Por que o prazer feminino ainda é tabu entre mães e filhas?
71% das leitoras de Tpm nunca conversaram com suas filhas sobre prazer. Batemos um papo com mulheres que precisam enfrentar o tabu que herdaram de suas mães na relação com os filhos
Masturbação, toque, gozo, prazer. Essas palavras, quando se tratam do corpo de uma mulher, ainda soam como tabu. Embora o assunto esteja cada vez mais em pauta, ainda é difícil para muitas mulheres discutir o prazer feminino com suas filhas. Em uma pesquisa nas nossas redes sociais, 71% das leitoras de Tpm revelaram não ter essa conversa em casa. Muitas explicam o silêncio pela falta de exemplo: só 34% das mulheres falaram de sexo com suas mães. Sobre prazer, apenas 6%.
Até pouco tempo atrás, conversar sobre sexo significava discutir como servir ao homem, atender a instituição do casamento e aos desejos masculinos. A história é marcada por nomes que contribuíram, incansavelmente, para que as lutas das mulheres avançassem. Simone de Beauvoir talvez seja das mais populares. A professora e filósofa foi precursora ao abordar as tantas lacunas do feminino. No livro O Segundo Sexo, ela discorre sobre a opressão que sofremos no mundo dominado pelo masculino, e escreve: “Na cama, a mulher aguarda o desejo do homem, espera, por vezes ansiosamente, seu próprio prazer”.
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“Fomos criadas numa narrativa de procriar e dar prazer ao outro, sem ‘autorização’ para explorar nosso próprio prazer. Não é aperta um botão que tudo acontece, mas é sempre bom lembrar que você não precisa de permissão para explorar seu próprio corpo”, diz Camila Faus, 47 anos, diretora de cena e uma das idealizadoras do Shet_alks, plataforma de conteúdo para mulheres 45+. “Já parou para pensar que um menino, quando demora muito no ‘banho’ acaba sendo motivo de orgulho para muitos pais, enquanto nós, meninas, sempre ouvimos ‘fecha as pernas’, ‘não mexe aí que é feio’ e por aí vai?”.
Se a informação e o autoconhecimento são chaves para o prazer, não se sentir no direito de ter intimidade com seu próprio corpo impede que muitas mulheres explorem sua sexualidade. Numa sociedade machista e patriarcal, a educação sexual das meninas é voltada à contracepção e a prevenções. A adolescente, quando perde a virgindade, geralmente é levada ao ginecologista para aprender a não engravidar e a não contrair alguma doença. Na preocupação de prevenir, precaver e proteger, o desejo fica fora dessa equação.
“Quase sempre o prazer feminino é associado à culpa, vergonha ou algo que é errado”, afirma Fernanda Guerreiro, 48 anos, escritora, roteirista e também sócia da plataforma Shet_alks. “É assustador, mas pesquisas mostram que mais de 50% das mulheres chegam aos 50 anos sem nunca terem tido um orgasmo. Como a gente vai falar sobre algo que não se conhece?”.
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Como muitas mulheres, a escritora Giovana Madalosso cresceu numa família em que prazer feminino nunca foi assunto e o sexo existia só depois do casamento. “Durante a quarentena, observando minha mãe triste, cansada e, obviamente, transando pouco, perguntei se não gostaria de ganhar um brinquedinho vibrante de presente", conta. "Ela não me deixou nem terminar a frase: que absurdo, nunca vou usar uma coisa dessas. Como se eu tivesse lhe oferecido um fuzil AK-47”. Com sua filha de 9 anos, Giovana se prepara para fazer tudo diferente: “Estou pronta para falar sem meias-palavras. Vulvas não são pombinhas, pênis não são varinhas mágicas. Não poder nomear nossos órgãos também é um tipo de castração. Precisamos ser donas do nosso corpo e também das palavras que se referem a ele".
Foi exatamente o que fez a trancista Taila Tauami Andrade, que tem 35 anos e é mãe de uma adolescente de 16. Ver tantas jovens mal informadas e carregando o fardo machista de uma sociedade em que o prazer da mulher é irrelevante fez com que ela se mobilizasse para que as conversas começassem cedo dentro de casa. “Nunca fui instruída na minha adolescência e fui mãe muito jovem”, conta. “Além de falar sobre sexo e suas complexidades, converso com minha filha sobre o prazer, o quanto ela tem que aprender a conhecer o próprio corpo para ter autonomia e expressar o que dá dar prazer ou não. Acredito que é minha responsabilidade que minha filha tenha uma vida sexual saudável e cheia de real prazer”.
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Carla Miucci, mãe de um casal, adotou a mesma postura com os filhos e decidiu que falaria abertamente com ambos sobre relacionamento, sexo e prazer. “Na minha criação, não me lembro de ter tido uma única conversa com minha mãe sobre prazer sexual. Se falava de futuro, de escolha de carreira, menos de prazer", diz. "No máximo ouvia sobre a necessidade do uso de preservativo para as garotas se protegeram de uma gravidez indesejada caso cometessem o desatino de dormirem com seus namorados antes do casamento”.
Com a filha de 16 anos, Sofia, Carla fez tudo ao contrário. “Falar de prazer com ela é, acima de tudo, encorajá-la ao autoconhecimento de seu corpo e das partes que lhe proporcionam contentamento, incentivá-la a conhecer suas próprias limitações e sensações, fazendo-a perceber que colocar na outra pessoa toda a responsabilidade pelo nosso prazer é, no mínimo, frustrante", explica. "O autoconhecimento nos proporciona conhecer as vias de acesso ao nosso prazer, e é só nossa escolha as pessoas com as quais queremos dividir esses caminhos”.
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Mas nem toda mulher consegue reverter a própria história ao educar a filha. A pedagoga Vilma Silva, de 44 anos, também foi mãe nova. Ela tinha 18 anos quando nasceu a Lanna, a primeira de três filhos. E, apesar dos poucos anos de diferença entre as duas, elas não construíram uma relação aberta e confortável para falar sobre prazeres femininos.
“Falamos muito sobre gravidez precoce, cuidados com o corpo, o papel da mulher, mas quase nada ou nada sobre prazer. Quando puxo esse fio do novelo de memórias encontro a ponta lá no reflexo da relação que tenho com a minha mãe”, conta. “Quando engravidei na adolescência, a sensação era de ter traído a confiança da minha mãe. Uma visão destorcida sobre sexo e prazer atrelada a questões religiosas de punição e castigo. Essas marcas interferiram na qualidade da relação que tenho com minha filha quando o assunto é prazer feminino, pois meu olhar estava em orientar, preservar, poupar, planejar, evitar”.
Para Vilma, a pergunta começou a ecoar quando o filho Daniel, 22 anos, iniciou a vida sexual e desconstruiu os silêncios dentro de casa. “Ele trouxe dúvidas, aflições, emoções e muitas questões minhas surgiram a partir daí. Por que ele se sentiu confortável para trazer tais perguntas? Como ele vive a liberdade de poder sentir e falar sobre seu corpo? Por que ainda reproduzimos padrões de silenciamento de corpos femininos de geração em geração? Me sinto no processo para que essa mudança aconteça no meu corpo, no corpo da minha filha e todas as mulheres que virão. Podemos ser amor, alegria, transgressão, cuidado, acolhida, liberdade, prazer, prazer, prazer”, diz.
A gerente-executiva Manuela Lopes, 52 anos, é mãe de três e achou que tinha escrito uma história completamente diferente da que viveu dentro de casa. Mas só se deu conta de que nunca tinha conversado sobre prazer feminino com as filhas, de 21 e 26 anos, quando foi questionada para esta matéria. “Fui pra praia com a Carol e perguntei se já tinha falado sobre prazer com ela. Para minha surpresa, a resposta foi ‘não’. Não? Como assim? Lógico que eu já falei, sou uma pessoa tão aberta”, ri.
Carolina, sua filha de 26 anos, conta que a mãe parece ter se esquecido desse “detalhe” na conversa. “Ela me falou de todos os métodos contraceptivos, me levou ao ginecologista aos 13 anos, me alertou sobre tudo que poderia acontecer, mas nunca, nunca, falou sobre prazer feminino”, conta. Como em muitas famílias, o foco da conversa era o sexo e suas mazelas. “Eu falava: não engravide, pelo amor de Deus, isso pode destruir sua vida. E cuidado com doenças. Ou seja, nota zero pra minha atuação neste quesito com minhas filhas. Espero me preparar melhor para lidar com o Francisco, que está com 12”, conta a mãe.
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As filhas de Manuela, assim como outras meninas jovens, conversam entre as amigas sobre prazer, ao contrário dela. “Não é um assunto que eu falo com naturalidade nem entre minhas amigas", conta Manuela. "E nunca, nunca foi natural com minha mãe. Quando eu tinha 18 anos, já morava sozinha e minha mãe falou 'acho que está na hora de você ir ao ginecologista’, eu já tinha ido. Ela teve vários problemas no ovário e lembro que fui eu que expliquei a ela como funcionava todo o aparelho reprodutor. Fui eu que levei minha avó ao ginecologista pela primeira vez, aos 90 anos. Ela ficou traumatizada com a consulta”.
A conversa nem sempre deixa de acontecer por falta de vontade. Às vezes, é difícil para as mães saberem como abordar o assunto com uma adolescente. É o caso de Luciana Lopes Gonçalves, que tem uma ótima relação com sua filha, mas ainda não conseguiu ter essa conversa. “Somos unidas e a porta sempre esteve aberta também para sanar as dúvidas da menina crescida. Não tenho dificuldade em tratar da questão do prazer feminino, mas, com a chegada da adolescência e o afastamento necessário para a individuação, notei que ela me traz menos questionamentos”, conta.
“Acho importante respeitar a porta fechada dela, tão típica dessa fase. O que faço hoje em dia é aproveitar cada papo para dar um pitaco, partilhar um ponto de vista, falar sobre o respeito pelo nosso corpo, a importância do autocuidado e o comprometimento com nosso bem-estar. Cuido para não constranger, repelir. Essa idade é um querer ser grande a todo custo, mas carrega ainda um estar menina, por isso vou entrando no assunto conforme ela abre a porta. Acho isso ótimo para a nossa relação”.
Giovana, Taila, Carla, Vilma, Manuela e Luciana representam alguns dos números da pesquisa da Tpm. Mas elas também são mulheres que, para além das estatísticas, querem participar das mudanças e revoluções que desejamos para nós e para as próximas gerações. E assim, pouco a pouco, quebrar esse padrão que herdamos de outros tempos. Num mundo em que não cabe mais o machismo, não pode faltar prazer.