Talyta Carvalho fala

por Letícia González

Para a filósofa de 27 anos, lugar de mulher é onde ela quiser - inclusive no tanque

Talyta Carvalho, 27 anos, é filósofa especialista em renascença e mestre em ciências da religião pela PUC-SP, e mais: prefere queimar seu filme a seus sutiãs. Em 2012, quando publicou na Folha de S.Paulo o artigo “Não devemos nada ao feminismo”, ouviu poucas e boas. Na caixa de entrada de seu e-mail, inúmeras mensagens do tipo “volte para o tanque”. 

Na faculdade, Talyta estudou numa sala com dez meninas e 80 caras. Entre eles, sentiu-se “tipo rainha”. Já com elas, notou um “ambiente hostil”. Foi aí que o feminismo começou a cheirar a arroz queimado. A questão é que, para a paulista, lugar de mulher é onde ela quiser. Inclusive em casa, lavando cueca do marido. Ela defende que a carapuça feminista não cabe em toda mulher e ninguém deve se constranger por preferir pilotar o fogão à conta bancária própria.

Em pleno século 21, papéis do tempo da vovozinha ainda fazem sentido na cabeça dela. “Você acaba se sentindo feliz de fazer um jantar com seus amigos. E homens ficam felizes em dar presentes para a mulher.”

Tivemos uma longa conversa com a filósofa, que contou de sua trajetória antifeminista e de suas teorias nem sempre bem aceitas. 

"Eu não acho que seja verdade o que muita gente anda reproduzindo por aí que até hoje as meninas não tem opção. Acho bem o contrário, na experiência, na maioria das vezes é: você diz pra uma menina de 18 anos e ela fala 'olha, eu não quero fazer faculdade, quero ir morar com meu namorado'"

Tpm. Como começou essa história de ser anti-feminista?

Talyta. Tudo começou quando eu troquei Publicidade e Propaganda por Filosofia. Eu demorei muito para me decidir. Tinha toda uma questão familiar para que eu tivesse sucesso na carreira, para ser intelectual, enfim. Em uma família que tem médica, advogada, ser publicitária era o mais legal que podia ser. Foi muito conflituoso, e quando eu comecei a frequentar filosofia rolava muito uma coisa de, "você é mulher e está num ambiente hostil, dominado por homens. Então você tem que ser feminista, ir atrás de movimentos feministas". Eu comecei a me sentir um pouco incomodada com isso, porque minha experiência foi contrária. Nunca estive num ambiente acadêmico onde colegas homens me falassem qualquer coisa e eu entendesse como algo machista, nunca fui diminuída por ser mulher. Muito pelo contrário. Eu cheguei na faculdade, eram dez meninas e oitenta caras na minha sala. Você é tipo rainha. E, curiosamente, as mulheres ao invés de se unirem, vão contra você. E aí comecei a me preocupar com essa reflexão. Comecei a me questionar se tinham coerência as ideias que estavam me dizendo, coisas que me contavam sobre as mulheres e o feminismo, ou se não tinha. Existe um conflito entre “igualdade” e “liberdade”. Mas isso era lido como você ser contra a mulher. Se você não estava no feminismo, você automaticamente ia contra a mulher, isso é um erro conceitual muito grande. Acabei chegando a uma crítica ao feminismo por me sentir acusada por mulheres, e não por homens.

E então teve o artigo pra Folha de S. Paulo. Sim. Em dois meses [depois do artigo que escreveu para a Folha de S. Paulo em 8 de março de 2012, intitulado "Não devemos nada ao feminismo"] eu era a menina mais reacionária do país. Eu não sei como acharam meu email, mas o que tinha de gente me mandando mensagem do tipo “volte pro tanque”. E essa é minha crítica ao feminismo, enquanto movimento. São décadas batendo na mesma tecla, e o que que fica para as meninas de hoje, da minha geração? Porque tem uma série de coisas que você supõe que as meninas mudem de atitude por uma ideia difundida. Por exemplo, você cresce ouvindo que você tem que escolher uma profissão e depois que precisa casar, ter filho. Eu não acho que seja verdade o que muita gente anda reproduzindo por aí que até hoje as meninas não tem opção. Acho bem o contrário, na experiência, na maioria das vezes é: você diz pra uma menina de 18 anos e ela fala “olha, eu não quero fazer faculdade, quero ir morar com meu namorado”. Ninguém, não há uma alma viva neste planeta, que concordasse, incluindo homem também. O pai dela vai dizer: “ficou louca menina? Não quer ir estudar? Vai trabalhar". O que eu digo é que nossa geração foi tirada desse direito de escolha. Por que, qual é a possibilidade de uma mulher hoje, com vinte, trinta anos, dizer: “eu não quero mais trabalhar”? Em que medida ela pode dizer isso? Em um ambiente econômico em que a maioria das famílias não pode se sustentar com um salário, então ela tem que trabalhar. Quem é que pode fazer esse tipo de escolha? Mulheres muito ricas. Do mesmo modo, quantas mulheres podem escolher um trabalho parcial, uma jornada que não seja integral? O que me parece menos honesto no movimento, mal intencionado, é você dizer para toda uma geração de meninas de 20 anos que elas vão ter tudo, que a vida vai ser maravilhosa. Foca na sua carreira, seja brilhante, seu trabalho é mais importante, se você casar, “ok”. Mas são escolhas muito dramáticas, envolve você perceber que o trabalho também te consome. Se antes havia um marido, um pai, hoje você tem uma patrão, uma patroa. Não existe esse ambiente lúdico onde você é totalmente livre. Em que medida, anos, décadas, produziram uma mulher mais feliz, menos angustiada e menos deprimida? Priorizar a carreira, adiar casamento, não participar dessas coisas e achar que é uma mulher com uma vida maravilhosa. 

"Se você não estava no feminismo, você automaticamente ia contra a mulher, isso é um erro conceitual muito grande. Acabei chegando a uma crítica ao feminismo por me sentir acusada por mulheres, e não por homens"

Mas você enxerga um leque maior de oportunidades hoje, não? Claro! Veja, não sou contra. A minha posição de antifeminismo não tem a ver com a mulher não trabalhar. Tem a ver com você perceber que você vai ter que abrir mão de alguma coisa. E que tantas possibilidade de se fazer alguma coisa já vai produzir angústia. Não existe um movimento social que um dia vai amenizar isso. A questão é: quanto mais cedo elas percebem que vão ter de produzir escolhas e abrir mão de coisas, pior. O problema não são as mulheres de 30, 40, na minha opinião. Elas já viveram, já perceberam nuances, que o mundo é muito mais cinza do que preto e branco. Nesse sentido eu vejo que as meninas jovens vão ter mais possibilidade, e isso não é ruim. Advogada, juíza, inclusive dona de casa, você vai ser o que você quiser. Agora entenda que no momento em que você opta por isso, você vai pagar um preço, sempre há um preço que se paga. Se você vai atrás do sucesso, e depois tá com 50, 60 anos, pode se perguntar: "por que não fui atrás de ter um filho?". Por que eu me dediquei tanto a uma profissão? Qual era a minha motivação? 

E você fala que o ruim do feminismo é bater na mesma tecla há décadas. É o que exatamente? É isso de que tudo vai ser perfeito? A primeira coisa é isso de bater na mesma tecla, de escolher entre carreira e família, trabalho e namorado, qualquer coisa, vai ser conflituoso. A segunda coisa é forçar a igualdade entre homem e mulher, eu não sou a favor. Veja, tem uma autora chamada Christina Summers, uma filósofa americana que é feminista. Já adiante na carreira dela, ela faz uma revisão e uma crítica ao feminismo. Ela diz que são dois feminismos, o feminismo de igualdade e o de gênero. Feminismo de igualdade seriam aquelas mulheres que defendem a igualdade civil entre homens e mulheres. É o que deveria ser o princípio. Mas nenhuma pessoa, em sã consciência, não vai dizer que homem e mulher não iguais perante a lei. E tem o feminismo de gênero. São duas coisas diferentes. A minha crítica é em cima desse feminismo de gênero, que fica batendo na tecla de que homem oprime, que mulher é desfavorecida, que tem que ter uma política afirmativa para a ajudar a mulher. Isso eu sou contra. “Olha, você não precisa casar nem constituir família. Faça uma carreira”. Mas e se a menina quer casar? Tem menina que quer casar, ter família. Como é que fica? 

Você falou desses dois tipos de feminismo, de igualdade e gênero. Mas como você enxerga desigualdades de gênero, como a de salários? É uma super polêmica que eu acho que deveria ter muito mais pesquisa para falar sobre isso. Acaba que divulgando muito, como mídia e como instituto de pesquisa, principalmente o pessoal absorve muito do que vem dos Estados Unidos, curiosamente o país onde as mulheres são mais livres. Lá, cada dólar que o homem ganha, a mulher ganha sete. Aqui no Brasil é 30% a menos. Então primeiro, você tem que checar quem fez a pesquisa, porque como publicitária vou te dizer, é super possível manipular. A segunda coisa: quais os diferenciais do cargo de gerência? São os mesmos gerentes na mesma área? Ou são outras áreas? Porque tem carreiras hoje em dia que pagam mais. Qual o tempo de trabalho? E são coisas que não entram nas pesquisas. Não dá para comparar o salário de gerente de marketing com um gerente de produto. Pode ter alguma diferença? Pode. Diferença salarial talvez possa ser diminuída se você observar esses fatores, informação, escolhas e tal. Agora, você pode trabalhar em uma mesma empresa e na sua função você não ganhar mais que o outro. Por que? É uma questão de gênero ou por que de repente a empresa acaba apostando mais em que ela acha mais competente? Agora, se existe uma questão salarial de receber menos, por que uma empresa não contrata só mulheres? Se a mulher é mais barata, por que tem homens? A segunda pergunta que se deve fazer, até para assimilar: pode ser verdade? Pode. O que me preocupa é você pegar um caso e colocar como uma coisa geral. Isso maqueia um dado que é: mulher ganha menos. Em que área, como? Antes de soltar teorias como essa, acho bom verificar esse tipo de dado. Tem uma filósofa e romancista russa, Ayn Rand, ela deu uma entrevista em um programa nos anos 60, 70 e perguntaram: “O que a senhora acha dessas mulheres que estão reivindicando direitos, os equal rights?”, e ela disse: “acho que as mulheres tem que ter igualdade com os homens mas não acho isso que você está falando do movimento de liberação das mulheres. É diferente, o que elas querem é mais assistencialismo, ações afirmativas, sou contra”. Aí o homem do programa fica revoltado com ela, diz que é um absurdo, que ela estava dizendo que as mulheres tinham que ficar em casa, serem boas meninas e não fazerem nada. E ela disse que não, que as mulheres tinham que correr atrás da carreira, do que querem. Aí o homem “mas como correr atrás, você faria isso?”, aí ela “como eu cheguei aqui?!” Então as mulheres são motivadas, não precisa de um movimento que reinvindique elas, é como se alguém precisasse lutar a luta das mulheres, e não precisa. 

E você acha que que tem papéis que são mais femininos e masculinos? Não dá pra forçar uma igualdade Tem um dado que é muito divulgado pelo feminismo: que não tem mulheres suficiente em carreiras de ciências em matemática. Por quê? Por que a sociedade diz que não é pra elas? Por que tem pouca mulher em filosofia? Por que é um ambiente que não aceita mulheres? Por que tem uma pressão social sutil que diz que isso não é pra elas? Ou será que elas simplesmente não se interessam? Eu acho que, sim, os papéis são diferentes, e que quando você tira esses papéis, dá confusão. Eu não acho que é à toa que há toda uma desarticulação entre homens e mulheres, ninguém sabe como agir, você vai num primeiro encontro e você tem que dar uma boa impressão, você tem um encontro pra acertar. É que nem uma entrevista de emprego, você tem que agradar, você joga, articula, não é muito claro. E mesmo depois quando a relação se estabelece também não é muito claro o que cada um tem que fazer. Isso gera muita confusão e angústia. E eu acho que os papéis são sim definidos.

Tipo o que? O homem se encaixa muito bem no papel de cuidador, de provedor, as mulheres também, mas é diferente, é muito mais comum que os homens serem motivados a cuidar financeiramente de uma coisa do que as mulheres. Não quero dizer que mulher não deve ganhar dinheiro, não quero ser mal interpretada, mas mulheres muitas vezes, pra além do fato de ter competência pra ganhar dinheiro e ganhar, se ela está numa relação em que ela tem que sustentar o homem, muito provavelmente, ela vai embora. Ninguém sabe explicar muito bem porque, mas acontece. Tem casais em que isso funciona? Tem. Tem casais que configuram bem uma situação em que o homem fica em casa e a mulher trabalha. É um conflito, ninguém sabe o que fazer. E as mulheres acabam se encaixando muito bem no papel de prover afeto. Agora isso quer dizer que as pessoas vão desempenhar só esses papéis? Claro que não. Tem homens que se sentem bem no papel de cuidar da casa. Mas mulher é mais organizada, mulher sabe gerenciar coisas, uma casa, geralmente homem tem um esforço muito maior pra aprender as coisas que mulher, não no sentido em que não sabe cozinhar, lavar, passar, mas no sentido de organizar, o homem que mora sozinho, vai ficar um mês sem nada na geladeira. Enquanto uma mulher tem mais uma atividade nesse sentido. Papéis facilitam. Mas quais papéis são esses? Como ninguém fala mais, acaba tendo uma situação em que o casal não articula um acordo de qual papel é o de quem e não vai, acaba não funcionando.

Você acha que são mais felizes os casais que definem papéis de alguma maneira? Sim.

E você acha que o homem tem mais esse papel provedor financeiro e a mulher de afeto, eles se sentem melhor? Sim. Se perguntar para uma mulher, sem saber nada dela, o que ela prefere, e pro homem o que ele preferiria, muito provavelmente seria essa a resposta. Por exemplo, você acaba se sentindo feliz de fazer um jantar com seus amigos, mesmo que você não cozinhe. E homens ficam felizes em dar presentes pra mulher. Isso é opção/opressão necessariamente? Você se sentir gratificada por alguém fazer um gesto é opção/opressão? Alguém pagar alguma coisa pra você? O que acontece é que não é viável um mundo em que os homens pagam as contas e as mulheres cuidam da casa. Primeiro porque a mulher trabalha. Que mulher que aguenta trabalhar o dia inteiro e cuidar da casa? A maioria das mulheres trabalha não é pra ter dinheiro, é pra pagar as contas. Agora, por que não tem um tipo de acordo em que os casais definem o que cada um gosta mais de fazer? Eu gosto de cozinhar, eu cozinho e você lava. Tem casais que funcionam nesse tipo de arranjo. Esse tipo de diálogo, acordos tem que ser feitos. Esse cenário foi legado, ninguém perguntou se todo mundo queria que fosse assim. As nossas gerações resistem a isso. Quantas mulheres lavavam, cozinhavam, cuidavam dos filhos e trabalhavam? E quantas tinham empregadas? 

Uma socióloga que entrevistamos na última edição disse que, nos anos 90, 80, a empregada doméstica foi a grande propulsora das mulheres no mercado de trabalho... Sim, sim. O que impulsionou o feminismo foi toda uma geração beat, que não queria amadurecer, mulheres que ficaram muito desocupadas porque foi um momento de crescimento econômico, prosperidade, em que as pessoas foram morar no subúrbio. A mulher ficou isolada num lugar, numa casa em que sua empregada faz todas as atividades domésticas e seus filhos não consomem todo o seu tempo? É normal que a mulher se deprima e diga que aquilo não é vida. Se você pegar e for pra trás disso, as mulheres trabalhavam em atividade voluntária, serviço social, mas isso não era trabalho? Por que não? Por que não recebe salário? As mulheres eram ocupadas. Então acabam criando alguns mitos, como esse de que a mulher fica em casa e lava, passa, cozinha. E hoje as mulheres que pagam metade das contas e ainda têm que fazer tudo? Pera ai, né? Eu que tenho que levar o mundo das costas? Claro que não. Mas a mulher que tem um marido que ganha muito bem, não precisa trabalhar. Como qualquer sociedade democrática, não posso ter só direitos, mas deveres também. Até que medida as mulheres têm que dividir tarefas de casa porque trabalham; quantos homens aceitam fazer isso? Isso gerou um cenário mais feliz pros casais? Esses papéis flexíveis geraram  mais felicidade? A gente não sabe. Tenho a sensação de que pouca coisa muda.

Isso dos papéis do homem provedor e da mulher afetiva, isso é o que? Cultura? Natureza? É muito grave querer dizer que tudo é cultura ou tudo é biologia, mas tem muito de comportamento nisso. Imagina como que deveria ser uma mulher da pré-história assumindo esse trabalho do homem, ser provedora, ir caçar, muitas morreriam. Isso é “comportamento adaptativo”, nao quer dizer que os papéis sejam totalmente viáveis, é só que a maioria preferiria. Se não fosse constrangedor, se você falasse na boa e ninguém julgasse isso, de você querer pagar a maioria das contas ou todas as contas, que mulher pudesse responder honestamente que não? Não sei, é uma hipótese. Tem um certo constrangimento que tem algumas coisas que a mulher deve fazer, a mulher contemporânea, deve falar que é dona do seu dinheiro, que não precisa de ninguém, mas precisa de alguém, todo mundo precisa, as pessoas não vivem isoladas. Por que as pessoas querem casar então? Será que está todo mundo iludido com um fenômeno de cultura e ainda não se ligaram? Eu sou meio darwinista, “comportamento adaptativo”, homens que tinham instinto provedor acabaram sobrevivendo mais, e as mulheres que queriam ser cuidadas também. E hoje é assim, uma miopia, não é que mulher é frágil, tem necessidade de ser cuidada, é que é bom ser cuidada, é horrível se sentir abandonada. Você pega um grupo de meninas, se ninguém estiver observando, se elas forem realmente íntimas, você vê uma narrar o primeiro encontro, você vai reparar em coisas do tipo “ele foi gentil, carinhoso, me levou e me buscou em casa, se ofereceu pra pagar a conta ou não”. Não acho nada de errado você se sentir feliz nessa situação, querer viver isso. Pergunta pras mulheres que têm que sustentar uma casa se elas se sentem libertas, emancipadas, independentes e isso é super bom pra ela? Se ela não gostaria de ter ajuda de algum tipo? 

"Tem um certo constrangimento que tem algumas coisas que a mulher deve fazer, a mulher contemporânea, deve falar que é dona do seu dinheiro, que não precisa de ninguém. Mas precisa de alguém, todo mundo precisa, as pessoas não vivem isoladas"

E o que você acha que é a principal falta de liberdade do discurso feminista? A liberdade de escolha e de crítica. Me parece que o discurso feminista foi adquirindo ao longo dos anos uma característica de seita. Basta ver a reação de uma feminista a uma crítica sequer ao movimento. Não tem questionamento, pensar sobre a questão de uma mulher ganhar menos que o homem, uma feminista surta num cenário como este. Se você fala qualquer coisa e é mulher, te chamam de machista. Dizem que o feminismo é sobre liberdade de escolha, mas de quem? Quais mulheres? Qual liberdade de escolha? Por que uma mulher não pode escolher ser dona de casa, ser mãe em tempo integral, não trabalhar? Pra algumas mulheres poderia ser uma escolha extraordinária. Já vi mulheres sofrerem por voltarem da licença maternidade. Se quiser abandonar a carreira, é uma escolha a ser feita. De repente, depois de 15, 10 anos, ela gostaria de ter aberto mão da carreira por um tempo Quantas mães nossas, se a gente dissesse que não queria trabalhar, que queria aprender a cozinhar, lavar, passar, quantas iam nos apoiar? 

Não acha que é uma preocupação válida dessas mães feministas? Mas isso não tem a ver com feminismo, tem a ver com qualquer pessoa. Um pai diz a mesma coisa pra um filho. Por alguma razão, as pessoas acham que isso só existe no universo feminino, que as mães fazem isso pra proteger suas filhas, mas qualquer pessoa tem que construir sua identidade antes de qualquer coisa. Qualquer pessoa como pai e mãe acaba orientando o filho a construir uma identidade. O que acaba acontecendo e que é totalmente pós-moderno é que a sua identidade é a sua carreira. Fulano é médico, fulano é jornalista. Então você acaba sendo definido pela sua carreira e não por outros laços sociais que você possa ter. Não estou dizendo que mãe deve falar pra filha casar ou não, toda pessoa tem que construir uma identidade, agora dizer que casar, ser mãe e esposa não é uma identidade válida, isso que eu acho errado. Pra algumas mulheres essa é a identidade, tem mulher que não se encontra em carreira nenhuma, mulheres e homens não são felizes no emprego que tem, quantas pessoas são super felizes no emprego? 

"Se você colocar numa rodinha mulheres prendadas e mulheres muito bem sucedidas, homens e mulheres vão elogiar as bem sucedidas, ninguém vai dar parabéns por talentos domésticos porque o  cenário de hoje não favorece mais isso"

Como você enxerga uma mulher que não quer só fazer comida, quer arrancar elogios do marido? Como você enxerga essa mulher ontem e hoje? Antes não tenho como te dizer, não tenho como te confirmar que as mulheres gostavam desse tipo de aprovação. Mas é um comportamento da natureza humana querer receber elogios, aprovação no que faz. Se você faz trabalho doméstico, quer ser aprovada nisso. Um criança, ela faz um desenho, ela quer aprovação. Você querer melhorar é totalmente válido, aprender a cozinhar bem pro seu marido, mulher, quem quer que seja, totalmente válido. Mas quando as mulheres podem se dedicar a isso? Qualquer coisa que uma pessoa se dedica, que ela queira, tem seu valor. Quantas mulheres vão se gabar de “eu cozinho muito bem” ou de “eu consegui uma promoção no meu trabalho?” Não tem um cenário hoje em que essas mulheres são exaltadas por isso. “Olha o colarinho que a minha mulher passa fica sensacional”, que marido fala isso? O que eu falo de constrangimento social não é só de mulher, é de homem também. Que homem quer falar que a mulher dele não trabalha? Que homem não quer se gabar que a mulher é de sucesso, importante no trabalho. Quantos homens querem se gabar que o grande talento da minha mulher é fazer um arroz com carne? Não existe mais espaço pra esse tipo de atividade, as mulheres acabam sendo diminuídas. A opressão vem de dentro, não de fora. Quantas mulheres realmente se interessam em aprender a fazer alguma coisa em casa? Elas não têm nem tempo pra isso. Sendo prendados, nem homens nem mulheres se sentem elogiados ou exaltados. A pessoa quer se sair bem em tudo, quer agradar o tempo inteiro. É muito corajoso quando uma mulher fala “eu cozinho muito, lavo muito”, porque as pessoas ouvem e nem se importam com isso. Se você colocar numa rodinha mulheres prendadas e mulheres muito bem sucedidas, homens e mulheres vão elogiar as bem sucedidas, ninguém vai dar parabéns por talentos domésticos porque o cenário de hoje não favorece mais isso.

"Quando o homem é prendado, ele é valorizado. Principalmente se sabe cozinhar, quando o homem faz um jantar pra mulher..."

Por que isso é ruim? Não é uma questão de ruim ou pior, eu só penso que isso acaba inibindo as mulheres de uma escolha. É a questão de que toda vez que você restringe a liberdade é ruim. Do mesmo modo, uma mulher deve poder querer ser dona de casa.

E os homens que sabem fazer isso? Por um lado as mulheres acabam valorizando. Quantas vezes uma amiga se gabou que o namorado cozinhou? É comum isso. Isso é valorizado. É claro que ninguém quer que seu marido fique em casa lavando, passando, ninguém acha legal. Mas quando o homem é prendado, ele é valorizado. Principalmente se sabe cozinhar, quando o homem faz um jantar pra mulher...

Por que isso acontece? Acho que como você acabou tirando o cuidado do homem de ser o único provedor, o cuidado tem que entrar por outro lugar, de outra forma. Se por um lado o cara acaba sendo inibido a pagar um jantar pra você, mulher independente, de repente fazer um jantar funciona. Tem que demonstrar afeto. As pessoas se contentam quando as pessoas mostram o amor. Talvez seja efeito do tempo, o cara não pode mais uma serie de coisas, os caras tambem não sabem fazer, não são só as mulheres que estão perdidas, eles também estão. Por exemplo: ele sabe que tem que pagar a conta, como você vai se sentir se ele não pagar? E se ele pagar? Você pode achar que ele quer comprar você, ou que ele só está pagando porque quer transar com você e então é um canalha, ele não sabe o que esperar de você. Então uma maneira de demonstrar é carinho, é ele te chamar na casa dele e ele fazer um jantar. Daí você se sente querida, cuidada.

Você falou que na sua família... A minha mãe é psicóloga, mas foi fazer faculdade depois de criar os filhos, a maternidade veio primeiro. Minha irmã é médica. Tinha uma grande pressão pra que tivesse sucesso na família. Nunca houve incentivo pra levar vida doméstica. Falei que queria fazer filosofia e “como vc vai pagar suas contas, se virar?”. Tem uma questão de indenpendência que acaba até isolando você em algumas coisas. A gente crescer em ambientes que não te deixa exercer algumas coisas, voce acaba sendo condicionada a isolar certas opções. Tem um certo constrangimento, minha irma fez medicina e foi super valorizada e eu não fui por fazer filosofia. 

O que são papéis essencialmente femininos em que você se sente confortável? Gosto muito de cozinhar, não me incomodo de lavar roupa - as vezes eu brinco que não foi a lei que libertou as mulheres, foi a máquina de lavar, a geladeira e a empregada doméstica. Tarefas domésticas não incomodam, não que eu seja excelente nelas. Minha mãe não me ensinou nada, mas eu sempre gostei de cozinhar, testar receitas, receber amigos, e a maioria das coisas eu aprendi sozinha.

Pra você, alguém te convidar a pagar a conta é ofensivo? Não, de jeito algum, nem homem nem mulher, qualquer pessoa que me convide eu acho gentil, bem gentil.

Você sabe que as pessoas têm muita curiosidade, uma filósofa que se diz antifeminista... É um pouco uma desonestidade intelectual por parte do outro lado, dá impressão que sou uma reacionária escrota que quer que as mulheres voltem pra casa e fiquem isoladas em correntes, como se fosse esse o cenário anterior e que é contra a liberdade, uma louca... Qualquer corrente, feminismo, qualquer ismo eu já acho grave. Feminismo não precisa defender mulher, é conceitual. Quantos você pode dizer que não colocam o homem numa posicao de opressor? Todos os homens sao opressores? Todas as mulheres sao vitimas? É nesse sentido que eu digo de fazer críticas. O que sobrou pras mulheres dessa geração? Quais lutas sobraram? Vamos debater.

O que é pra você alguém machista? Eu raramente uso o termo porque feminismo e machismo se encontram, o machismo também é uma questão de gênero. O que é gênero? Isso implica a guerra dos sexos, os dois lados, extremos... Você acaba desarticulando relações, criando mentiras, tomando a parte pelo todo, isso implica em pessoas mais infelizes, mais angustiadas. O machista é um cara que acha que o homem é superior e que a mulher é inferior, ardilosa, daí vem a mulher e fala que ela é superior. O discurso feminista diz que homem é opressor, que não presta, é canalha, autoritário. Vejo a feminista como machista só que do outro lado. Não acho que tem que ter guerra dos sexos. O cenário é esse, não acho que tem que voltar ao que era, mas é tão confuso, ninguém sabe o que fazer, os homens não podem se sentir acuados, ter medo de mulher e eu vejo isso acontecendo muitas vezes. Se você se atribui o papel de vítima o tempo inteiro, o que sobra pra ele? O papel de algoz, são todos algozes? Homem que bate em mulher, estupra:isso é coisa de homem ou de gente ruim? Isso não é questão de caráter em vez de gênero?

Você acha que existe alguma situação desfavorável pra mulher que valha a pena o esforço da causa feminista? Eu acho muito pouco provável uma mudança social por um movimento revolucionário, porque não tem como você conseguir medir consequências e impacto. As mudanças que são efetivas que acabam melhorando de fato a realidade das pessoas são lentas, graduais e orgânicas, elas vão acontecendo. Por exemplo, mulheres que trabalham jornadas extraordinárias, chegam em casa e tem marido encostado, eu não acho que tem que ter movimento, acho que essa mulher tem que ser forte e tomar uma decisão, isso tem que partir dela. Em que medida essas mulheres desses movimentos de fato estão ajudando outras mulheres? Eu crio, coloco em baixo da minha asa e ela fica dependente do movimento. Não só pra mulheres, pra todo mundo. Mas isso não vem da noite pro dia, nem de um movimento que diz o que é melhor pra todo mundo. Você acaba reproduzindo um mecanismo que gerou a situação desigual só que em outra frente, você desloca só. Não acho que como um movimento deveria se organizar alguém dispoto a fazer justiça ou ser a salvadora das mulheres.

Voce se coloca como uma pessoa conservadora? Eu sinto uma certa coisa de classificação. Acho o termo perigoso. São palavras que eu uso, mas temos que prestar atenção com os termos que usamos porque você está pegando um ambiente intelectual e midiático em que isso é ruim, dizer que alguém é conservador. Se eu disser que sou conservadora, eu entendo que se você entende que o conservador suspeita de mudanças drásticas, que acha que os indivíduos tem que ser preservados e que nossa liberdade tem que preservar, que as pessoas tem direitos individuais que ninguém tem que reivindicar uma luta, então, sim eu sou conservadora. Eu não acho que tem um grupo me advogando. Eu passei pela fase marxista, como todo intelectual, mas me desencantei. Sou muito mais da ordem dos comportamentos, afetos, hábitos, vida cotidiana do que em torno politicos opressores de luta de classe, o feminismo é deslocar a luta de classe pra uma luta de gêneros, e isso é problemático.

 

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