A poeta indiana-canadense de 23 anos usou a internet para popularizar seus poemas, que falam de modo bastante pessoal sobre como sobreviver ao racismo e ao machismo
Quando tinha quatro anos de idade, a indiana Rupi Kaur embarcou em um trem na cidade de Punjab, na região noroeste da Índia, na viagem que embarcaria por vários modais até chegar ao Canadá. Segundo contam, aos cinco anos ela já se dedicava à pintura no país a mais de 10 mil km de onde nascera. Aos 17, postava fotografias e seus primeiros poemas no Instagram. Se no início da adolescência o inglês havia sido um entrave para se enturmar no colégio, aos 23, Rupi se tornou uma das poetas em inglês mais lidas nos últimos meses, batendo a marca de mais de um milhão de cópias vendidas segundo o The New York Times.
Com o sucesso de Outros jeitos de usar a boca, Rupi teve seu livro de estreia traduzido para o espanhol, no fim do ano passado, e para o português, em fevereiro, lançado pela editora Planeta. Em poucos meses por aqui, a obra repetiu os feitos lá de fora: se tornou propagandeada por youtubers - como Jout Jout -, cultuada e discutida em reuniões feministas e centenas de vezes nas redes sociais.
Mas por que Rupi faz tanto sucesso? "A Rupi é uma mulher jovem, feminista, muito presente na internet, e a escrita dela traz essas linguagens e referências que também são das leitoras", explica a tradutora da edição em português, a também poeta Ana Guadalupe. "Os [poemas] mais curtos parecem legendas de Instagram ou tuítes." Pode-se dizer que, a exemplo do brasileiro Zack Magiezi, Rupi se integra ao que críticos literários classificam de InstaPoets; uma geração de poetas que lança poemas curtos e fotografias nas redes sociais, gerando centenas de likes e compartilhamentos sem a mão de uma editora convencional. A própria fama de Rupi começou após a publicação de uma foto na qual aparece menstruada, postada em 2015 no Instagram, como celebração à natureza feminina.
Se números de influenciadores na Internet não garantem profundidade, Rupi busca um resgate íntimo em seus poemas, cruel até, para propagar sua influência, dizem seus críticos. Há divagações diretas sobre a vida sob o racismo, relacionamentos abusivos, a vida com o pai, amores, violência e libertação sexual. "Acho que ela fala de existir com o outro", avalia Ana. "O afeto, a conversa, o poder de destruição e essas tentativas de se posicionar, de ser ouvida, de ter uma voz, especialmente como mulher", reflete Ana. "Não sei se eu pensaria em leveza ou felicidade, mas tem muitos momentos de descoberta, força, prazer, doçura."
Para a arquiteta e escritora Stephanie Ribeiro, Rupi usa suas palavras para evidenciar várias formas de misoginia que há décadas são denunciadas. "Eu sou aquela mulher [dos poemas de Rupi]. Na verdade, nós todas somos, em algum momento, a mulher destes poemas. E hoje mulheres estão caminhando cada vez mais para a quebra dos silêncio que nos torturam, silêncios que são denunciados há anos por feministas, mas hoje, por conta das redes sociais, conseguimos ecoar nossas falas e narrativas", reflete.
A pedido da Tpm, Ana e Stephanie selecionaram um poema cada uma de Outras formas de usar a boca. Abaixo, a explicação delas para a escolha e o escolhido:
Stephanie Ribeiro, sobre "- sessões nos dias de semana": "Rupi escreve e denuncia algo que as pessoas nem esperavam que ela falasse sobre, pois uma mulher de cor, como ela, como nós, não deveria sequer existir. Muitas das poesias dela machucam, mas é importante falar sobre isso. É importante nomear as violências que nos cercam. Essa foi uma das que mais me impactou e entendi esse processo de não se calar diante das dores que o mundo nos causa."
o terapeuta coloca
a boneca na sua frente
ela é do tamanho das meninas que seus tios gostam de apalpar
mostre onde ele colocou as mãos
você mostra o lugar
entre as pernas aquele
que ele arrancou com os dedos igual a uma confissão
como você está se sentindo
você desfaz o nó da garganta
com os dentes
e diz bem
um pouco dormente
- sessões nos dias de semana
Ana Guadalupe, sobre "- a arte de esvaziar": "À primeira vista é um dos poemas mais "negativos" do livro, mas o ritmo e a escolha de palavras trazem à tona uma sensação de resistência, de consciência. Pra mim é uma das combinações mais interessantes de forma e conteúdo. Também foi um dos poemas mais desafiadores no processo de tradução."
deixar a barriga da minha mãe vazia
foi meu primeiro ato de desaparecimento aprender a encolher para uma família que gosta de ver as filhas invisíveis
foi o segundo
a arte de se esvaziar
é simples
acredite quando eles dizem
que você não é nada
vá repetindo
como um mantra
eu não sou nada
eu não sou nada
eu não sou nada
tão concentrada
que o único jeito de saber
que você ainda existe é
o seu peito ofegante
- a arte de se esvaziar
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