Não basta ser gênio

por Maria Ribeiro
Tpm #141

Meu amigo Wagner é um ator completo porque é um homem inteiro

Meu amigo Wagner é um ator completo porque é um homem inteiro, feminino e masculino, doce e agressivo, pacato e transgressor

Cena 1. Em um antigo convento no Rio de Janeiro, ladeada por duas outras atrizes, aguardo o parceiro das cenas que farei a seguir. Estamos em agosto de 2006 e faço parte de uma seleção para o elenco do filme Tropa de elite, de José Padilha. Odeio testes, mas quero muito fazer esse filme.

Vou ao banheiro, passo um corretivo nas olheiras, dou uns pulos pra acordar o corpo e tento controlar a ansiedade. Quero muito o papel, mas não pude ensaiar, pois não havia texto. Iremos improvisar, trabalhar no risco. Será que tomo um Frontal?

Tentamos, minhas colegas e eu, manter a cordialidade e afastar o clima, inevitável, de disputa. Falamos sobre filhos, previsão do tempo e depilação definitiva, mas na verdade ninguém está realmente se ouvindo. Estamos todas eletrizadas pela presença da Fátima Toledo, preparadora de elenco famosa por desconstruir os atores com quem trabalha. Será que tomo um Red Bull?

Uma moto estaciona no portão. Olhamos as três pela janela. Lá vem ele. Meu coração dispara. Acho que o delas também. Quero muito fazer esse filme. Wagner Moura chega cumprimentando todo mundo e é extremamente simpático. E eu que achava que ele era metido. E mais baixo.

Começamos o teste. Fátima nos manda dançar, e depois sugere situações que envolvam um casal que acaba de ter filho. Sinto um frio na barriga porque pressinto estar diante de um projeto especial. Isso sem falar na oportunidade de contracenar com um ator generoso e disponível, o que ficou evidente em 10 minutos de diálogos.

O resto quase todo mundo sabe. Fizemos o filme juntos e eu saí dos dois longas completamente convencida de que o Capitão Nascimento só foi o maior personagem do paradoxo brasileiro da cordialidade e da violência porque foi feito pelo Wagner. Meu amigo é um ator completo porque é um homem inteiro, feminino e masculino, doce e agressivo, pacato e transgressor.

Cena 2. Estamos em Berlim, mostrando o filme em um dos festivais mais importantes do mundo. Com a boca rachada pelo frio implacável, participo das inúmeras entrevistas com jornalistas do mundo todo. Quando eu achava que não dava pra melhorar, descubro que Wagner fala. E fala bem. E fala bem em inglês. E sabe tudo de Oriente Médio, segurança pública e cinema iraniano. Como ele e o diretor monopolizam as atenções, eu fico torcendo para o meu cabelo estar sensacional, porque esse era o único departamento em que eu não seria vencida.

Com o tempo, fomos acumulando outras cenas. Houve uma em que ele não estava lá, mas foi quando o conheci mais de perto. Em uma premiação qualquer, por não poder comparecer, Wagner mandou seu pai, José Moura. Seu José leu uma carta em nome do filho, e lembro que o conteúdo era bem político, mas só o que vi foi um homem orgulhoso de sua cria. Um homem que veio do Norte e que viveu a tempo de assistir a seu filho ser coberto de glórias no país todo. Glórias que valem ainda mais porque Wagner não acredita muito nelas.

Mas eu acredito. Acredito porque esse baiano de Rodelas, além das virtudes notórias, é casado com uma das mulheres mais incríveis que já conheci. Sandra é linda e inteligente, muito mais do que Wagner, e ainda lhe deu três meninos lindos, pra quem nosso muso fez casa na árvore e o escambau.

Como dizia Mozart, não basta ser gênio, é preciso um grande amor. Nada importaria, nem seria possível, sem a família. Wagner é mais esperto que Nascimento, e descobriu isso a tempo. E descobriu tão descoberto que deu a seu caçula o mesmo nome simples e complexo de seu pai.

Saravá!

Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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