O código e o sono

por Mara Gabrilli
Tpm #111

Meu sonho é ser garçonete na Austrália e esquecer as preocupações a cada fim de expediente

Ultimamente tenho tido um sintoma estranho nos momentos em que estou para adormecer. Começo a falar coisas esquisitas, fora da realidade (ou não), misturando sonho e vigília numa frase só. Outro dia, contei empolgada para a Gil, minha assistente, que eu havia almoçado com Jesus. Ela insistiu em se aprofundar para saber quem era esse, e ainda respondi que era o Nosso Senhor.

Outra coisa ligada ao meu sono são as votações polêmicas. Elas tiram o meu sono. Isso aconteceu agora com a votação do novo Código Florestal. Ter conhecimento profundo daquilo que votaremos é uma das grandes responsabilidades do nosso trabalho como parlamentar. Como deputada federal, carrego a importância de representar uma nação. Por isso, procuro me informar substancialmente dos projetos que serão votados.

O primeiro Código foi constituído na época de Getúlio Vargas, em 1934. Depois, tivemos uma modificação em 1965. As principais devastações aconteceram durante a vigência desse Código. Há muito tempo que o Código Florestal vem sendo construído com o objetivo de adequá-lo à realidade brasileira, já que o tempo pode deixar uma legislação obsoleta. Sem hipocrisia, temos que admitir que havia necessidade de um novo Código.

Sobre macacos e cangurus

Quando comecei a me aprofundar mais, tive uma péssima impressão, que foi piorando conforme lia as notícias nos jornais. Foi aí que parei de dormir. Para dar mais ansiedade, toda informação extra que me chegava parecia tendenciosa. Como tomar uma decisão dessas pelo Brasil, num Código que tem o tamanho de um dicionário e que não é um assunto que a maioria domine? 
Na primeira etapa de votação me posicionei contra, até porque me sentia sem muita ferramenta para avaliar. Quero qualidade de vida, rios de águas limpas, biodiversidade, ar puro, macaco-prego, mico-leão-dourado, arara-azul, mas será que o bicho-homem está sendo respeitado? Não dá pra fazer uma política do bem prejudicando minorias. E olhe que meu trabalho é focado em minorias, com as pessoas sendo respeitadas. 

Aprendendo mais sobre o projeto, não vi nenhum estímulo ao desmatamento ou anistia a grandes crimes ambientais, mas uma tentativa de correção das situações de grande injustiça social e desrespeito às famílias causados pela legislação vigente.  

Diante de tudo isso, procurei uma consultoria ambiental que me ensinou sobre o controle efetivo das Áreas de Preservação Permanente (APP). O novo texto não protege ninguém que tenha feito desmatamento ilegal em topos de morros, beiras de rios e encostas. Os produtores que já utilizaram esse espaço para plantação ou criação de gado terão que comprovar que não danificaram o solo e serão obrigados a reflorestar. A anistia se dará somente em relação ao valor da multa imposta, isso não vai isentar ninguém de pagar a maior dívida, pois todos serão obrigados a recompor o meio ambiente. Achei que o Brasil estava protegido e tudo isso me devolveria o sono. Votei a favor e continuei sem dormir por causa daqueles que, como eu no começo, acharam que o Código era prejudicial.  

Antes de quebrar o meu pescoço, aos 26 anos, me contentava com cinco horas de sono, mesmo que fosse todo dia. Depois do acidente, passei a precisar de sete horas. Quando virei deputada, o tempo pra dormir diminuiu e a minha necessidade aumentou em mais duas horas. Por isso digo que o meu sonho de futuro é ser garçonete em Sydney, na Austrália. Clima bom, cangurus, primeiro mundo e, na hora que o restaurante fecha, as preocupações ficam lá dentro e eu posso ir para casa dormir. 

Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br

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