por Ronaldo Bressane
Trip #172

Como um quase campeão de body-board se tornou um dos compositores mais inventivos do país

“Aos seus olhos eu sou apenas um incômodo que veio do nada para empestar o mundo.” Assim Fernando Catatau, 37, se apresentava em O método tufo de experiências, seu premiado álbum de 2006, considerado o título do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte – e que colocou o guitarrista, compositor, produtor e cantor cearense no centro da cena musical brasileira. Perto de lançar o terceiro trabalho, o líder do Cidadão Instigado segue o mesmo incômodo – ou quase. “Sou um libriano obsessivo: fico totalmente focado num negócio, mas daí depois deixo pra lá. E nunca consigo decidir nada”, define-se, ecoando a característica de um dos personagens recorrentes de suas canções – o Zé Doidim.

Enquanto bebia um café fraco na Livraria da Vila, num intervalo entre a gravação do novo Cidadão Instigado e do próximo álbum de Arnaldo Antunes, que produz, Catatau filosofava. “Todo ser humano coloca máscaras. O El Cabrone, por exemplo, é um personagem meu que é caçador do Zé Doidim – mas os dois são faces da mesma personalidade. Todo ser humano é duplo”, avisa com modos tímidos o magrelo barbudo de feições árabes, tererês presos nos cabelos pelos ombros. Um homem-bomba em potencial, claro. E, esses personagens, como surgem? “Eu desenho que só, entendeu. Daí saem essas figuras, como o Pinto de Peitos – que as pessoas não acham estranho ter peitos, e sim ter o bico escuro. No próximo disco vai ter uma música sobre umas ovelhinhas que vão pulando uma cerca, mas não sabem que tem um abismo do outro lado... até que viram uma montanha de ovelhas: elas apodrecem e o mundo passa a ser dos tapurus, aquele verme, saca.”

O surrealismo é uma face natural da realidade para nosso Zé Doidim. Ele morre de medo de fantasma. “Já ouvi muito espírito vir falar comigo. Teve uma época que eu fiquei noiado com essas coisas. Acho que tenho sensibilidade para ouvir essas coisas. Uma vez viajei com DJ Dolores, e eu não queria entrar no nosso hotel porque estava cheio de mal-assombro. Era Brixton [Inglaterra], uma cidade cheia de espírito. Acredito mesmo nessas coisas. Sempre senti muito essas presenças. Escutava amigos me chamando... E amigos vivos! Mas nunca quis saber de trabalhar a mediunidade. Dizia pra mim: ‘Deixe pra lá!’...”

E, esse lado obsessivo, como é que funciona? “Ah, quando eu surfava, ia à praia às 6h e só saía às 19h. A mesma coisa com fotografia. Andava de skate, resolvi fotografar, comprei uma Pentax, um livrão grosso de fotografia, decorei todas as aberturas possíveis. Outra hora quis ser cozinheiro, só fazia cozinhar. Agora, eu tenho essa coisa de colecionar instrumentos...”, confessa o proprietário de, no momento, uma Hofner semi-acústica, uma Giannini craviola, uma Silvertone 1452, uma Electra, uma Finch Flying V... entre diversas outras. Em busca do timbre perfeito, Catatau não economiza com pedais, mesas de som, gravadores de rolo, baixos, teclados: “Eu tô sempre atrás de um cacareco”.

Curiosamente, o bodyboard o conduziu à música. Já era um aficionado de Carlos Santana, com quem é freqüentemente comparado pela pegada latina e pelo fraseado limpo, mas não tinha acesso a suas obras completas – até que um compadre de ondas, um ruivo galhofeiro, surrupiou uma fita cassete do pai e o presenteou. Assim Catatau ficou amigo de Rodrigo Amarante, ex-Los Hermanos e atual Little Joy, que tem família no Ceará. Também ali na praia do Futuro – “que na época era limpeza, hoje está destruída por causa do turismo e da exploração sexual pelos gringos” – conheceu Régis Damasceno, guitarrista do Cidadão e também de Guizado, Lucas Santtana e Júnior Boca, um dos guitarristas mais assediados da praça (Otto, Instituto, Psychojazz, Barbara Eugenia). Catatau tentou estudar piano, aos 9 anos de idade, mas desistiu – só aos 13 foi pegar numa guitarra, após ouvir Pink Floyd: “Avisei à minha mãe que seria roqueiro e pedi uma Giannini Les Paul preta”, conta. O instrumento só seria retomado quando ele tinha 19 anos e já desistia das ondas.

“MUITO ESPÍRITO VEIO FALAR COMIGO. TEVE UMA ÉPOCA EM QUE FICAVA NOIADO COM ESSAS COISAS”

MENUDO É BACANA
Em São Paulo, no fim dos anos 90, é que Catatau foi ter algumas aulas – com Danny Vincent, seu colega na banda de blues Companhia Blue. Por pouco tempo. “Não tem jeito, sou autodidata mesmo.” Difícil se enquadrar. Apesar de seu toque peculiar, que o identifica à primeira audição, o lado solista de Catatau sublinha um compositor eclético, capaz de no mesmo álbum empilhar referências ao hard rock, à música árabe, ao carimbó paraense, ao reggae, ao funk, ao folk, ao tecnopop dos anos 80, ao ponto de umbanda, à salsa e à música ultra-romântica – seu herói maior é Roberto Carlos. “Em Fortaleza você sempre acha que é alguma coisa, mas não é porra nenhuma. Eu queria ser punk, andava com coturno e um cadeado no pescoço, mas tinha um mullet enorme”, recorda. Na época, seu guitarrista favorito era Robert Smith, do Cure, ainda hoje forte influência. Por ter tantos gostos diferentes e ainda assim manter um estilo único, Catatau é fortemente contrário à idéia de “movimento”.

“Não acredito nessa coisa de movimento, cena, nada nada! Não tenho paciência pra essas coisas não. Tenho dez anos de trabalho e vêm me falar que eu sou revelação da nova cena da MPB, como escrevem por aí? Se eu ainda estivesse junto com um monte de cearense pra fazer movimento... uma época quiseram inventar uma ‘invasão cearense’: juntaram eu, Karine Alexandrino, Montage... Nada a ver. Trabalho sozinho e trabalho com todo mundo ao mesmo tempo: Vanessa da Matta, Los Hermanos, Nação Zumbi, Arnaldo Antunes... não sou o Lanny Gordin da minha geração, nunca vou ser. Povo é muito órfão do tropicalismo, mas hoje não tem nada disso não. Existem é turmas!”, vocifera, ufa, de uma vez, o suave terrorista. 

 

“NÃO ACREDITO NESSA COISA DE MOVIMENTO, CENA MUSICAL, NADA! POVO É MUITO ÓRFÃO DO TROPICALISMO, MAS HOJE NÃO TEM NADA DISSO NÃO. EXISTEM É TURMAS!”

E, afinal, de onde vem esse apelido Catatau? Não é tão baixinho assim... “Quando eu tinha 14 anos, era o menor da classe, aí saiu essa onda. Eu tinha uma voz fanha, era difícil conversar. Por isso acho que sempre tenho um olhar para o excluído, o diferente, o que está deslocado...” Já se sentiu vítima de preconceito? “Todo mundo é preconceituoso. Eu mesmo: tenho preconceito com pessoas que são lindas demais. Por isso é que sempre estou me reciclando. Ouço um troço e penso: ‘Isso aqui é mó paia. Mas... será que é paia mesmo?’. Aí ouço de novo. Já quebrei minha cara várias vezes. Principalmente coisas românticas dos anos 80, George Michael... esse é massa! Aquela ‘By my do Menudo, eu até hoje acho demais! Tinha coisa de que eu gostava e hoje acho horrível, tipo aqueles guitarristas virtuoses... Acho que minha virtude é perceber as combinações de um estilo com outro. Gosto de pegar um baixo de reggae e juntar com uma levada de carimbó, por exemplo... Não pode ter medo de misturar as coisas”, ensina o sábio guitarrista, com olhar de quem já viu muita coisa. Medo, só de mal-assombro.

Agradecimento Espaço da Vila – Berçário e Recreação, r. Antônio Mariani, 58, Butantã, São Paulo – SP – CEP: 05530-000. Tel.: (11) 3727-2700, www.espacodavila.com.br

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