A psicanalista avalia o impacto do momento que estamos vivendo em nossa saúde mental, na vida sexual e na compreensão da morte
"Maior laboratório subjetivo de nossa história". É assim que a psicanalista Maria Homem descreve o momento que estamos vivendo. Inesperada, imprevisível e fora do nosso controle, a pandemia da Covid-19 desencadeou um turbilhão de mudanças e sentimentos e impôs a adaptação a uma nova vida que abarca medos e angústias. O medo do vírus, medo pela própria vida, pela família, as incertezas quanto ao futuro, quanto ao trabalho e quanto ao planeta emergiram acompanhadas de descobertas dentro de casa, das relações íntimas e até dentro de si. São essas descobertas e experiências que ainda estão em curso que Maria tenta entender.
Uma das profissionais mais destacadas do país em sua área, Maria Homem é pesquisadora do Núcleo Diversitas da FFLCH/USP, professora da Faap e autora de alguns livros, entre eles o recém-lançado Lupa da Alma, no qual ela mergulha nos impactos que a quarentena trouxe para as nossas vidas e para a nossa mente. Em conversa com a Trip, a psicanalista fala sobre como esse momento está mudando a nossa relação com o corpo, com o sexo, com a morte e com a natureza, e destaca que esse período pode trazer também aprendizados positivos para a nossa forma de lidar com os outros e com a Terra: "É uma oportunidade, sem dúvida. São pulsões destrutivas para eventualmente quebrar formas de pensar, para se criar o novo. Se a gente estava fingindo que não estava vendo, agora a gente está vendo muito bem."
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Sabemos que por causa da pandemia muitos encontros passaram para o ambiente virtual e isso inclui os encontros entre os psicanalistas e seus pacientes. Eu fiz terapia por décadas, mas sempre presencial, ali com a pessoa olhando no olho. Para você, que exerce esse trabalho, como essa nova distância afeta na relação entre o profissional e o paciente?
Maria Homem. Eu atendo muita gente de fora de São Paulo ou mesmo do Brasil e sempre usei um método que é assim: eu uso Skype, mas não uso o vídeo, só áudio. A análise não tem a ver com esse face a face, ela tem a ver justamente com a fala e com o inconsciente. A psicanálise stricto sensu é justamente deixar fluir e o mais próximo que a gente tem do divã é você simplesmente falar. Então eu acho que funciona. O meu depoimento é que às vezes até funciona mais, justamente porque você não tem "o constrangimento" da presença, da materialidade, do olhar. "O que será que o outro está achando? Como é que eu estou nessa poltrona, será que eu estou bem?" O Freud queria a associação livre, e aí a gente consegue chegar nesse libertário de um jeito curiosamente mais interessante. Eu costumo fazer uma comparação que não é muito elegante, mas eu vou mandar bala aqui: sabe essa chats? Esses jogos sexuais? Que às vezes a figura se sente até mais próxima das suas fantasias mais secretas e ela vai contá-las para um desconhecido, ou para alguém que ela não está vendo? Ali se tem a coragem de se abrir. Eu diria que tem algo que é dessa ordem, sabe?
Como é que esse momento da pandemia está afetando a saúde mental das pessoas? Eu acabei de fazer um livrinho sobre isso chamado Lupa da Alma, com um subtítulo que já revela o jogo – Quarentena revelação –, que parte da hipótese que esse momento histórico peculiar tem uma dupla característica: primeiro que ele coloca gente sob ameaça porque é um vírus, é um adoecimento, é um risco de sequela e eventualmente de morte, então você lida com o medo e com qualquer tipo de fobia real e imaginária; e segundo, o que a gente tem para lutar contra isso agora? O isolamento social, a quarentena, o confinamento. Você está confinado fora do grupo, da teia social mais ampla, longe de todos os outros e muito perto de alguns, normalmente poucos, com quem você convive ou calhou de conviver. Essa dupla situação revela muita coisa. Desvela. Tudo o que a gente jogou pra debaixo do tapete, tudo o que a gente foi acumulando, agora veio à tona. A gente está agudo, num pico de intensidade, porque tudo o que era morno, tudo o que você deixava ali de lado, agora incomoda. Há muito esforço pra deixar sob controle até a mediocridade cotidiana, sabe? Da qual a gente se distrai ali no bar, no boteco, no restaurante, nessa sociabilidade, levemente numa lógica de entretenimento, que é da vida. Quando você tira essas anestesias, aí dói.
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Nesse período eu conversei com o Ailton Krenak, e ele fala que tem horror à expressão "precisamos voltar ao normal". O normal, na visão dele, era o que estava nos levando a uma situação insustentável, e ele reza para que a gente não volte ao normal e entenda que aquele normal era uma doença, uma patologia. Para além desses aspectos difíceis que você acabou de descrever deste período, dá para ver um lado positivo dessa experiência e das descobertas que ela traz? Eu mesma citei o Krenak no livro. É um cara de quem eu gosto e que eu acompanho o pensamento, e eu acho que essa é uma reflexão necessária. Estou agora dando aula para os alunos na FAAP e, sobretudo para essas novas gerações, os alunos de graduação de 20 anos, a gente tem a sensibilidade de ler uma angústia que é assim: "Nossa, que mundo é esse que eu estou sendo convidado a entrar? Ideias para adiar o fim do mundo, por favor". "Como assim estão rifando o meu futuro? O amanhã não está a venda". A presença do mercado, um totalitarismo de relações de compra e venda, de extração, esse paradigma extrativista e uma lógica hiper mercadológica que vai objetificando todos e todas, eu acho que já estão muito claros para essas novas gerações, e está nascendo esse paradigma de uma outra sensibilidade. Existe o outro, e pode ser interessante, e existe o tempo, existe a água, existe a natureza e existem pesquisas de posições menos bélicas com o outro, com a alteridade radical, que seja do ouro, da pedra, da mata, do conflito, do desejo ou da cor da pele.
O livro vai do eu, do mais íntimo, até a morte. Vai em espirais ascendentes que se amplificam, então o eu, o elo, o amor, o desamor, a família, o trabalho e chega no planeta. É uma oportunidade, sem dúvida. São pulsões destrutivas para eventualmente quebrar formas de pensar, para se criar o novo. Se a gente estava fingindo que não estava vendo, agora a gente está vendo muito bem. A própria Trip está aí há décadas tentando modular, desenhar um pouco isso. Propor de alguma maneira uma reflexão, com o desafio de fazer isso dentro de um mercado real. Você também tem que sobreviver, não deixa de ser uma empresa. É um pouco o desafio de todos nós no início do século 21: como viver, como poder existir de outra maneira, mas ao mesmo tempo questionando o jogo, que é muito pesado para muita gente. A consciência é o primeiro passo para construir uma outra realidade que se queira para você.
Qual o impacto que essa experiência da pandemia tem na nossa vida no aspecto sexual? O que está acontecendo nesse lugar da vida das pessoas sob o efeito do vírus? Você percebe movimentações diferentes, reações diferentes, emoções diferentes no campo sexual? Eu diria que está mais pra menos do que pra mais. Se fosse dar uma síntese do que se escuta aqui, eu tenho algumas hipóteses sobre isso. Vou pegar três pontos só pra amansar e bater um papo. O primeiro é que acho que a gente não faz muito mais erotização do encontro com o outro. A gente faz mais um sexo protocolar, quase um exercício aeróbico, catártico, uma pequena descarga. Sabe aquela briga que dá uma aliviada com aquela trepada? A gente tem muito uso comum, um ato desimplicado. Então quando chega na hora de uma hiper convivência, o encontro mais olho no olho onde se esbarra e onde se está nessa tensão, aí a coisa complica. Como é que você vai fazer essa pesquisa que é o erotismo? Eu estou usando esse termo, que talvez seja um nome apropriado para essa antiga ciência milenar mesmo. Tem tratados de arte erótica japonesa, arte erótica hindu, deve ter também indígena. Não sei se tem norte-americana, que é só a base protestante radical e sua necessidade de repressão ao sexo. Não sei se na Europa tão cristã também. A gente começa a perceber o quanto a nossa cultura reprime o erótico, reprime Eros. Simples assim. O quanto é tabu e o quanto a gente faz um sexo protocolar, assim, com perdão da palavra, vagabundo. Muito raso. Então o primeiro ponto é que a gente está vendo e está vivendo isso. Quem sabe alguns poucos aproveitaram também esse momento pra se divertir com isso. Netflix ganhou dinheiro, Amazon ganhou dinheiro, agora, acho que algumas poucas almas iluminadas deixaram seus corpos fazerem suas descobertas.
E falando em corpo, o segundo ponto é: o corpo está sub judice. O corpo está ameaçado, porque a gente está falando de uma doença. Tanto em termos micro, de cada encontro, quanto macro, é o corpo do outro que eu vou temer, porque ele é a fonte da contaminação. Eu tenho medo, eu passo de ladinho, eu vou usar máscara, vou lavar a mão, passar álcool. Isso não é sem consequência sobre a nossa maneira de se relacionar, não só com o estranho, mas mesmo com o próximo, ainda que inconscientemente. Fomos atingidos na carne. O milênio dos vírus entendeu que somos corpóreos. O que é normal, como é que a gente vai repensar a norma? Sem dúvida, não sou nada simpática à palavra normal como contraposto ao patológico, ao que seria a padronização do bem, desconfio profundamente disso. Eu diria que a norma é só uma curva, a curva normal, que mostra padrões. Acho que a gente pode explodir um pouco a curva, deixar ela ser um pouco mais instável. Suportar essa instabilidade até tirar as normas que a gente coloca sobre o corpo. O que seria o corpo bonito, sarado, limpinho, durinho e todas essas sinalizações muito autoritárias sobre o corpo. Isso também está em jogo quando a gente fala de sexualidade ou de erotismo. A gente pode construir pensamentos do tipo "mas eu engordei agora na quarentena", "deixa eu abrir uma outra garrafa de vinho". O encontro com o outro é "ai, que preguiça, deixa eu ficar aqui na minha casinha, deixa eu ficar aqui no meu Instagram". Esse é o terceiro ponto que eu colocaria aqui: o sexo é também encontro com o outro, é também alteridade, é também um jogo, é uma dança, é palavra. Sexo não é só corpo, ele é essa coisa estranhíssima que é o entrelaçamento entre o corpo e a alma. Como diria Freud, a pulsão está no limiar entre somático e o psíquico. Será que a gente sabe fazer isso bem? Será que a gente pesquisa isso bem? A psicanálise tem só cem anos, é muito pouquinho. Qual é a proporção da população humana que está um pouco advertida disso e que tem o privilégio de fazer essa pesquisa com menos defesa, com menos projeção, com menos agressão?
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Me parece que um efeito colateral desse vírus foi obrigar as pessoas a pensarem mais na morte, a terem mais clareza sobre a finitude. De repente a morte, que era uma coisa que acontecia só com o vizinho, chega bem perto de você, nos seus familiares. É positivo que, ainda que no tranco, a gente comece a querer pesquisar mais sobre a nossa existência. Você sente isso nas pessoas que te procuram pela primeira vez? Eu acho essa a coisa mais não só interessante como talvez necessária, né? Se eu acho positivo? Sem sombra de dúvida. Por isso que eu mesma usei essa expressão "maior laboratório subjetivo da espécie humana". Tem um dado muito importante que é o tempo, diferentemente das outras pestes – a peste negra, a Gripe Espanhola, 1300 e 1900 –, onde a velocidade de transmissão era muito menor porque a nossa velocidade de locomoção era infinitamente menor. Demorou anos, eventualmente décadas, para a peste bubônica tomar conta de muitos vilarejos e países da Europa e chegar na Eurásia, e outros tantos anos para isso refluir. É algo que vai se espalhando. Agora, demorou semanas. E gente começou a ouvir "já chegou aqui" porque foi no casamento tal, foi na comemoração xyz, a gente tá vendo isso e vivendo. Como é que a gente pode subjetivar essa experiência que é também coletiva? Como é que a gente pode elaborar isso juntos? Inclusive a coisa muito peculiar que é elaborar a perda, o medo, a angústia e a morte. Essa consciência de que chega um dia e o seu coração para de bater. É a única coisa não imprevisível da sua vida, ela é certa. Você não sabe quando. Você tem alguns dados: se você tratar muito mal o seu corpo, o coração vai aguentar menos – é matemática isso, tem estudos. E como é que a gente faz para poder falar sobre a perda, falar sobre o medo, saber da morte? Será que a gente vai conseguir, como cultura, deixar a morte menos tabu? Eu diria que assim como a gente tirou um pouco o corpo de um tabu – mas não tanto quanto a gente diz, não sei se sexo e corpo são tão menos tabus do que antes –, agora talvez a gente possa pôr a morte no centro da roda e naturalizar um pouco mais uma das coisas mais comuns da vida.
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Ambos temos filhos de 10 anos de idade e eu não sei como é o seu, mas eu vejo claramente uma questão que preocupa que é esse encantamento pela tela, pra não dizer vício. A criança fica completamente abduzida por aquelas cores, emoções e explosões de informação que aparecem na tela. Como você faz para lidar com isso? Esse é um bom debate. Você vê como a gente é um bichinho que foge, né? Como a estrutura do humano é profundamente fóbica. A gente tem medo, tem muito medo, e, bobeou, a gente cria territórios, ilhas de escape. Às vezes um escape tão bem feito que é uma realidade perfeita – a gente até chama de second life uma realidade virtual. O mundo vai nessa direção, não tem dúvida. Eu fui há muitos anos para o Egito e eu lembro que eu era fascinada pelo Império Egípcio, o Rio Nilo, Luxor, capital do antigo império. Para visitar esses lugares eu tinha que acordar às cinco da manhã para ir com um guia e voltava umas nove, quando já estava 50 graus. Aí ficava trancada talvez das 10h às 15h no ar-condicionado, que era quase um luxo que tinha no hotel. As pessoas vão falar: "Meu Deus, que preguiça. Você fica ali sete, dez dias, e vai conhecer as coisas e ver aquelas pedras. Já vi tanta foto. Já vi obelisco em Paris, pra que eu quero ver aquele outro lá na frente do templo? E que é isso de Nefertiti?". Então acho que a realidade ela custa e ela dói. Como é que a gente vai ensinar para as crianças, como a gente vai transmitir para os nossos filhos e para toda a infância o maravilhamento do real? Eu tenho essa pergunta, você tem razão, eu estou nessa missão. Pessoalmente estou imbuída disso. Não sei se eu tive sorte, mas eu acho que aqui eu não tenho muita angústia quanto a isso porque está dando para negociar. A vida pode ser um pouco trabalhosa, né? A gente tem um corpo pra cuidar, tem que alimentar, tem que lavar, tem que escovar os dentes, porque o corpo é mortal e perecível. Mas olha só que bom: só com ele você consegue ter o prazer de pular, de correr, de tomar sorvete, de outras delícias que nossos filhos que vão para sua segunda década vão descobrir logo mais, estão descobrindo. O corpo sempre foi esse fio da navalha, né? É o que a gente mais ama e mais odeia, fonte de prazer e desprazer. Se cada pai, mãe, com o seu próprio corpo, com seu próprio ser e com o outro, está tranquilo quanto a isso, você vai saber transmitir isso. Você vai ter criatividade, vai instigar de sair, de viajar, de fazer trilha, jogar bola. A viagem real é multifacetada, tem várias camadas. A tela não deixa de ser 2D. Por mais que a gente tenha a tecnologia e óculos pra nos enganar, a realidade dura e crua é que é só 2D.
Créditos
Imagem principal: Jõao Kehl / Revista Gol