A cura
Marcello Dantas, curador de arte contemporânea e criador de museus pelo mundo, há mais de 40 anos mantém uma relação intensa com o Japão
O entrevistado recebeu a Trip em seu jardim vestindo um haori – blusa larga que é uma espécie de quimono curto. É uma criação de Yohji Yamamoto, um dos grandes estilistas japoneses da atualidade, que divide seu ano entre Tóquio e Paris. A casa, repleta de natureza e arte, estava cheia de objetos nipônicos, como um trabalho do “artista floral” Makoto Azuma, que cria “esculturas botânicas” contemporâneas na velha tradição dos bonsais e ikebanas.
Apesar da integração do jardim à construção, do cuidado minucioso com a qualidade dos materiais e do uso sutil de tecnologia, essa casa não fica no Japão – pelo contrário, fica quase precisamente no antípoda da Terra do Sol Nascente, do lado oposto do planeta, no Alto de Pinheiros, um bairro rico e arborizado de São Paulo. O anfitrião até tem os olhos ligeiramente puxados, mas não por herança nipônica: são traços herdados dos indígenas sul-americanos. Marcello Dantas é filho de mãe boliviana e tem antepassados também no Nordeste brasileiro.
Ele nasceu no Brasil, mas, ao longo de seus 53 anos, ganhou o mundo criando museus e montando exposições de arte contemporânea de alto impacto. Viveu por meses na China, construindo o monumental pavilhão brasileiro na Expo de Shangai, ergueu museus icônicos na Espanha, na Colômbia, na Alemanha, no centro de São Paulo e no meio da natureza selvagem do Piauí. Entre seus muitos projetos, estão também iniciativas que têm a capacidade de fazer dos museus algo de apelo popular em escala, como o Museu do Futebol e o Museu da Língua Portuguesa, ambos em São Paulo.
No caminho, conviveu intensamente com alguns dos mais instigantes artistas contemporâneos do mundo, como o chinês Ai Weiwei. Com ele, deu um mergulho no Brasil profundo, que resultou na exposição Raiz, a qual levou o trabalho do chinês a milhares de pessoas em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.
Marcello viaja tanto que, pelos seus cálculos, percorre, em média, 100 quilômetros a cada uma das horas do ano, de carro ou de avião. Ou seja, durante nossa conversa de duas horas, ele ficou devendo 200 quilômetros de deslocamento para sua contabilidade. Com tanta estrada percorrida, ele gosta de se definir como “um terráqueo”. “ Minha identidade não cabe na fronteira brasileira”, diz.
Conhecedor de tantas culturas do mundo, ele escolheu uma para se identificar: a japonesa. Em nome do conforto, seu guarda-roupas tem praticamente apenas peças nipônicas – além de “uma coisa ou outra chinesa”. Os valores que ele leva para a vida e para o trabalho também estão cheios de influências do Oriente. De feijão ele só gosta se for doce, na sobremesa. A proximidade cultural lhe rendeu o convite do governo japonês para criar a primeira Japan House do mundo, uma espécie de embaixada cultural japonesa encravada na ponta da avenida Paulista.
O que o Japão faria?
Marcello também está preocupado. O colapso ambiental da Terra é tema frequente de seus museus, e é também assunto recorrente dele a profunda crise existencial do Brasil. “É muito louco o país não entender que, neste momento histórico, o trabalho contra os artistas é um trabalho contra toda a nação.”
Para os dois problemas, ele propõe uma solução semelhante: olhar para o Japão. Lá, ele acredita, talvez encontremos inspiração e soluções de design para uma vida mais sustentável e equilibrada. Lá, também, talvez haja um fantástico parceiro, com interesse por nossa cultura e complementaridade com nossa economia. “O grande crescimento do Brasil sempre se deu pela relação com o Japão”, diz, enquanto lamenta o erro de o país se colocar sob a influência dos Estados Unidos, uma potência agropecuária e industrial concorrente do Brasil, cheia de interesses opostos aos nossos.
Para Marcello, que integra o conselho do Trip Transformadores e assina a direção artística do evento de premiação desde a primeira edição, em 2007, a saída para esse momento difícil que vivemos pode estar bem debaixo dos nossos pés. No chão que pisamos, de onde emana uma cultura única, que floresceu na relação com a natureza mais exuberante do mundo. E também mais embaixo ainda, do outro lado deste planeta sofrido, nos aprendizados que podemos ter desse olhar para lá. “Seria maravilhoso se o Brasil aprendesse um pouco com o Japão sobre desperdício”, diz, entre muitas outras lições que atribui ao contato com os japoneses.
Trip. Explica o que é que você faz no seu trabalho.
Marcello Dantas. Eu olho para o acontecimento da arte sob o ponto de vista do que vai acontecer com o espectador. A maior parte das pessoas olha para a origem, para a intenção do artista. Eu acho que a arte não acontece até a hora em que ela chega aos olhos e aos ouvidos de quem estiver do outro lado da linha. Então me aproximei do pensamento, do olhar, da sensibilidade das pessoas, para tentar criar experiências. Podem ser, sim, de arte contemporânea, que é o que eu tento fazer, mas também de história, de ciência, de identidade, de cultura, de língua, de contato entre realidades, de aproximação. Podem ser experiências comerciais, de marca. Tento criar um caminho para trazer as pessoas para dentro desse universo imaginário que está criado, seja da cabeça de um artista, seja de uma temática, como o Museu da Natureza, na Serra da Capivara (Piauí), ou o Museu da Gente, em Sergipe. Quero que elas entrem naquele lugar e se sintam pertencendo. Isso é uma técnica que desenvolvi nos últimos 30 anos.
“É muito louco o país não entender que, neste momento histórico, o trabalho contra os artistas é um trabalho contra toda a nação.”
Marcello Dantas
Nesse tempo todo de carreira, de que você se orgulha especialmente? O Museu da Natureza, que abriu em 2018 na Serra da Capivara, é um exemplo que eu adoro, porque é um lugar simbólico muito forte, que existe antes da cultura brasileira. Antes da cultura, tinha o substrato com o qual se fez a cultura, milênios depois. Parece uma história muito remota, mas, no fundo, é sobre hoje. Porque é um museu que fala muito do que a gente conseguiu aprender, olhando para trás, sobre as mudanças climáticas, que foram determinantes para a história das migrações humanas, mas que hoje estão também na pauta do dia. O museu olha para a matriz do conhecimento pré-histórico, geológico, natural do mundo para ensinar quem fica e quem vai a cada vez que o clima muda. E tem uma afirmação forte: no momento em que o Brasil queima, perde e fecha seus museus, construímos um prédio novo, grande, poderoso, no meio do nada, para gritar que temos algo a dizer desde sempre, que não tem sido ouvido. Além disso, na arte contemporânea, foram muito marcantes as exposições do Ai Weiwei, da Patrícia Piccinini [artista australiana que faz pintura, vídeo, som, instalação, impressões digitais e esculturas] e do Anish Kapoor [um dos escultores mais influentes do mundo, famoso pelas dimensões de sua obra e por extrapolar as paredes dos museus].
São mostras em que você fez mais do que reunir um corpo de trabalho que já estava pronto e expor, não é? O meu trabalho com os artistas é muito diferente dos curadores convencionais. Fico muito próximo deles, na tentativa de criar algo com a obra que gere uma experiência única. Com o Anish, construímos um pavilhão debaixo do Viaduto do Chá, onde as pessoas tinham uma experiência metafísica de um tornado que subia para os céus [impulsionado por uma turbina]. Desenvolvi tudo o que tem por trás daquilo: a engenharia, a política, a forma de articular as coisas. Estou propondo para os artistas coisas que nem eles tinham visto no próprio trabalho. Com o Ai Weiwei, isso foi muito forte e resultou em sua articulação com o Brasil, um país que ele não conhecia e do qual tinha só uma memória invertida, porque seu pai [o poeta Ai Qing, condenado a limpar banheiros após a Revolução Cultural do regime de Mao Tsé-Tung] tinha estado aqui nos anos 50, antes de seu nascimento. Nesse processo, a gente foi desvendando coisas que estavam numa memória anterior, e que produziam uma conexão poética entre a sensibilidade chinesa dele e a sensibilidade brasileira. O processo foi de ir se livrando de tudo aquilo que era desnecessário, para chegar ao que é essencial: a árvore, a semente, a raiz.
Um processo que resultou no grande artista contemporâneo da Ásia trabalhando junto com artesãos de Juazeiro do Norte. Sim. Porque tem coisas que só se sabe com a mão. Algo acontece quando dois artistas se juntam. No Brasil, tem essa distinção entre artista e artesão, o que não faz sentido.
“Seria maravilhoso se o Brasil aprendesse um pouco com o Japão sobre desperdício.”
Marcello Dantas
Não é assim em outros lugares? Não. No Japão, absolutamente não: é a mesma palavra. Na China também. Eles valorizam essa noção de que aquilo que você faz com as mãos é uma linguagem. Você fala através do objeto, do gesto, das mãos. E essa é a beleza desse contato entre Ocidente e Oriente. É quando a gente se despe das camadas de cultura, dos filtros, e vai de volta ao que é essencial. Aí conseguimos estabelecer pontes fabulosas, porque tudo está conectado. No fundo, as diferenças entre as pessoas foram todas aprendidas: a humanidade é uma só. Esses saberes de como cada um atua sobre a natureza, sobre o objeto, como trabalha o fogo, a cerâmica, a porcelana, a madeira, isso tudo é muito rico. E vai chegando até o contemporâneo. Porque, quando a gente usa tecnologia, computação, ultrapassa a linguagem humana para falar a linguagem da máquina, que também é uma só no mundo todo. A língua é uma beleza, uma maravilha da cultura – eu celebro a língua portuguesa o tempo todo, fiz o museu dela, em São Paulo [o Museu da Língua Portuguesa será reinaugurado este ano, depois de ter sido destruído por um incêndio em 2015]. Mas, às vezes, ela é um separador das pessoas, que nos impede de nos conhecermos. Há muitos anos decidi que o meu trabalho seria internacional, porque eu tinha essa habilidade, estudei diplomacia [no instituto Rio Branco, em Brasília]. Muito do que eu faço é traduzir, conectar o que está distante, buscando a essência por baixo das diferenças superficiais. Trabalho muito estabelecendo conexões de sensibilidade com os povos indígenas – no Xingu, por exemplo. E também conectando com os povos asiáticos. É óbvio que a gente nunca vai falar mandarim ou japonês com fluência – leva tanto tempo para ser fluente na língua que um japonês só é considerado alfabetizado aos 16 anos de idade. Então, a gente tem que encontrar outras portas.
A moda é uma delas. Por exemplo, o que é que você está usando agora? Hoje estou de Issey Miyake embaixo e Yohji Yamamoto em cima. Eu uso praticamente só roupa japonesa, uma coisa ou outra chinesa. O motivo é simples: é extremamente confortável, muito prático para a minha vida louca, porque estou sempre dormindo no avião, e saio direto para alguma reunião. Roupas japonesas me permitem dormir com conforto e estar apresentável no dia seguinte, sem cara de amassado. Acho que a radicalidade de estilo que os japoneses trouxeram, com Yohji Yamamoto, Issey Myake e Rei Kawakubo, transformou o mundo da moda num lugar muito interessante. Hoje olho para Prada e Gucci e acho brega. Os japoneses desenvolvem coisas com altíssima tecnologia, mas se baseiam num jeito milenar de pensar, uma sabedoria essencial, que diz respeito ao conforto. Por exemplo, olha aqui [ele estende o braço na minha direção]. A manga de uma camisa tem que ser larga, muito larga, porque isso libera o ar – ventila o corpo todo. A gola de uma camisa tem que ser virada, para que ela não esfregue no gogó. E eles sabem que botão é uma porcaria, só serve para estourar, ficar torto, perder tempo... Acho horroroso gola de camisa, passar roupa, engomar.
E de onde vem essa influência da cultura japonesa na sua vida? É uma história longa. Meu avô nasceu na Bolívia, casou com minha avó quando ela tinha 13 anos, e teve 13 filhos, incluindo minha mãe, que também é boliviana. Um belo dia, minha avó descobriu que ele tinha mais oito filhos com outra mulher, numa outra cidade. A outra esposa dele era japonesa. Tinha umas musiquinhas de infância que a gente cantava achando que eram músicas quéchuas bolivianas e fomos descobrir depois que eram canções tradicionais japonesas. A outra mulher provavelmente as ensinou para o meu avô, que as trouxe para o outro lado da família. Minha relação com o Japão é engraçada. O primeiro filme que fiz, o primeiro dinheiro que ganhei na vida, veio do Japão, da NHK [rede de TV japonesa]. Foi um documentário que dirigi ainda na faculdade [Marcello estudou cinema na Universidade de Nova York]. Era um filme sobre videoarte, coloquei num festival, recebi uma proposta de veiculação no Japão. Eles ofereceram na época US$ 6 mil, que era um dinheiro bom, e compraram. Eu fiquei tão emocionado que peguei o dinheiro e fui para o Japão. Foi a minha primeira ida, em 1989.
E aí você nunca mais parou de ir. Nunca. Comecei a namorar minha primeira mulher lá, minha filha fez faculdade lá. E aí fiz a Japan House [centro cultural mantido pelo governo japonês], em São Paulo. Agora mesmo, eu estava em Davos [no Foro Econômico Mundial], a convite do governo japonês, para participar de uma mesa sobre a conexão da cultura japonesa com tradição e inovação. Ao longo dos anos, curei uns 50 artistas japoneses, em diferentes mostras coletivas ou individuais.
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“No momento em que o Brasil queima seus museus, construímos um prédio novo no meio do nada para gritar que temos algo a dizer.”
Marcello Dantas
O que fascinou você nessa cultura? Primeiro, o minimalismo, que tem a ver com a busca da essência. Sempre detestei tudo que fosse barroco, e achei fascinante aquela limpeza japonesa. Tem um outro dado importante, que é o fato de que sou daltônico. Como não distingo as cores, nada me deixa mais em paz do que o branco. Tem também o silêncio: eu entrava no metrô e não havia nenhum barulho, ninguém falava, um lugar tão cheio de gente e tão silencioso. Nesse silêncio, inclusive visual, você consegue ter uma concentração muito maior. Depois tem a comida. Lá não é nenhum privilégio comer bem. Você vai a um 7-Eleven, come um sanduíche de ovo, e é uma delícia. Porque alguém se importa que o pão esteja bom, que o ovo esteja bom, a umidade, correta. Poucas culturas cultivam com tanta seriedade a importância do detalhe, do cuidado. Não importa de que estrato da sociedade você seja, se você se dedicar ao detalhe, todo mundo vai te respeitar.
Muito diferente da realidade daqui... Eu vinha de um Brasil dos anos 80, em que ser cozinheiro não tinha a menor nobreza, nenhum trabalho manual desse tipo tinha reconhecimento. E, no Japão, um sapateiro pode ser condecorado pelo imperador, porque é o melhor sapateiro possível. Naquele momento em que fui, havia lá também uma enorme criatividade, foi quando o Japão explodiu no mundo e as pessoas talentosas floresceram. Elas simbolizavam o renascimento do país. Eles haviam terminado a Segunda Guerra com uma bomba atômica na cabeça, 20 anos depois, fizeram uma olimpíada e o primeiro trem-bala do planeta e, depois, de mais 20 anos, estavam no centro do mundo. O Japão apresentou ali uma ideia de terceira via, de que era possível existir dentro do capitalismo com algum nível de igualdade social – tem muito menos milionários e menos pobres lá, 90% da sociedade é classe média – e com preocupação com o meio ambiente.
Esses são todos valores, digamos, problemáticos, na cultura brasileira… Sim. Uma coisa que acho linda da cultura japonesa é que não existe desperdício – de jeito nenhum. No Brasil, vivemos a cultura do desperdício – jogamos fora nossa água, nossos recursos, desperdiçamos talentos. O Brasil foi presenteado com um excesso, mas foi também condenado ao desperdício. E o Japão, com o pouco que tem... Veja a beleza de um restaurante japonês com dez lugares, com capacidade de fazer dez refeições por dia. Se chega o 11º cliente, não tem comida para ele.
Você morou lá? A gente tinha um apartamento quando a minha filha morava lá, e eu ia muito. Mas nunca fui realmente residente.
Fala-se muito da dificuldade de ser aceito na sociedade japonesa. Mas, quando o Japão quer mostrar sua cultura para o mundo, chama você para conceber o projeto da Japan House. Ou para falar da essência da cultura japonesa em Davos. É interessante que eles escolham um brasileiro para fazer isso, não é? É, é curioso. O Japão tem uma enorme dificuldade de falar sobre si mesmo. Para falar “eu”, eles dizem “nós”. A expressão “watashi wa” – eu sou – significa “cidadão japonês”. Eles têm dificuldade de ser assertivos – no Japão, não se pode falar “não”. No Ocidente, se você não for assertivo, ninguém presta atenção. E o que eu faço é falar sobre outros, é pegar coisas que estão fechadas e torná-las permeáveis. Esse é um trabalho que já fiz em outras culturas. Por exemplo, em 2003, fiz a exposição dos 25 anos da democracia espanhola, narrada pelo rei Juan Carlos, para os espanhóis. Na semana passada, inaugurei o Museu do Carnaval, na Colômbia [em Barranquilla], onde eu já tinha feito o Museu do Caribe, para contar a história dos colombianos para os colombianos.
Acha que você, como brasileiro, está bem situado para fazer esse papel? O Brasil é uma sociedade bastante miscigenada, multicultural, com uma diversidade muito grande. Na minha história de vida, isso é mais forte ainda – essa mistura de mãe boliviana, com avô conectado com o Japão, com holandês, nordestino... com todas as minhas experiências de vida, numa porrada de lugares. Isso me deixou muito permeável. Desde muito pequeno, entendi uma coisa que é um norte na minha vida: não quero ser brasileiro, quero ser terráqueo. Minha identidade não cabe na fronteira brasileira. Não é “ Brasil acima de todos” de jeito nenhum. A pátria é abstrata, transitória, precária. Ser terráqueo, sim, é uma condição que eu posso mais ou menos aceitar e que vou ter que segurar até o final da vida. Não vou conseguir ser marciano. Mas quero poder abraçar toda a diversidade deste planeta, que é o grande presente dele para a gente. Preciso poder transitar por todos esses lugares sem ser vítima das circunstâncias políticas, temporárias. A gente tem que entender que o mundo é um organismo e que a gente vai ser influenciado por todos os vetores que afetarem esse organismo. Não preciso ir à Groenlândia ver um urso-polar boiando num iceberg: a consequência está nas chuvas do mês passado. O coronavírus não precisa nem chegar ao Brasil para nos afetar – ele já afetou nossa economia. O grande alerta do século 21 é lembrar que não somos separados por fronteiras. Ficamos aqui falando sobre cultura japonesa, como se o Japão fosse distante. Não é. O Japão está dentro daqui. A maior cidade japonesa fora do Japão é esta [São Paulo].
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Estamos conversando às vésperas do Carnaval, e todo ano reaparece um debate sobre apropriação cultural. Eu acho que as pessoas estão ficando loucas. Que bom que elas podem se vestir de índio, podem se vestir do que quiserem.
Você não tem medo de ofender alguém por usar roupas tradicionais japonesas? Primeiro, não são tradicionais, são contemporâneas, que releem as peças tradicionais. E tudo bem, que bom. Os japoneses estão felizes que o mundo está adotando uma tradição cheia de conhecimentos, cheia de valores bons. Vão dizer que não posso comer comida japonesa porque não sou japonês, que tenho que comer arroz e feijão? Eu detesto feijão. Gosto de feijão no doce. E acho que a beleza do mundo é essa: estar permeável às influências. Tem um lado do Brasil que é multicultural, mas, ao mesmo tempo, é um país provinciano, que tem medo do mundo. Eu nunca tive medo do mundo.
“Não quero ser brasileiro, quero ser terráqueo. Minha identidade não cabe na fronteira. ”
Marcello Dantas
Quando trabalha com essas culturas asiáticas, você pensa no efeito positivo que elas podem ter sobre o Brasil? O tempo todo. Seria maravilhoso se o Brasil aprendesse um pouco com o Japão sobre desperdício. O Brasil é vítima de uma influência nefasta, que vem da hegemonia cultural americana, e que despreza tudo que não vem de lá. É que nem vender a Embraer para a Boeing: você vende uma das melhores empresas que o Brasil já fez para uma empresa que está quebrando por má engenharia. Economicamente, o grande crescimento do Brasil sempre se deu pela relação com o Japão. No pós-guerra, fomos um dos únicos países que toparam vender aço para o Japão poder ter a sua siderurgia. O crescimento do Japão – a industrialização, a infraestrutura resistente a terremotos – se deu em grande parte com o ferro brasileiro da Vale do Rio Doce. A primeira fábrica da Toyota no mundo, fora do Japão, foi no Brasil. O potencial complementar dessas sociedades é muito mais forte do que na relação com os Estados Unidos, um gigante agropecuário, que compete com a economia brasileira. No aspecto cultural, os traços deficientes da cultura brasileira são exatamente os mais nobres e eficientes da japonesa. E o que falta à cultura japonesa? Carnaval, música. Hoje, se você quiser ouvir bossa nova, é no Japão – só lá tem gente nova fazendo bossa nova. A complementaridade das culturas é gigantesca, mas a gente prefere copiar o Mickey e mandar as crianças para a Disney.
Você está num lugar incomum nessa relação entre esses países: é um brasileiro em quem instituições japonesas confiam para traduzir o Japão. Sem comparar, mas tem um outro brasileiro que estava ocupando um lugar raro no Japão, o Carlos Ghosn [ex-CEO da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, que hoje está foragido da Justiça, acusado de ganhar mais do que as rígidas regras corporativas japonesas permitem]. Ele fugiu do Japão e agora está acusando a cultura japonesa de não tolerar a ideia de um executivo vindo de uma cultura diferente. Aquilo foi um golpe mesmo. Ele, de fato, salvou a Nissan. Foi o primeiro cara a enxergar a importância das estratégias globais para a indústria automobilística, costurando uma aliança entre a Nissan, a Mistubishi e a Renault. Ele é brasileiro, libanês e francês, então tem essa capacidade de enxergar o mundo sob diferentes pontos de vista. As acusações contra ele são desproporcionais. Duvido que o salário dele fosse um dos maiores entre executivos de corporações desse porte do mundo. Mas ele apresentou a possibilidade de que a fusão gerasse uma nova empresa, e que o controle não fosse mais japonês. Quando ele ameaçou transformar isso em realidade, levou esse golpe. E tem o sistema de justiça japonês, que é bem estranho. Tem alguma coisa errada em um sistema judicial em que 99% dos acusados são declarados culpados.
Até agora falamos só sobre as coisas incríveis dessa cultura, mas tem também o lado sombrio, né? Existe sim. Sempre fui bem tratado no Japão, mas claramente é uma sociedade fechada, que você não penetra. Sempre ouço estrangeiros no Japão dizerem que você não entra no clube japonês. Mas, na verdade, tenho dúvida de que o clube exista. Porque os japoneses são solitários. O próprio casamento japonês é uma coisa muito solitária – a última coisa que o homem japonês quer fazer é voltar para casa. Tenho diversas amigas japonesas, várias vezes saí para jantar com elas e eu era o único homem. O homem japonês é de uma outra era: ele é meio feudal. Já a mulher é um projeto mais atualizado, então, há um descompasso entre o mundo masculino e o feminino. Um outro ponto é que é muito inaceitável uma pessoa mais jovem ser chefe de uma pessoa mais velha.
“Tem um lado do Brasil que é multicultural, mas, ao mesmo tempo, é um país provinciano, que tem medo do mundo. Eu nunca tive medo do mundo. ”
Marcello Dantas
É humilhante? É. E a própria ideia de humilhação no Japão gera uma coisa que é o suicídio por desonra. Eu vi no Japão o caso de uma moça que pulou do 24º andar porque não aguentava mais trabalhar tanto. Eles trabalham loucamente, o que é estranho, porque é uma sociedade rica. É uma loucura, um vazio.
Você teve uma convivência muito intensa com um chinês, o artista Ai Weiwei, de quem ficou amigo. Hoje em dia, você entende com clareza a diferença entre a sensibilidade japonesa e a chinesa? É enorme, poucas coisas podem ser tão distintas. Os japoneses têm horror da higiene chinesa. Por outro lado, os chineses têm profundo desprezo pela cultura japonesa, por acharem que é uma diluição de uma essência forte chinesa. Eles têm a mesma origem, vêm do mesmo povo, e é uma separação não muito antiga, de mil e poucos anos. Para a história chinesa, de 9 mil anos, é um pequeno desvio. As duas sociedades são muito competitivas entre si. O grande medo do Japão é a ascensão da China, que de fato o superou na economia. Morei um tempo na China, fazendo o pavilhão brasileiro em Xangai [na Expo 2010]. Enquanto no Japão eu quero fazer coisas, na China, eu tinha uma vontade enorme de ficar no hotel. É muita poluição, muita informação, muito ruído.
Tem algum episódio que, para você, marque essa diferença? Nunca esqueço de uma entrevista que dei num programa de televisão na China. A primeira pergunta que a moça fez para mim foi: “So, how do you make money?”. Esse materialismo e essa assertividade chinesas são intoleráveis no Japão. Tudo lá é cercado por certa cerimônia, educação, respeito. Tem uma coisa meio monárquica. Já a China carrega a herança da Revolução Cultural, de que, na verdade, quanto mais grosso, mais verdadeiro você é. E talvez esteja aí a maior cisão entre o Japão e a China. O Japão nem passou por uma revolução sexual na década de 60, não com a mesma intensidade que teve no Ocidente e na China. No Japão, todas as transformações são harmonizadas com as tradições. Já a China entrou num confronto com o passado, contra os próprios pais. O Ai Weiwei fala muito sobre isso. Ele é fruto dessa cisão [seu pai foi perseguido pela Revolução Cultural]. Por isso, me identifico com ele – ele propõe tentar trazer de volta aquilo que se perdeu, porque tem um caminho lá atrás que é fabuloso e que se desconectou. Hoje, todo o trabalho do artista chinês é tentar encontrar uma raiz para uma sociedade que se desenraizou. Isso é muito complexo, porque os saberes que permitem que a gente se revolucione, se reinvente, são os saberes ancestrais.
O Japão esteve no centro do mundo nos anos 80, mas meio século antes era basicamente ruínas, né? Não quero comparar com o que está acontecendo agora no Brasil, não caiu nenhuma bomba atômica aqui, mas claramente estamos vivendo uma crise cultural. Parece haver uma vontade de jogar tudo fora e começar de novo. Será que o Japão tem alguma lição para nos ajudar? O Japão tem uma coisa muito forte que é a determinação. O país planeja, planeja, planeja e faz, faz, faz de verdade. Eles são concentrados, e isso é admirável. É incrível a capacidade que o país teve de se reerguer tão rápido, da terra arrasada em 1945 para a segunda potência do mundo nos anos 80. O Brasil precisa tratar dessa doença de uma eterna procrastinação para enfrentar os problemas de fato. Não tem cabimento ainda haver problema de saneamento aqui. Não tem nenhuma justificativa, o Brasil não é tão pobre assim.
“Poucas culturas cultivam com tanta seriedade a importância do detalhe, do cuidado. ”
Marcello Dantas
Nem tão pobre assim para não conseguir alfabetizar a população. Sim, são coisas básicas, que a gente procrastina por décadas. Saneamento dá base para a saúde, educação também e para todas as outras coisas. Eu vi a Coreia do Sul, em 20 anos, passar de um país de terceiro mundo, a periferia da periferia, a uma potência. Inclusive, o que acho genial da Coreia é que ela sacou o negócio. “Vamos ser uma potência industrial? Sim, mas vamos ser uma potência criativa!” Então, hoje a coisa do k-pop, do cinema coreano, dos softwares, apps e games, tudo isso entrou no mainstream do poder, no simbólico. Você conseguir fazer uma revolução industrial e ao mesmo tempo ocupar o lugar do simbólico, isso, de fato, é poder. Quando o Japão pensa num projeto de comunicação internacional, ele está tentando ocupar esse espaço simbólico. Só gerando amigos simbólicos você vai conseguir ser uma potência. É onde a China está tendo dificuldade, porque a censura interna impede. É muito louco o Brasil não entender que, neste momento histórico, o trabalho contra os artistas é um trabalho contra toda a nação.
Contra a cultura e contra a natureza… Cultura é natureza, essas coisas não são dissociadas. Porque a natureza preservada é a natureza com o potencial simbólico: é cultura. Quando você vai a lugares do mundo que de alguma forma te inspiram, você vai ver a relação entre homem e espaço. E isso vale para tudo. O Japão tem isso muito forte. A maior pergunta é se o japonês está disposto a se abrir para o mundo. O mundo ama o Japão, está pronto para abocanhar a cultura japonesa – mas será que o Japão quer isso? Sei de várias pessoas que tentaram expandir negócios do Japão para o Brasil e não conseguiram, porque os japoneses não conseguiam atender aquela nova escala. Não estavam interessados também, porque havia um equilíbrio. Tem uma coisa muito bacana no Japão: quem já ganha o suficiente para viver não quer ganhar muito mais. Não tem isso de que o céu é o limite, de ser multibilionário, ter cinco aviões. O Japão não almeja isso.
Para terminar, dá uma dica? Provavelmente tem pouca gente no mundo que visita tantas exposições, em todos os continentes. Qual é a exposição ou o museu que, tendo a chance, todo mundo tem que ver? Eu tenho alguns prediletos, mas eles sempre são muito longe. O museu que mais gosto no mundo hoje fica na Tasmânia [ilha australiana a caminho da Antártica]. É o Museum of Old and New Art. As coisas diferentes estão fora do radar. A cidade do mundo mais interessante para museus é a Cidade do México. Paris é boring perto do México.
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Imagem principal: Bob Wolfenson
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