Muito além do jardim

por Maria Ribeiro
Tpm #103

A casa em que passei minha adolescência foi vendida - e eu queria filmar tudo o que vivi ali

 

Morei na casa em que nasci até os 14 anos de idade, quando minha mãe casou de novo e quis recomeçar em outro endereço. Apesar da falta de ar que me acometeu nos primeiros meses, a mudança doeu pouco. A casa recém-comprada era mais bacana que a antiga, e eu, de certa forma, também me sentia impelida a ser outra.

Pintei as paredes de verde, pedi uma cama de casal e ganhei um cachorro chamado Lao Tse. Com a vida toda pela frente, joguei âncora numa rua sem saída de Botafogo, embaixo do Cristo Redentor. Ali, fui feliz e triste, descobri Rilke e Bob Marley, comecei a fazer teatro, vi o Brasil ser campeão em 94.

Só fui arrumar as malas aos 23, quando me casei. Mas deixei alguns vestígios. Um ou outro vinil, as pastas da faculdade, um resto da infância. Mais do que a família, eu não queria que a casa, objeto físico, esquecesse de mim.

Pois bem. Meu primeiro casamento acabou e empacotar livros deixou de ser novidade. Já me mudei cinco vezes. Tive um filho. Depois outro. Perdi meus avós. Meus sobrinhos nasceram. Meus irmãos casaram-se. Mas a casa de Botafogo continuava lá. Até ontem.

- Vendemos a casa! - assim, falando rápido para não parecer uma notícia triste, minha mãe me acordou hoje de manhã - Não é ótimo? - ela continuou.

Meu padrasto estava sentido. Jean Pierre é um francês de 82 anos que mora no Brasil há 30 e se encanta com nosso verde como se tivesse chegado ontem. Nunca se acostumou. E me chamava pra ver os sabiás que mergulhavam a barriga na piscina, cena linda, mas que devo ter visto uma centena de vezes.

Mas a casa ficou grande. A casa ficou cara. E é preciso humildade para encarar as mudanças. Devo confessar, inclusive, que vejo certa beleza na necessidade de rever orçamentos. Viver com mais austeridade pode ser uma arte.

A vida como ela é

Quero, entretanto, avisar os novos donos que, embora a casa seja exuberante, isso é o que menos importa na residência da rua Viúva Lacerda. E que, na certidão de compra e venda, algumas regras serão incluídas. É preciso que haja crianças correndo, pois nesse gramado meu filho jogou bola com a camisa do Fluminense. Tragam bichos, pois uma gata persa e dois cães muito queridos estão enterrados nesse chão. É obrigatório comemorar aniversários e fazer festas, do contrário Deus castiga. A piscina é para ser usada, e é permitido entrar molhado dentro de casa mesmo que estrague o sinteco. Os outros itens enumeraremos em janeiro, quando enfim entregaremos as chaves.

Até lá quero filmar minha mãe tocando piano. Quero cair na piscina com todas as crianças da família ao mesmo tempo: Ana, David, Antônio, Guilherme, João e Bento. Quero dizer aos meus pais que envelheçam sem medo, que estamos aqui. Quero tirar foto dos macacos e, quem sabe, amar mais meus irmãos nos almoços de domingo. Quero ter coragem de deixar pra trás a juventude, e abrir de vez caminho para a maturidade, embora saiba que enquanto meus pais forem vivos continuarei um pouco criança. Quero filmar minha família discutindo, e o caseiro que faz faxina ouvindo funk. Quero filmar todos os dias que vivi e que não voltam mais. Quero filmar tudo.

Ou então não filmar nada, e desejar tudo de bom aos novos proprietários.

 

Maria Ribeiro, 34, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de Elite, em 2007, e estreia Tropa de Elite 2 em 8 de outubro. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

 

fechar