Se é pra pisar em ovos, que seja sentindo o perfurar das cascas em nossas solas, amém
Ah, arte de pisar em ovos. Você toma todo cuidado do mundo, mede as palavras, engole o choro, reescreve a mensagem duzentas vezes – todo cuidado é pouco. Rói as unhas, come a bochecha, mas não diz o que gostaria. Dorme mal, acorda mal, dirige mal, mas não manda aquele e-mail entalado na garganta. Você sorri e aceita, quando queria mesmo é negar e berrar umas verdades. Entra no carro e chora, sai do trabalho e chora, dá uma garfada e chora lágrimas com conteúdo pulsante e nunca dito. São ovos inteiros nos quais pisamos com muita parcimônia. Ovos intactos sem nem uma fissura se quer, todos encalacrados no peito ou em algum lugar entre o esôfago e o palato. Pra quê? Pra não ferir ninguém? Para não fazer feio ou não ficar mal visto?
Pisar em ovos é pisar em si mesmo. Se há cascas em baixo de nossos pés, pisemos firme, certeiro, sentindo o estilhaçar que nos livra de uma úlcera póstuma. Se é pra pisar em ovos, que seja sentindo o perfurar das cascas em nossas solas e a explosão que meleca e liberta.
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