” E quanto à arte? E quanto aos sambas e à poesia? Isso não tem a ver com o nosso papel como espécie, como criaturas em evolução? Ele me olha de lado, em um misto de surpresa e preguiça da pergunta. “Eu sei lá. Nunca pensei nisso, meu filho.”

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