Uma entrevista com o deputado federal Jean Wyllys sobre seu projeto de lei que descriminaliza a interrupção voluntária da gravidez. Será que agora vai?
Art. 10º – Toda a mulher tem o direito a realizar a interrupção voluntária da gravidez, realizada por médico e condicionada ao consentimento livre e esclarecido da gestante, nos serviços do SUS e na rede privada nas condições que determina a presente Lei.
Não, essa lei ainda não existe no Brasil. E é improvável que exista nos próximos dois anos, enquanto o presidente da Câmara dos Deputados em Brasília for Eduardo Cunha – o homem que declarou que, para haver qualquer votação sobre aborto na casa, será preciso passar por cima de seu cadáver. "Aborto eu não vou pautar nem que a vaca tussa", reiterou ele em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em fevereiro.
Apesar do vento nada a favor, o deputado federal Jean Wyllys, reeleito em 2014 com 144 mil votos pelo PSOL do Rio de Janeiro, decidiu encarar a briga. Na semana passada, protocolou na Câmara o PL 882/2015, projeto que legaliza a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação (é do projeto o trecho destacado no início desta página). As chances de aprovação são mínimas, e o próprio autor admite isso.
Entusiasta da campanha #precisamosfalarsobreaborto, lançada em outubro pela Tpm, Wyllys acredita que propor o projeto, ainda que ele não passe, é a única estratégia para que o tema seja ao debatido na casa e entendido pela sociedade – como aconteceu com temas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Nessa questão, fui derrotado no Congresso, mas saí vitorioso na sociedade, que passou a defender o casamento igualitário."
O projeto não legisla apenas sobre aborto, mas também sobre direitos reprodutivos e educação sexual nas escolas. Parte do conteúdo foi inspirado no projeto que a senadora uruguaia Constanza Moreira conseguiu aprovar, com aperto, em seu país em 2012. Constanza e representantes de diversos movimentos feministas – de ativistas da "velha guarda", como Sonia Correa e Branca Moreira Alves, a figuras da nova geração, como a cantora Karina Buhr – estiveram em Brasília para debater o projeto antes de sua divulgação. "Lemos juntas o PL, discutimos alguns pontos entre nós e com o Jean Willys", conta Karina. "O importante agora é deixar esse assunto no centro da roda. Não deixar ele ser tratado como coisa superficial, 'problema só de mulher', ou como uma coisa que pode esperar. Quanto mais barulho se fizer, melhor".
Assim começa um movimento que, um dia, pode tornar o aborto legal no Brasil, como já acontece em dezenas de países. E que pode evitar milhares de mortes causadas hoje por cirurgias clandestinas ou métodos caseiros. A seguir, a conversa com Jean Wyllys.
Tpm – Quando o presidente da Câmara diz que não vai colocar em pauta uma votação sobre aborto "nem que a vaca tussa", que seria preciso "passar sobre o seu cadáver", que esperança podemos ter de que esse projeto avance?
Jean Wyllys – A primeira coisa a fazer é distinguir a tramitação legislativa e o espaço político. Essa pauta tem espaço político, mesmo contra a vontade de Eduardo Cunha. Mesmo meios conservadores estão abrindo espaço para essa discussão, porque a sociedade começou a cobrar. Na reunião que fiz com feministas da velha e da nova guarda, avisei: não há ambiente para aprovação. Mas as pautas de direitos humanos têm efeito político, de mobilizar a sociedade. Havia o perigo de o assunto sequer ser pauta! Agora, há um projeto de lei e o presidente da casa tem que despachá-lo, gostando ou não.
Não há como ir direto para uma gaveta, é isso?
Não, ele não pode selecionar o que despacha ou não. Vai ter que despachar, provavelmente para três comissões. Vai ter que ser criada uma comissão especial para o projeto, e os partidos terão que indicar os membros dessa comissão. Temos que trabalhar para que, quando essa comissão for criada, os partidos indiquem as pessoas mais progressistas para estar nela. Que Jandira Feghali seja a relatora, ou Erika Kokay. Os deputados progressistas têm que articular isso.
A estratégia é pôr o assunto em pauta, mesmo que uma aprovação seja impossível agora.
É a única estratégia possível. Encaremos os fatos: somos minoria. As eleições de 2014 moldaram um Congresso mais conservador, mais interessado em cuidar de negócios e interesse próprios. Então, se somos minoria, temos que ir pelas brechas. Não posso dar o projeto como derrotado. Vai haver debate, audiências públicas, apoio de profissionais de saúde, coletivos de mulheres, parentes de vítimas. Podemos incendiar o Congresso Nacional com essa discussão. Faço um paralelo com a questão do casamento igualitário: fui derrotado no Congresso, mas saí vitorioso na sociedade. A proposta conseguiu dialogar com espaços de representação cultural, o casamento igualitário está nas novelas, nas conversas, no pensamento. Quem é contra está isolado, porque a sociedade passou a defender o casamento igualitário. O projeto ajuda a mudar a sociedade.
Como se formou esse grupo de mulheres que se envolveu no projeto?
Na minha primeira legislatura eu já tinha a ideia de um projeto que legislasse sobre a interrupção da gravidez indesejada. Um ano atrás, fui a Estocolmo, na Suécia, representando o Brasil na Conferência Internacional de Parlamentares, que discutiu as ações da ICPD [Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, das Nações Unidas], e assumi o compromisso de propor no Brasil projetos pelos direitos sexuais femininos. Mas eu sou homem, e muitos movimentos feministas são refratários à participação masculina em questões como o aborto. Eu não concordo com isso, acho inclusive que o aborto só é criminalizado por ser encarado como um assunto de mulher. Mas eu precisava ter cuidado, e por isso não propus nada de imediato. Procurei coletivos de mulheres e avisei que gostaria de construir um projeto, como fiz o do parto humanizado em parceria com a Artemis [organização que trabalha pela autonomia feminina e o fim da violência contra as mulheres]. Convidamos feministas históricas, militantes da velha guarda, que desde a Constituinte de 1988 trabalham por esses direitos. O projeto tem o aval delas.
E como foi a participação da senadora uruguaia Constanza Moreira [articuladora da lei que legalizou o aborto no Uruguai em 2012]?
A Costanza foi a grande condutora do processo no Uruguai. Por sinal, lá ela ganhou numa votação bem apertada. Usamos o projeto dela como referência, mas partindo da nossa realidade. Ao analisar as políticas que já existem aqui nesse campo – campanha de combate ao vírus HPV, distribuição de pílula do dia seguinte etc. – traçamos um projeto amplo, que legisla não apenas sobre a interrupção da gravidez, mas também sobre outras questões. Inclusive para não sermos acusados de defender aborto como método contraceptivo, o que não é o caso.
O que você responde a quem critica o fato de um projeto sobre aborto ser proposto por um homem? Não há, de fato, um contrassenso nisso? Há sim setores radicais dos movimentos feministas que me acusam de usurpar direitos e causas que são das mulheres. Mas a verdade é que não há deputada disposta a defender esse projeto no Congresso hoje. Mesmo as que são favoráveis não dizem publicamente que são. Porque há um custo político aí, em ser chamado de "abortista" e todas as acusações articuladas pelas igrejas. As deputadas temem isso. A bancada feminina do Congresso não é nem um pouco feminista. Mas eu sou um deputado kamikase, que abraça as causas. Sou porta-voz desse projeto, parceiro e simpatizante da causa.
Como você lida com as críticas dessa ala mais radical?
Eu procuro me isolar delas. Há pessoas que, em nome do feminismo, são tão cruéis e odiosas quanto a extrema direita. Sem exagero, a postura de certas feministas de hoje é muito próxima da ultradireita, do que há de mais conservador e raivoso. Não presto atenção ao que gente assim diz. Não posso dar atenção a críticas misândricas, que não admitem que essa luta é também dos homens. É claro que a experiência conta, mas só ela não faz as coisas avançarem. Foi fundamental ter brancos financiando movimentos como os Panteras Negras para que a questão racial evoluísse nos Estados Unidos. Se você considerar corporativismo de gênero, vamos entender que todas as mulheres são progressistas, apenas por serem mulheres? A Mara Maravilha por acaso é defensora de direitos feministas? [risos]
Quantos deputados votariam a favor desse projeto hoje?
Temos mais de 100 deputados apoiando essa pauta. Muitos outros podem ser convencidos. Há um trabalho de advocacy, para que todos sejam pautados pela honestidade. Não é hora de tratar aborto como questão moral, mas de saúde pública. Mostrar quantas pessoas morrem. É possível convencer deputados. Há vários que se dizem contrários ao aborto, mas quero entendem como política pública de saúde. Entendem que é importante. Eu sou católico, mas entendo que é preciso fazer alguma coisa. A descriminalização do aborto em outros países trouxe a diminuição de mortes. Temos apoio da ONU Mulheres, o fundo das Nações Unidas para essas políticas.
Como é a tramitação do projeto agora? Quanto tempo leva até que as comissões da casa trabalhem nele?
Até o fim do ano o presidente deve fazer esse despacho e então as coisas andam. O fundamental é que a imprensa, os coletivos aliados, a sociedade, comecem a pressionar desde já. Precisa haver estímulo a essa pressão popular sobre os trabalhos do Congresso. É pra todo mundo ligar pro "Fale conosco" da Câmara e cobrar que o projeto seja despachado. A gente vai fazer pressão.
Estar em um Congresso assim, tão retrógrado, não desanima?
Não podemos ser pessimistas. Temos que manter os debates no ar, não deixar a peteca cair. Quando uma discussão é bem conduzida, pode surtir efeitos. Ninguém esperava que a gente fosse vencer no Estatuto da Pessoa com Deficiência, da Mara Gabrilli [projeto aprovado em março, que define, entre outras coisas, penas para quem discriminar pessoas com deficiência]. A gente duvidou que fosse aprovado, a bancada religiosa queria excluir do texto o respeito à identidade de gênero e à orientação sexual [nos serviços de saúde destinados às pessoas com deficiência]. Mas ganhamos. Apertado, por 13 votos de diferença, mas ganhamos. Vai ser muito importante fazer isso com o aborto. Debater, falar da quantidade de mortes, mostrar o segmento da população que é mais afetado. De novo: a gente precisa vencer a batalha na sociedade, antes de vencer no Congresso.
Vai lá: Projeto de lei na íntegra