Moondog era gênio da música, mas gostava de viver como um mendigo nas ruas de Nova York
Moondog era considerado um gênio da música, mas gostava de viver como um mendigo nas ruas de Nova York – como se a solidão e a penúria fossem a única forma de defender a beleza de sua arte
A orelha decepada de Van Gogh, a enorme tristeza de John Lennon abandonado por Yoko, as crises asmáticas e as noites insones de Marcel Proust, a surdez e o mau humor de Beethoven, a penosa solidão de Carmen Miranda em Hollywood, a rancorosa carta que Franz Kafka escreveu (mas nunca entregou) para o pai, o suicídio de Mark Rothko… Na polaridade entre a vida e a arte, beleza e dor sempre caminharam de mãos dadas.
A existência do hoje praticamente esquecido compositor e poeta americano Louis Thomas Hardin foi com certeza uma das mais interessantes, dolorosas, excêntricas e improváveis do século 20. Ele nasceu em Marysvile, no Estado do Kansas, em 1916, em uma família evangélica e puritana. Sonhava ser pastor como o pai, mas, depois de sofrer um acidente com dinamite que o deixou cego, mudou-se sozinho e sem dinheiro para Nova York e adotou o nome de Moondog – em homenagem a um cachorro vira-lata que perambulava pela sua vizinhança e não parava de latir numa noite de lua cheia.
VIKING DA SEXTA AVENIDA
Por opção, Moondog não tinha casa. Vivia na rua como um mendigo, pedindo esmolas e vendendo panfletos com suas poesias. Instalou-se permanentemente na esquina da rua 54 com a Sexta Avenida, onde tocava diariamente geniais composições inspiradas por ruídos urbanos como os sons do trânsito ou do metrô, usando estranhíssimos instrumentos por ele mesmo inventados e batizados – como a trimba, o Oo e o Ooo-ya-tsu. Sua única roupa era uma fantasia de Thor, o deus nórdico do trovão, feita de trapos, que incluía um bizarro chapéu com dois enormes chifres. Por causa dessa fantasia, Moondog também passou a ser conhecido como o Viking da Sexta Avenida. Ele viveu e tocou naquela esquina quase todos dias, desde 1940 até 1974.
A poucas quadras dali fica o Carnegie Hall, onde já naquela época tocava a Orquestra Filarmônica de Nova York. A caminho dos ensaios, um grupo de músicos da orquestra costumava parar e admirar as geniais performances de Moondog. Um dia levaram até lá o célebre maestro Artur Rodzinski, que se apaixonou pelo Viking da Sexta Avenida e passou a gravar e promover sua música.
Na efervescência do caldeirão cultural da Nova York dos anos 60, até a radical marginalidade de Moondog encontrava espaço. Num mundo careta e dispersivo como o de hoje, ele certamente não seria reconhecido. Mitos do jazz como Charlie Parker e Benny Goodman viraram fãs. Os então aspirantes a compositor Steve Reich e Phillip Glass foram muito influenciados por ele – e Glass deu abrigo a Moondog em seu apartamento por um tempo. Moondog é considerado um precursor do minimalismo. Composições como “Bird Lament”, “Dog Trot” e “All is Loneliness” (brilhantemente interpretada por Janis Joplin) são clássicos de um gênero – entre o erudito, o jazz, e o puro mistério – cuja principal particularidade é não ter nada a ver com nada.
O mundo quis integrá-lo e lhe dar conforto. Mas Moondog se recusava a deixar de ser um genial e indomável vira-lata – como se quisesse defender a beleza de sua música com solidão e penúria. Em 1974, seguindo um velho sonho, foi perambular na Alemanha. Só depois de muitos anos, já velhinho e cansado, acabou se deixando adotar por uma família alemã numa remota cidadezinha da Westfália, onde viveu até morrer em 1999.
Vale muito a pena escutá-lo no YouTube.
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br