As coisas que nos definem

por Milly Lacombe
Tpm #169

O passaporte azul me define? Minha sexualidade me define? Quem sou eu, afinal?

Em pé na colossal fila formada para cruzar a imigração americana olhei para os lados e, sem muito o que fazer, comecei a reparar na multidão. Eu estava passando pelo aeroporto de Chicago, em viagem de volta para São Paulo saindo de uma semana de férias em Roma (ir de Roma a São Paulo via Chicago é uma outra história, uma que tem a ver com trajetos bizarros que cabem no bolso de jornalistas) e intuí que aquele povo na fila e eu passaríamos boa parte da tarde juntos, então comecei a observar. Quis a sorte que meu voo chegasse ao mesmo tempo de um da Air China e outro da Air India, e eu nem sei se a companhia indiana se chama Air India, ainda que me pareça um nome adequado, então a fila era gigantesca e pitoresca. Havia alguns ingleses também, o que me levou a achar que um voo da British Airways tinha chegado na mesma imprópria hora que o meu. Gosto de olhar os passaportes nas mãos dos viajantes, tentar adivinhar de onde são, de onde vêm, para onde vão. Enquanto aguardava minha vez de ser maltratada por um agente da imigração americana, sempre muito autoritário e pouco humanitário, tentei pensar nas coisas que me definiam como ser humano. No meio daquele bando de gente tão heterogênea, com uma senhora chinesa espirrando sem cerimônia sobre mim, fiquei divagando sobre o que, afinal, me unia a todos eles a despeito das roupas e dos passaportes diferentes.

Como a fila não andava, havia tempo para devaneios. Entregue a eles, tentando desviar dos escandalosos espirros em sequência da senhora chinesa, pensei que meu passaporte azul não me definia. Ser brasileira da primeira geração de italianos nascidos no Brasil não era o que me caracterizava. Imaginei, então, que minha sexualidade talvez me servisse, mas não encontrei nenhuma definição no fato de ser lésbica. E então, uns 20 minutos antes de chegar ao guichê para ser interrogada por um agente carrancudo, finalmente entendi. O que me define é meu gênero; ser mulher é o que me distingue, a bandeira que me interessa carregar, exibir e fincar. Pensei em Virginia Woolf, que escreveu: “Como mulher eu não possuo um país, como mulher o meu país é o mundo todo”.

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Olhei novamente em volta e agora pude me identificar com todas as chinesas, inglesas e indianas que estavam naquela fila em zigue-zague. Nem a raiva que eu estava sentindo da senhora chinesa que, sem nenhuma delicadeza, teimava em espirrar sobre mim foi capaz de me separar dela porque aquela senhora baixinha e atarracada que eu não conhecia continha nela todos os meus sofrimentos e rejeições e discriminações e falsas limitações.

Assim como eu, ela cresceu num mundo patriarcal que nos avisa desde cedo a respeito de impossibilidades femininas, um mundo feito e regido por homens, um mundo que não nos faz justiça e criado para parecermos pessoas menos importantes.

No avião que me levou de Roma a Chicago assisti a três filmes: três comédias românticas feitas nos últimos quatro anos. Em todos eles a personagem feminina, por mais moderna e profissionalmente ativa que fosse, era objetificada. A objetificação se dá sempre através de pequenos diálogos, interações simples e discretas, porque a fundamental doutrinação precisa ser injetada em doses pequenas e constantes.

Ainda sobre a indústria cinematográfica, pesquisas dizem que, quando em cena, 31,6% das mulheres estão usando algum tipo de roupa sensual, mas esse percentual aumenta para quase 60% quando a personagem é uma adolescente. Em Hollywood menos de 30% dos diálogos estão na voz de mulheres e menos de 15% dos filmes mais caros feitos pela indústria americana de cinema têm a mulher e sua experiência como tema central. E para quem acha que o feminismo não se faz mais necessário é sempre bom lembrar que 80% de todos os refugiados do mundo são mulheres e meninas.

Planta ou joia?

Recentemente, numa viagem de trabalho para o Trip Transformadores, conheci na Paraíba algumas mães de crianças com microcefalia. Todas extremamente pobres e desempregadas porque não há como trabalhar 8 horas por dia e cuidar de um bebê com má-formação cerebral – e não há quem queira empregá-las por uma carga horária menor. Entre as cerca de 20 mulheres, vi apenas dois homens: a maioria dos pais de uma criança com microcefalia desiste do casamento. Entre aquelas mulheres não havia um pequeno sinal de fraqueza, embora houvesse muitos sinais de vulnerabilidade. São seres humanos que intuem perfeitamente o que disse o escritor Alan Cohen: “A dor é uma pedra no caminho, não um lugar para acampar”. Vendo elas contarem suas histórias e se deixarem emocionar umas com as outras entendi como eram imperialmente fortes e como a vulnerabilidade não tem nada a ver com força de caráter. Pensei na filósofa Martha Nussbaum, que sugeriu que a verdadeira moral está em ser mais como uma planta do que como uma joia, uma coisa frágil e cuja beleza é inseparável de sua própria fragilidade.

Embora mulheres sejam 2/3 da força de trabalho do mundo todo, possuímos menos de 1% da riqueza deste mesmo mundo. Basta uma rápida olhada em qualquer mapa-múndi para entender que, quanto mais uma sociedade maltrata e limita a mulher, menos desenvolvida ela é. Nas palavras de Isabel Allende: “Na nossa espécie o macho alfa define a realidade e força o resto a aceitar essa realidade e seguir as regras”. Para a autora chilena, o mundo carece desesperadamente de mais energia feminina porque só assim viveremos em uma sociedade pacífica e socialmente justa, que não terá vergonha de celebrar uma das mais belas características da condição humana: a vulnerabilidade.

Mas antes de qualquer coisa precisamos entender que o patriarcado é uma violência extrema praticada contra toda a raça humana e que nada menos do que uma revolução pode nos livrar dele. Só que, como sugeriu a anarquista Emma Goldman, se não podemos dançar então essa não é a nossa revolução. A hora, portanto, é a de compor a música da nossa revolução; e tirar a senhora chinesa que só faz espirrar para bailar.

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Créditos

Imagem principal: Rimon Guimarães

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