Quando meninos viram homens

por Redação
Tpm #78

Em uma singela viagem com meu sobrinho, acabei tendo a chance de vê-lo enfrentar uma situação de forte emoção e sair mais maduro

 
Paulo queria ver o time dele jogar longe de casa. Justo, já que se tratava de uma partida importante: quartas de final da Libertadores. Paulo tem o fanatismo futebolístico dos 15 anos, que, embora raramente nos abandone vida adiante, foi, nesse caso específico, agravado pelo fato de ter sido na entrada da adolescência, justamente quando o futebol passa a ser a razão da existência, que o garoto começou a gritar “É campeão!” e nunca mais parou. Paulo é são-paulino. Assim, o menino queria ir ao Rio ver seu time jogar contra o Fluminense. A derrota e a eliminação, embora devidamente contabilizadas, não eram, em sua cabeça, uma probabilidade.

Como o gene da paixão pela bola ele herdou desta tia, carioca-transformada-paulistana, e torcedora do Fluminense, nada mais poético do que me convidar para ir ao Rio assistir com ele àquele jogo decisivo que envolvia nossos times. E eu, que amo Paulo e que tenho o realismo futebolístico dos 40 anos, mesmo sabendo que a classificação de meu time era uma improbabilidade, aceitei. Torceríamos para times diferentes, mas estaríamos, como sempre estivemos desde o início, juntos.

Chegamos ao Maracanã pouco antes do pontapé inicial e fomos para as cadeiras especiais, bem no meio da torcida carioca. Paulo teria que passar pela inaugural provação de torcer, distorcer e sofrer calado e camuflado: ombro a ombro com o rival. O gol do Fluminense, ainda no primeiro tempo, desanimou levemente o menino. Balançando ritmadamente as pernas, passou a pedir que eu explicasse a derrota temporária. Eu dizia que o time dele precisava apenas de um gol, um só, porque isso obrigaria o Fluminense a ter que marcar mais dois, e, francamente, meu Fluminense jamais seria capaz de ganhar com dois gols de diferença do São Paulo dele.

Aprendendo a sofrer
E eis que, conforme a profecia, já na metade do segundo tempo, vem o tal gol que definiria aquele duelo, o gol do time de Paulo. Transbordando de emoção e amor, o garoto fez o inimaginável: subiu na cadeira, braços erguidos aos céus, punhos fechados, gritando: “São Paulooooooo!”. E eu, que freqüento estádios há 35 anos e já presenciei cenas medonhas por muito menos, comecei a olhar em volta, garras para fora, pronta para proteger a prole. Não foi preciso: os cariocas, embora lançassem olhares mortais na direção do rebento, não o aniquilaram. Mas a blindagem à dor física não faz muito por aquela que é mais destruidora: a emocional. A 15 minutos do fim, o Fluminense faz o segundo gol e a real possibilidade de eliminação do time do coração passou a dominar Paulo. Eu, dividida entre o amor pelo descendente e o amor pelo meu clube, me vi em situação inusitada: torcer ou consolar? Paulo estava, talvez pela primeira vez na vida, irremediavelmente só; por mais que quisesse abraçá-lo, beijá-lo e protegê-lo, eu não poderia, infelizmente, ficar com sua dor.

O jogo ganhava em tensão, o Fluminense atacava em massa, o estádio explodia em vozes e Paulo assistia a tudo de pé, mãos na boca, olhos vermelhos, coração disparado – é incrível a capacidade que o futebol tem de ensinar a sofrer, pensei. Ali, cercado por 80 mil estranhos, Paulo começava a entender que, na vida, algumas situações podem ser extremamente solitárias, mesmo que estejamos protegidos por alguém que nos ama acima de tudo.

Sinto, logo existo
E então, quando, aos 47 do segundo tempo, um certo Washington fez o improvável gol do meu time, toda a emoção e todo o sofrimento ganharam cores reais. Enxerguei meu sobrinho; a tristeza da eliminação em campo inimigo fica mais cruel porque é contrastada com a euforia do rival exposta ali em sons e imagens fortes. Paulo não se mexia, olhar perdido no horizonte, apenas curtia sua solitária dor. Foi nessa condição, pela primeira vez entorpecido pelo aniquilamento moral provocado pela derrota no último minuto, que ele me abraçou com a força de quem se agarra à própria vida e disse, voz embutida repleta de sofrimento: “Parabéns. Foi um grande jogo”. E eu, cheia de amor e de simpatia pela condição demasiadamente humana e madura do menino, chorei e abracei um pouco mais. Grudados, como se fôssemos simplesmente a igual substância, o que de fato somos, saboreamos dores e sabores de um mesmo amor.

Meia-noite e meia, saímos silenciosamente pelas ruas à procura de um táxi. No hotel, pedimos comida e tomamos banho. Antes de deitar, gestos tristemente lentos, dor exposta, Paulo tirou da mochila a camisa com a qual dormiria: a do seu time. De um jeito intuitivo, o garoto entendeu que não nos apaixonamos apenas pelas qualidades de alguém, mas, principalmente, por suas fraquezas – enxergou pela primeira vez na vida a doce sedução da vulnerabilidade. E soube que existe um tipo de união que só a mistura exata de dor, paixão e sofrimento é capaz de construir. Naquela hora, Paulo tatuou em sua alma a referência de uma nova dor de amor – fundamental para que, quando outras semelhantes chegarem, saibamos do essencial: que, como escreveu o filósofo, somente o interesse apaixonado pode nos fazer existir plenamente. Foi assim que, no Rio, numa quarta-feira de lua cheia, o menino apaixonado existiu plenamente e aprendeu, no meio da dor, a amar um pouco mais.
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