Desenha, Galvão!

por Diogo Rodriguez

Chargista da Folha há mais de dez anos, Jean Galvão é discreto e quer fugir dos clichês

Na revista Recreio, Jean Galvão conquista as crianças fazendo piadas de igual para igual com os pequenos. Fica mais sério na página dois da Folha de S.Paulo, onde faz humor com o noticiário de política. Seu recém-lançado livro , tem uma visão mais pessimista e melancólica, sem esquecer que mesmo tristeza pode render risadas. Cartunista há 20 anos, Jean transita entre os três mundos distintos sem hesitar.

Inspirado na infância por desenhos animados clássicos como Pica-Pau, Jean começou a carreira ilustrando para sindicatos de jornalistas. Hoje um desenhista requisitado, conversou com a Trip em São Paulo, longe de sua casa em São José dos Campos (interior paulista).

Como é sua rotina de charge?
De manhã leio as notícias na ordem: caderno cultural, notícias e colunistas, de preferência de mais de um jornal. Anoto coisas que poderiam ser exploradas. Depois disso, vejo na internet o que todo mundo fez sobre aquilo. Procuro evitar ter uma ideia que alguém já teve. Já aconteceu e tive que rasgar. Leio alguns blogs de jornalistas também. Aí vou rabiscar. Vou pensando no olhar, o que significa. De todos, o processo de charge é o mais difícil. Apesar de os temas estarem ali, você não pode cometer um erro de informação. Imagina falar de um assunto internacional e errar uma coisa geográfica?

Já aconteceu com você?
Não. Se não sei o suficiente, não faço. Como tudo, existem os clichês e é interessante tentar fugir deles. A bolsa [de valores] caiu, aí você vai fazer a bolsa caindo em cima do cara. Quando os primeiros caras fizeram isso, legal, mas depois isso começa a ser repetido. Claro que tem algumas muletas, mas mesmo assim, tem que reinventar. Acredito que as pessoas fazem com o meu trabalho o que faço com o delas: fico vendo o que todo mundo fez. Vai ficando cada vez mais difícil porque na política os assuntos se repetem, corrupção, eleição, enfim. Mas é um trabalho fascinante. É um prazer enorme quando você consegue uma boa ideia.

Qual é a pior parte da profissão?
Para mim, quando não consigo uma boa ideia. É ruim, cara. Todo mundo vai ver que está um lixo. Estranhamente, às vezes, as pessoas gostam daquela e para a que você achou superlegal ninguém dá a mínima. Você está nessa porque em algum momento da sua vida viu um cara que fazia uma coisa linda. E você entra naquilo e quer fazer também, é o que dá prazer. Trabalhar com desenho é trabalhar com o que gosta, mas é dirigido para um veículo, tem todas as pressões normais, prazos, tem que ficar bom, mas por dentro, você quer se agradar. É uma busca constante. É um pouco ingrato. Você tem uma ideia muito boa num dia e só dura um dia, a charge só dura isso. No outro, está embrulhando peixe, perdeu a força, ficou velho. Uma charge de cinco anos atrás está datada. Diferente de um cara que cria uma música genial, ela vai se repetir todo dia, toda hora.

"É ruim, cara [quando não consigo uma boa ideia]. Todo mundo vai ver que está um lixo. Estranhamente, às vezes, as pessoas gostam daquela e para a que você achou superlegal ninguém dá a mínima."

Fazer um livro de um personagem é um jeito de escapar disso?
Ele fica. Pode ser editado. O Ziraldo fala muito isso. Se você não tiver um personagem, as pessoas não vão saber quem você é. Você pode fazer charges geniais todos os dias, poucas pessoas vão ligar seu nome. É verdade. Já escreveram para a Folha falando de um trabalho que não era o meu. O contrário também, falando de um meu, pensando que era do Angeli, do Bennet. O leitor médio não liga uma coisa à outra. Em termos de retorno, tenho mais com o público infantil. Faço uma coisa que geralmente o pai também gosta de ver. Ele tem esse alcance. Cada vez se lê menos jornal, ele atinge um público restrito e a charge parte do pressuposto de que esse cara lê o jornal, ela não vem mastigada.

Como você começou a se interessar por desenho?
A influência principal foi na infância, com o desenho do Pica-Pau, os clássicos. Meu irmão mais velho copiava o Pica-Pau, eu também. Quando você consegue fazer mais ou menos, isso te dá um empurrão para seguir. Comecei a sacar ao longo do tempo que nas capas de revistas em quadrinhos tinha uma ideia. Por exemplo, no Tio Patinhas, tinha um desenho dele, mas também uma "gag" com o dinheiro e uma graça. Isso me interessou muito: ter um tema e transformar numa coisa engraçada. Essas "gags" tem muito em desenho animado: Droopy... O Tex Avory [diretor, cartunista e dublador, morreu em 1980] era o cara engraçado por trás dos desenhos. Os melhores do Pica-Pau passaram por ele, do Pernalonga. Ele, Chuck Jones, o cerébro da coisa engraçada. Ele inventou a coisa do [personagem] se espantar e o olho sair fora. Essas coisas me interessavam. Depois Tom e Jerry. Tanto que odiava quando teve uma série deles na qual eles eram bonzinhos, não acontecia nada. Hannah Barbera, Flintstones, Jetsons, depois destruíram esses desenhos, ficaram bonzinhos. O Pica-Pau que é feito hoje é lamentável, ele é um idiota! Mais tarde descobri Henfil, Chiclete com Banana, Mad, o Laerte, e depois outros. Aí [pensou]: "Existe uma coisa chamada cartum". Quando eu tentava desenhar uma coisa séria - super-herói, corpo humano - não conseguia. Nos cantos, ficava desenhando bonequinhos. Depois comecei a fazer tiras. Quando eu tinha 16 anos ganhei um minibuggie por causa de um desenho, num concurso da Claybon.

Foi a primeira vez em que você ganhou alguma coisa por um desenho?
Sim. Foi bem legal. Mais tarde fui trabalhar com desenho, com 18 anos. Fazia boletim de sindicato. Chamar para assembleia, greve.

Como fez o Laerte?
Isso. Eles tinham esse livro do Laerte. Só que eles recortavam o livro [risos]. Descobri que o Henfil também fazia esse tipo de coisa e eles tinham esse material. Foi uma porta de entrada interessante porque convivi com jornalistas. Eles me diziam para ler, porque só desenhando eu não teria conteúdo para por no papel. Foi o que me forçou a ler política, de tudo. Eu vinha de uma influência de quadrinhos, Mônica, Disney, e comecei a ter influência dos autores nacionais que não são dessa linha mais comercial, onde a criação é mais importante.

E o que você começou a ler?
Jornal diário. Depois pulei para livros. Isso abriu para muita coisa. Eu lia quadrinho. OK, mas ler só isso, por mais que tenha coisa boa, tem muito lixo. Tem que procurar referência da fonte. Fiquei vários anos em vários sindicatos. Depois, entrei em um jornal diário para fazer charge, o Vale Paraibano, de São José dos Campos, foi em 1993. Fiquei até 1999. Depois teve um concurso nacional da Folha em várias categorias e passei em primeiro de charge. O prêmio era publicar por três meses; se eles gostassem, continuava. Deu certo, estou lá até hoje. Como em 1999 a internet entrou com tudo, isso fez com que eu não precisasse frequentar a redação. Fui várias vezes, trabalhei em alguns casos específicos.

Isso é bom?
É bom e ruim. A bagunça da redação era legal. Às vezes o começo de uma ideia vinha do comentário de alguém. Mas de vez em quando atrapalha, você precisa de uma ideia e não consegue se concentrar. Acho mais positivo que negativo. Hoje divido o espaço com um pessoal de design gráfico, é legal. A gente troca ideia. Para não ficar aquela coisa isolada. Além da Folha, na mesma época fui convidado para fazer um teste de ilustração para a Recreio. Depois de um tempo me perguntaram se eu fazia tiras. Tenho uma tira semanal, dá um retorno incrível com a criançada.

Elogiam, perguntam coisas?
É, e as vezes até perguntam coisas técnicas, o que usei para colorir ou sugerindo. Ou pedindo para fazer um desenho. Às vezes mãe pedindo para o filho, querendo fazer uma surpresa no aniversário. Eu faço. Eles mandam para a redação e a redação encaminha para mim.

O que mais já te pediram?
Um cara pediu para que eu desenhasse o personagem dele [risos]. Eu fiz, cara! Acho que ele pôs num blog, coisa assim.

Tentei fugir do que eu via de personagens idosos de comerciais, que são descolados em comercial de banco. (...) Fiz uma velhinha deprimida, religiosa, muito solitária, medrosa, toma muito remédio."

E o livro novo, ?
Fiz essas tirinhas em 2004, 2005, para o Jornal do Brasil, diárias. Eu tinha esse personagem, uma vó inicialmente inspirada na minha. Tentei fugir do que eu via de personagens idosos de comerciais, que são descolados em comercial de banco. Estilo Cocoon. Ou a velhinha que está toda fraquinha e de repente é forte e arrebenta com o bandido. Tentei fugir dessa "gag" que virou clichê. Fiz uma velhinha deprimida, religiosa, muito solitária, medrosa, toma muito remédio. Peguei esse universo e explorei. Ela está o tempo todo benzendo água; ouve um radinho e vai benzer a água do chuveiro, a chuva, o rio no fundo da casa dela. Conversa com os remédios às vezes.

Sua avó gostou?
Ela já está com 80 e poucos, não entende muito, mas viu as tirinhas. [Disse] "Você está brincando comigo aí, né?".

Vai lá: www.jeangalvao.com.br

fechar