Celso Athayde: Sempre quis fazer revolução

No Trip Transformadores, o ator e cantor Leo Jaime bate um papo com o cofundador da Central Única das Favelas sobre como as periferias podem virar referências de potência ao invés de carência

por Redação em

Depois de passar seis anos de sua infância vivendo sob o viaduto de Madureira com a mãe e o irmão, Celso Athayde voltou ao local como camelô. Ali, promoveu festas, se tornou líder social, rapper e empresário de grandes talentos como Racionais MCs e MV Bill, com quem fundou a CUFA – Central Única das Favelas. Hoje, o homenageado pelo prêmio Trip Transformadores 20/21 lidera 25 empresas e está à frente da Favela Holding, conjunto de empresas que tem como objetivo impulsionar o desenvolvimento de negócios e de profissionais nas favelas.

É sobre essa guinada vertiginosa – numa conversa não menos entusiasmada – que Celso e o ator e cantor Leo Jaime conversam e pensam juntos sobre o Brasil e como suas periferias podem virar referências de potência ao invés de carência. O encontro aconteceu no programa Prêmio Trip Transformadores 2021, que vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura. Assista a trechos do papo ou leia a entrevista a seguir.

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Leo Jaime. Não sei se você se lembra, mas a última vez que a gente se encontrou foi no palco do Theatro Municipal entregando o prêmio Anu pra mostrar e trazer visibilidade a projetos que atendem a CUFA. Foi muito legal porque estávamos levando para o palco pessoas que se destacaram, fizeram ensino superior e voltaram para a periferia criando projetos.

Celso Athayde. Me lembro muito bem. Você apresentou um prêmio junto com a Fernanda Lima. E você foi brilhante, eu já era seu fã. Sou de Bangu, da Favela do Sapo. Tinha um cassino por lá e durante muitos anos eu dancei o teu som. Te encontrar no palco foi um momento muito bacana na minha vida e na vida da CUFA.

Pra mim foi muito importante participar da premiação porque fico achando que no percurso da minha vida pode ter sido tudo em vão, que a gente não conseguiu mudar nada na realidade brasileira. Você falou da sua origem na Favela do Sapo, mas antes disso você chegou ao Viaduto de Madureira. Queria que você contasse isso. A gente sempre sonha e normalmente não vê um número significativo de pessoas que nos façam acreditar nessa mudança. Sou de um bairro chamado Olinda, na Baixada Fluminense, de uma cidade chamada Nilópolis, de uma favela chamada Cabral. Meus pais se separaram quando eu tinha 6 anos de idade e ambos eram alcoólatras. Eles brigavam todos os dias, eram brigas muito violentas e ali eles tiveram a última briga deles. Minha mãe resolveu ir embora de casa. Ela sempre voltava porque sabia que tinha dois filhos e pensava que na rua passaríamos necessidades muito maiores do que as que já tínhamos. Nesse dia, ela não voltou. Foi morar embaixo do viaduto Negrão de Lima em Madureira e ficou ali durante seis anos. Dos 6 aos 12 anos de idade era ali que a gente morava. Teve uma grande enchente no Rio uma vez e fomos remanejados para o abrigo Pavilhão de São Cristóvão, que hoje é a feira dos paraíbas. Aos 14, fui então para a Favela do Sapo. Meu irmão foi assassinado e a gente continuou nossa luta e eu voltei depois para Madureira, na condição de camelô, no mesmo viaduto onde tinha vivido. Ali, começo a juntar os camelôs todos e fazemos festas em datas comemorativas como Cosme e Damião, Natal, e é meu primeiro encontro com aquele espaço que tinha sido meu abrigo, vira uma grande festa. Sempre quis fazer uma revolução com aquela rapaziada.

É curioso que você transformou o lugar em que passou seis anos da sua infância em espaço pra você se lançar e mostrar o seu sonho. Podia ser um lugar de lembranças ruins, mas você conseguiu não só ressignificar, mas transformar o espaço. Como é que você manteve o sonho vivo? A vantagem do período em que vivi na rua era que eu tinha minha mãe do meu lado. Apesar da relação com o álcool, ela era nossa grande referência, prezava muito pela honestidade. Um dos valores mais expressivos das periferias é justamente a moral, a ética e os códigos de lealdade. Obviamente, as notícias que mais circulam são de uma minoria que acaba se transformando numa anomalia moral por conta das anomalias sociais ali. Pior do que morar na rua é nascer na rua, eu tive essa vantagem. Mesmo morando na rua, eu tinha medo da rua. Tinha medo da disputa do lugar para dormir, e aquilo podia custar sua vida. Quem nasce na rua nem tem esse medo. Eu sempre sonhei em ser rico, achava que tinha nascido no lugar errado e precisava encontrar meu castelo. Eu sempre soube que seria rico, sem nenhuma habilidade ou objetivo. Um tempo depois, percebo que minha habilidade era aquela de juntar gente, fazer festa com elas e desejar uma revolução. Lembro que o Bagulhão, do Comando Vermelho, deu pra gente ler “Guerra e Paz”. Eu não sabia ler e ele deu um prazo de seis meses pra fazer uma arguição. Quem não tivesse lido tomaria tiro na mão, então obviamente tentei aprender a ler rápido, mas não consegui. O tempo passou, ele não deu tiro na mão de ninguém, mas comecei a fazer rap pra fazer a revolução.

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O rap teve protagonismo no mundo todo. Não vejo aqui tocando no rádio músicas que falem da nossa realidade. O rap sempre fez isso, mas virou nicho. É como ser negro. A gente tem que ter orgulho de ser negro, mas a gente não pode apenas ser negro, porque senão você vira nicho também. Quando um homem vai à Lua, ele vai à Lua. Quando um negro vai à Lua, é um negro indo à Lua. Então a gente precisa se colocar no lugar onde está todo mundo. A gente não pode aceitar que nos coloquem em uma caixinha, como fazem com os pretos em partidos políticos, racializando os votos.

É claro que a gente vê uma presença maior dos negros hoje na cena artística, nas novelas, mas eu não vejo no quadro político brasileiro nem o número de negros e nem o número de mulheres que representam a sociedade. Na pandemia, também, o abismo social aumenta. Na questão racial, será que mudou alguma coisa? O Celso que saía na rua com 13 ou 14 anos sentia mais medo do que o moleque dessa idade hoje? Ele anda mais tranquilo e se sente mais valorizado? Quando você olha os números, vê mais pretos em certos lugares, na televisão, mas você continua com as exceções, porque antes não podia preto nem na carreira militar. É um avanço? Óbvio que é. Mas não corresponde ao que merecemos e aos números que nós temos. Tudo isso se explica porque moramos num país onde o racismo era um regime oficial. O Brasil foi fundado dentro de um modelo escravocrata onde o que definia sua oportunidade era sua cor. Esses modelos se desdobram até hoje. Se você olha pra mim e não me conhece você imagina que sou um porteiro, um vigia. Os seus olhos estão acostumados a ver gente como eu pedindo, presa ou em situação de vulnerabilidade ou subempregada. Quando eu saía da Favela do Sapo na juventude, tinha que sair com o documento da bicicleta e do relógio para provar que eram meus. Hoje isso ainda acontece. O importante é que a gente perceba que isso não acontece com meninos brancos, mesmo entre pessoas que moram na favela. Um tem a cor da miséria, outro tem a cor do poder e ambos sabem disso.

Como nasceu a Central Única das Favelas, a CUFA? Surgiu do seu encontro com o MV Bill? A CUFA não surgiu porque a gente pensou em fazer a CUFA. Ela surgiu da gente como camelôs em Madureira fazendo uma série de iniciativas, quando a gente resolve não ficar apenas no discurso. Quando surgiu o Gabriel, o Pensador, todo mundo ficava com medo que ele fizesse mais sucesso do que nós, e a gente pensava: “Deixa ele ir, a gente vai atrás”. Pra você ter ideia, a mãe do MV Bill chegou a falar: “Não queria que você fosse assim, queria que você fosse que nem aquele menino, o Gabriel Pescador” (sic). Virou referência porque ela via o cara na Xuxa. A gente precisava de autoestima assim porque ela alavancaria qualquer outro processo. A gente então se junta, começa a fazer reuniões pequenas e elas vão crescendo e se multiplicando. Até que a gente vai se organizando mais e mais e resolve que cada um vai pra sua favela se organizar. E começa a crescer, crescer, crescer… E hoje a CUFA tá aí, em 5 mil favelas do país, levando alento para essas pessoas que precisam ser integradas à sociedade.

No programa Trip Transformadores na TV, o ator e cantor Leo Jaime conversou com o ativista social Celso Athayde sobre a potência das periferias - Crédito: Reprodução

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Celso, eu escrevi “ela não gosta de mim, mas é porque eu sou pobre”, ou “você vai de carro pra escola e eu só vou à pé”. São músicas que falam da dificuldade do jovem que não tem dinheiro em se sentir merecedor de amor. Eu acho que há uma relação grande entre a desvalia do indivíduo com sua incapacidade de ver o seu lugar no mundo. Como é que a gente pode fazer? Dando exemplo? A gente faz tudo na vida pensando na tal da mobilidade social. Quando sua mãe manda você estudar, ela tá pensando que você vai ser uma pessoa com mais poder aquisitivo a partir de um emprego melhor. Seja qual for o conselho que você receber, estão sempre pensando em como é que a sociedade vai abrir as portas pra você. Particularmente, não acredito numa sociedade em que todo mundo vá ser igual. Eu acredito que a gente pode lutar por uma sociedade em que o filho do dono do prédio e o filho do porteiro tenham a possibilidade de sonhar com melhores alternativas. Hoje eu tenho 25 empresas e eu falo favelês. Imagina se as pessoas que vêm de onde eu venho tivessem aulas de negócios na favela. Elas teriam muito mais oportunidades e alternativas. O fato é que a gente tá sempre estudando para ser motorista do filho do patrão do meu pai. Essa pirâmide não muda e ela está formatada para não mudar. Falta de dinheiro causa até fim de casamento. Ninguém quer ser pobre não, gente! Tem questões afetivas em ficar ou sair da favela, então você sai, como fazem os jogadores de futebol. E a falta de dinheiro faz com que você não consiga tratar dos seus dentes, da sua saúde, sua família não consiga se alimentar bem… Não dá para ser feliz assim. Ter dinheiro não significa que você vá ser feliz, mas que vai conseguir cuidar melhor das dores da vida.

Uma última pergunta: existe a chance de a gente te ver na política institucional? Você consegue ver um presidente preto no Brasil? Eu consigo imaginar uma liderança negra no Brasil, mas pra isso a gente vai ter que ver os partidos políticos dando lugar de destaque aos pretos, porque eles não são eleitos e a gente tem um número muito pequeno de parlamentares pretos porque eles não têm dinheiro. Volta ao papo do capital. Se você não tem dinheiro, não tem campanha. Se não tem campanha, não vai ser eleito. Os partidos precisam entender que esses pretos são importantes e precisam ter base eleitoral. Eu não tenho interesse nenhum de participar de um pleito eleitoral porque acho que meu lugar não é nesse espaço. Meu ativismo é social, empregando muita gente – e o tipo de gente que prefiro empregar, facilitando a formação dessas pessoas. Ao fazer isso, estou induzindo que outras pessoas se inspirem nisso. Quando você faz parte de um partido, você precisa pedir a bênção de um cacique sobre as coisas em que acredita e quem decide é ele. No fundo, você vira o elo de uma corrente cujo jogo já está estabelecido. A forma mais racional de a gente ter chance em pleitos é ter uma grande quantidade de parlamentares pretos, e aí você monta suas bancadas.

Créditos

Imagem principal: Luiz Maximiano

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