por Ariane Abdallah
Tpm #109

A atriz fala, sem falsos moralismos, sobre sexo, drogas, casamento e depressão pós-parto

Em 38 anos, a atriz Mariana Lima foi do submundo ao mundo. Fazendo teatro, conheceu prostíbulos, presídios, drogas. Agora, vencedora do prêmio Shell de melhor atriz pela peça Pterodátilos, está nos cinemas com o filme Amor?, de João Jardim, e na TV em Cordel Encantado, da Globo. Mas é no papel de mãe de família que ela extravasa (quase) toda sua intensidade

Se fosse para definir a atriz Mariana Lima em uma palavra, seria intensidade. "Tive que me conter para caber na sociedade, porque tenho essa coisa selvagem", explica. Ela se refere à maneira como mergulha fundo seja qual for o trabalho: já foi a única mulher a dar aulas de interpretação para detentos no extinto Carandiru, virou noites em prostíbulos para viver uma personagem quando fazia parte do Teatro de Vertigem, passou quatro anos entre porres e drogas e morou numa comunidade no México, plantando o que comia.

Sobre o palco, essa força rendeu à Mariana o prêmio Shell 2011 de melhor atriz, pela peça Pterodátilos, dirigida por Felipe Hirsh, ao lado do também premiado Marco Nanini. Na "comédia negra absurda", a atriz de 38 anos "está muito bem como a mãe bêbada e egoísta", define Bárbara Heliodora, respeitada crítica de O Globo. Além disso, após quatro anos longe da TV, Mariana volta no folhetim das seis, da Globo, Cordel Encantado. Está também em cartaz no filme Amor?, de João Jardim, e ensaia A Cadeira do Pai, de Luciano Moura.

Pouca pele pra muita alma

A atriz paulistana conta tudo isso em um café em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. E, com a mesma naturalidade com que pede uma água ou acende um cigarro, fala sobre o fato de ter usado "todas as drogas imagináveis" e que pretende conversar naturalmente com as filhas caso resolvam experimentar drogas no futuro. Mariana acredita que toda mãe tem depressão pós-parto em algum nível e que no casamento "dizer que não existe paixão por outras pessoas é a maior mentira que um ser humano pode dizer".

Enquanto isso, na mesa ao lado, suas filhas, Elena, 6 anos, e Antonia, 3, desenham. De repente, a caçula começa a gritar. Elena muda de mesa, alegando não aguentar os gritos. Mariana interrompe a entrevista e pede para as meninas pararem com o tumulto. Nada feito. A atriz aceita a derrota e começa a contar da época em que ficou cheia de feridas pelo corpo. Nesse momento, Elena, duas mesas para lá, escuta a palavra "xixi" e grita:

– O que você disse, mãe?

– Nada, filha. Depois te conto.

Mariana muda de assunto. Elena a encara fixamente.

– Conta agora, mãe?

– Depois te conto – insiste a atriz.

E repete a frase outra vez antes de ceder.

– OK. O Serginho [o ator Sergio Siviero] fazia xixi na mamãe na peça Apocalipse 1,11 e as feridas pioravam com isso. Pronto, satisfeita?

E retoma o papo com a reportagem da Tpm como se nada tivesse acontecido.

Depois dessa cena, fica fácil entender o que ela quer dizer com "tive que me conter para caber na sociedade". Mariana fala de qualquer tema sem se importar que há pessoas nas mesas próximas. Não parece preocupada em elaborar frases politicamente corretas nem desvia de pergunta alguma.

Casada há mais de uma década com o ator e diretor Enrique Díaz, o Kike, Mariana teve que se adequar à sociedade também dentro de casa. Acostumou-se com a presença constante de uma babá e com outros assuntos "do mundo adulto" e não tem tido tempo para tomar porres, se depilar ou mesmo pegar um cineminha. Em compensação, garante: "Hoje transito por vários mundos. As coisas melhoram com a idade". Na entrevista a seguir, Mariana conta como vive, no papel de mãe de família, toda a loucura que é sua. Sem perder a lucidez.

Tpm. Você é conhecida por ser intensa e mergulhar nas pesquisas para seus trabalhos, como no submundo da prostituição, da loucura, das doenças. Como lida com essa intensidade na vida cotidiana?
Mariana Lima. Tive que me conter para caber na sociedade, porque tenho essa coisa selvagem... sei lá o que é isso. Faço análise há 16 anos. Mas sou uma louca do bem. Sempre fui doce, não sou agressiva. Quando bebo, fico só alegre. Sou manteiga derretida. E também sou calma. Acho que consegui organizar essa energia para os momentos em que preciso dela, como quando estou em cena. Mas, se eu tivesse que, por exemplo, salvar um ônibus em chamas, seria aquela pessoa que fala: "Gente, não esmoreçam!"[risos].

Há quatro anos você pratica corrida. Isso ajuda?
Muito. Meu corpo precisa de ação. Outra coisa que sempre me ajudou foi a dança [fez balé por dez anos]. Já fiz kung fu, aikido, ioga. Agora corro. Gosto muito de ler, mas, se ficar em casa só lendo, em uma semana estou doente mental. A intensidade é salva pela exaustão.

E como concilia o ritmo de trabalho com as filhas?
Cara, estou superdescolada para lidar com isso. A gente viaja muito, não tem rotina. Agora estou em São Paulo, e meu marido está em Estrasburgo [na França] fazendo uma peça. Faz três semanas que não tenho um dia de folga. Faço depilação assim: "Vai, vai, vai". Não dá tempo pra conversinha. Já sofri [com a dupla jornada], mas descobri que toda essa atividade me deixa atenta, disposta. Nas duas semanas que passei em São Paulo não trouxe minhas filhas. Estava tristinha, acabava o ensaio [do filme A Cadeira do Pai] e ficava: "Pô, por que estou assim?". E, esta semana, trouxe elas. Ontem voltei do ensaio, brinquei com as meninas, botei pra dormir, saí pra beber um vinho. Hoje acordei e não estou sentindo nenhuma tristezinha. Não dá tempo de ficar sofrendo.

Suas filhas foram planejadas?
Superplanejadas. Desde os 24 anos, tinha uma vontade louca de ser mãe. Aí conheci o Kike, a gente começou a namorar, casamos e a chegada delas era inevitável. Se eu não fosse atriz e morasse numa fazenda, teria 12 filhos. Gosto de engravidar, de amamentar, gosto de bebê, de criança. Mas é um conflito com a vida que levo. Aos 4 meses, a Elena, a mais velha, estava no set, no colo de uma assistente de direção, enquanto eu gravava Filhos do Carnaval, [série] da HBO. Sem contar a depressão pós-parto.

Você teve depressão pós-parto?
Acho que toda mulher tem em algum nível. Porque você perde uma quantidade de enzimas e hormônios que estavam te deixando num estado de absoluta transcendência. Aí você fica triste e deprimida. E, ao mesmo tempo, é um luto. Porque você deixa de ser a pessoa que era até ali e pra sempre agora vai ser uma mãe. É um excesso de responsabilidade. Mas o médico falava: "Se você ficar triste é normal. Se ficar muito triste, também é normal. Se ficar triste a ponto de não querer ver seu bebê, aí me liga". Mas não tive rejeição. Amava profundamente aquele bebê, só que eu chorava sem parar nos três primeiros meses: "Será que algum dia vou sair dessa bolha?". Era essa a sensação. Fiquei quatro meses sem dormir, virei uma olheira. Tudo isso somado a vontade de voltar à vida profissional.

Como foram seus partos?
Os dois foram normais, incríveis. No primeiro, achei que estava anestesiada demais. No segundo, queria tão pouca anestesia que na hora estava sem nenhuma. E é uma dor alucinante. Uma coisa que não dá pra descrever. [Pausa] Mas é maravilhosa, porque ela acaba de vez e sai uma criança de dentro de você. O grande orgasmo da mulher é o parto normal. Da última vez que pari, chorei muito porque pensei: "É a última vez que estou fazendo isso".

Por quê?
Porque só com muito dinheiro você consegue ter filhos. Então, só se eu ficar muito rica...

O que mudou da primeira para a segunda filha?
No primeiro filho é assim: o bebê dorme quatro horas, mas no dia que ele dorme oito você acha que morreu. Aí acorda e vai ver se ele está respirando [risos]. Na primeira febre, você liga para a médica: "Está com 38 graus, chorando muito!". No segundo filho: "Trinta e oito? Ah, tá bom, dá um Tylenol".

O que os filhos mudam na relação do casal?
Um casamento com filho passa por um gráfico de paixão, brigas, desespero bem mais intenso e ainda tem a casa para administrar. A geladeira tem que estar cheia, tem que ter uma empregada, uma babá, tem que fazer compras, ter plano de saúde, essas coisas do mundo adulto. Demorei meses para aceitar uma babá na minha vida. Não tinha cabimento uma pessoa morando na minha casa. Pra mim, foi mais difícil ter babá do que filha. Porque perdi minha privacidade. Mas, se não tem babá, você não trabalha, não vai ao cinema, ao teatro.

Você já disse, em algumas entrevistas, que nunca pensou que fosse casar. O que a fez mudar de ideia? Nunca tive personalidade de quem casa, até conhecer o Kike. Tive vários namorados antes. Mas com ele fui me juntando até o ponto em que falei: "Então tá, vamos morar juntos".

O que é o casamento para você?

Um milagre. Ele dura enquanto você está disposto a ser flexível e tem uma paixão, enquanto está sexualmente e amorosamente envolvido com aquela pessoa.

"Enquanto a gente estiver vivo e sexualmente ativo, vai se interessar por outras pessoas. Dizer que isso não acontece é a maior mentira que uma pessoa pode dizer"


Você continua apaixonada depois de 12 anos de casamento?
Não. Mas tenho surtos de paixão. Tem uma hora que fica só "amorzinho", papaizinho, mamãezinha. Depois fica ruim, e cada um fica num canto. Aí fica bom de novo. Loucamente bom, sexualmente bom. E começa tudo de novo... Até que você vê que existe uma regularidade nesse ciclo. Não é sempre bom nem sempre ruim. Você não está sempre trepando. E se puder ter isso com uma mesma pessoa é incrível. Porque, senão, você vai ficar um período sozinha, deprimida, aí encontra alguém, fica apaixonada, depois separa dessa pessoa, fica um tempo sozinha... Ter essa dinâmica dentro do casamento é muito legal. Na hora que não tiver mais isso, que o ciclo deixar de ser regular para ficar só ruim, só sem sexo, só com briga, aí acabou.

E, paixão por outras pessoas, acontece?
Dizer que não existe paixão por outras pessoas é a maior mentira que um ser humano pode dizer a si mesmo. Enquanto a gente estiver vivo e sexualmente ativo, vai se interessar por outras pessoas. Eu não posso ser casada com alguém que não entenda a vida dessa maneira. Isso não quer dizer que a gente tenha um casamento aberto, que chegamos em casa e ele me fala: "Trepei com essa pessoa". Não. Mas existe um acordo de que, se isso acontecer, resolva o seu problema, não traga para casa. Agora, que meu amor, que minha paixão, que meu tesão pelo Kike é maior do que as outras coisas que podem acontecer, há 12 anos, é. Porque tenho escolhido ficar com ele, e ele tem escolhido ficar comigo. A gente herdou o modelo de casamento dos nossos avós e dos nossos pais, mas nossa geração não aguentaria viver comalguém por conveniência ou só porque aquela pessoa te dá estabilidade emocional.

 


Você mudou de São Paulo para o Rio para viver com ele?
Sim. E isso era impensável porque tenho alma paulistana, jeito paulistano, cultura paulistana. Cheguei no Rio e era uma estranha no ninho. Andava do Posto 8 ao Posto 9 e falava: "Kike, vamos embora? Não consigo ficar nessa praia". Outra coisa é que estava sempre com a roupa errada. As pessoas no Rio têm o hábito, que hoje compartilho, de se reunir nas piscinas das casas, então você fica lá bebendo, as crianças brincando. Pensava: "Vou ficar o dia inteiro de biquíni na piscina das pessoas?" [risos]. Mas foi ficando interessante, porque São Paulo tem um lado estafante, cansativo, workaholic, de que já estava cansada.

Esse cansaço tinha a ver com a fase em que fez parte do Teatro da Vertigem, pouco antes de conhecer o Kike?
Sim, foram uns quatro anos bem intensos, de não ter divisão entre ensaio, espetáculo, noite. A gente estava fazendo a peça O Livro de Jó e andávamos eu, o Matheus [Nachtergaele] e as outras pessoas da equipe. Eu tinha 24 anos, e a gente estava com fogo total, éramos animadíssimos, naquela fase de noite, bebida, loucura, drogas. E a peça começou a fazer muito sucesso, mas no underground. Não tenho um pingo de arrependimento dessa grande noitada que foi O Livro de Jó.

 

Drogas?
Todas possíveis e imagináveis, menos heroína, crack, MDMA [substância presente no ecstasy]. Também não era que toda semana a gente tomava um ácido ou cheirava cocaína. Mas era um momento de experimentar várias coisas. Viagens para fazenda e chás de cogumelo. Teve outra fase em que tomava Daime com um grupo de teatro. Pobre da minha mãe, dei muito trabalho dos 16 aos 26 anos.

Maconha você continua fumando?

Hoje em dia diminuí radicalmente tudo, até bebida. Depois que minhas filhas nasceram, fui ficando mais careta. Acaba não tendo muito espaço para porres, maconha, coisas assim.

Fica angustiada em pensar que suas filhas podem usar drogas no futuro?
Isso faz parte, cara. Seria uma angústia perdida. Na hora que acontecer, tem que aprender a lidar. Minha mãe teve que saber lidar comigo. Ela logo sacou e daí, claro, foi um drama, mas ela foi administrando. Pedia para que, se eu fosse fazer qualquer coisa, que fizesse em casa. Foi me orientando. Acho que vou acabar fazendo a mesma coisa.

Nessa época, você chegou a namorar o Matheus Nachtergaele. Como foi?
A gente teve uma paixão muito grande, namorou, mas não era um casal possível... Ficamos um ano entre idas e vindas. Era um namoro que surgia das noitadas. Não tinha isso de ligar e falar: "Oi, amorzinho, vamos ao cinema?" [risos]. Fomos para a Bahia juntos, passar um réveillon. Depois isso foi virando uma hiperamizade, e até hoje somos muito próximos.

Mas o Matheus é gay, não é?
É, ele é gay. Mas na época a gente estava completamente apaixonado, então rolou. Não discutíamos isso. Logo depois que a gente parou de ficar junto, ele começou a namorar um cara que era amigo nosso.

O ciúme não se potencializa ao namorar um cara que se interessa também por homens?
Não, porque não era um namoro tradicional, então não tinha espaço para esse ciúme mais clássico.

Você já se relacionou com mulheres?
Não... Já tive beijinhos, abraços e carinhos sem ter fim, mas nunca tive uma relação homossexual assumida ou uma namorada. Mas acho mulheres tão incríveis quanto homens. Isso não quer dizer que eu seja gay. Não vislumbro a possibilidade de namorar uma mulher.

No começo da carreira você também praticava meditação com um seguidor do líder espiritual Osho Rajneesh, que pregava a liberdade sexual...
Sim. Mas a gente não tinha essa coisa de sexo, não.

Que turma era essa?
Do [diretor] Marinho Piacentini, que era do Tuca [Teatro da PUC-SP].

Como foi parar lá?
Tinha 16 anos e queria ser bailarina. Fiz balé por dez anos. Paralelo a isso, queria fazer vestibular para história, ciências sociais ou letras, mas optei por história. Passei na primeira fase da Fuvest. Mas, no intervalo da primeira para a segunda fase, conheci uma galera, através do Equipe [colégio em que estudava], que me levou para fazer um teste com o Marinho. Era para fazer o Marat/Sade, uma peça do Peter Weiss, um autor alemão. Não só passei no teste, como fiz a protagonista. E o Marinho era Rajneesh e tinha um sítio, onde a gente ficava trabalhando. Ele usava técnicas de meditação que levavam à exaustão física.

O que faziam exatamente?

Meditação ativa. Exercícios de exaustão. Por exemplo, uma técnica de ficar chacoalhando por 15 minutos, depois pulando com a mão para cima por 15 minutos, depois inspirando por 15 minutos, depois dançando loucamente por 15 minutos, até atingir um grau alto de exaustão. Para o Marinho, não adiantava a gente chegar da rua, começar a ensaiar, sem fazer essa passagem de expansão interna. Até hoje faço esse tipo de exercício. Senão, não estou sendo fiel ao que acredito. Acho que podemos virar outras coisas, mas não só intelectualmente. Você precisa passar por alguma transformação física, seja através de ioga, de meditação, de dança. Esse mundo cotidiano às vezes atrapalha na hora de ensaiar.

Você ficou até quando nesse grupo?
Depois do Marat/Sade, uma das outras peças que a gente fez foi Comala. Tínhamos uma temporada marcada na América Latina. Fizemos Paraguai, Costa Rica e Colômbia. Depois fomos para o México, em direção à Comala [no interior do país]. Chegando lá, o Marinho e o grupo alugaram uma casa pra gente viver em comunidade. Fiquei duas semanas e aí disparou um alarme: "Não vou ficar aqui'.

Por quê?

Porque era uma vida familiar que não era a minha, não queria. Estava dentro de uma casa, com a organização de uma vida: você lava, você passa, você planta e, de tanto em tanto, ensaia. Me dava uma impressão de ter largado a minha família e estar dentro de outra estrutura familiar. Mas eu queria estar no mundo.

E o que você fez?
Voltei para o Brasil e, em seguida, fui para Nova York. Tinha 19 anos e namorava o Nando [o ator Fernando Alves Pinto], que tinha 23 e morava lá. A gente se apaixonou loucamente. Fiquei um ano lá, namorando ele, me separando dele, trabalhando de pintora, de babá, de empregada e fazendo alguns cursos: de mímica, de dança focada em butô e fiz três meses de Lee Strasberg, que é a escola que trabalha com o Actor Studios, com a metodologia Stanislavski. No fim daquele ano, voltei para o Brasil. Já não estava namorando o Nando e sentia falta da minha família.

Você é atriz há 21 anos, mas não é muito parada na rua por fãs. As pessoas te reconhecem?
Reconhecem, mas não vêm falar comigo em geral. Talvez agora com a novela isso volte. Quando aconteceu, não lidei bem, não estava preparada [na época de O Rei do Gado]. Agora estou mais madura, talvez saiba lidar melhor. Mas perder o mais precioso, que é sair na rua e olhar a vida, porque os outros estão te olhando é uma tristeza. Gosto de pegar ônibus, faço supermercado, açougue, saio para dançar. Claro que de certa forma topei isso, meu trabalho é público e acho incrível que muita gente veja e me reconheça. Mas quer coisa mais desagradável do que os outros olhando se você é alta, magra, gorda, se está com seu marido, com seus amigos, quem é aquele...? Todo domingo pego avião com o [Marco] Nanini, e as pessoas seguram ele. Às vezes ele está atrasado para o voo, ralou a semana inteira e vem a pessoa: "Oi, Lineu!" [risos].

Você ganhou fama como atriz de teatro e faz quatro anos que não faz novela. Tem preconceito com a produção de TV?
Não. Acho que, lá atrás, tive sim. Hoje, tenho zero preconceito. Pelo contrário, acho que tem coisas legais acontecendo, passei a conhecer as pessoas e a assistir à TV...

Você entrou na Globo em O Rei do Gado, em 1996?
Sim. O Emílio Di Biasi [um dos diretores da novela] me chamou para fazer a primeira oficina de atores da emissora em São Paulo. Aí o [diretor de núcleo] Luiz Fernando Carvalho viu um vídeo meu e me chamou para fazer O Rei do Gado. Quando terminou, eu tinha uma turnê da peça O Livro de Jó e não dei os passos certos na Globo. Deveria ter ido falar que queria continuar na casa. Sei lá se por inocência ou se porque a vida fora dali estava mais interessante, não cumpri o protocolo. E, quando quis voltar, não tinha canal de entrada. Cheguei a deixar um recado para o [autor] Benedito Ruy Barbosa, mas ele nunca respondeu. Fiquei uns três anos fora da TV. Aí participei da novela Serras Azuis, na Band. Até que, em 1999, voltei para a Globo para fazer Desejos de Mulher, mas também não continuei lá depois porque comecei a fazer [a peça] A Paixão segundo G.H.

Você herdou essa independência dos seus pais?
Minha mãe é supertrabalhadora [é produtora executiva na agência Bossa Nova], independente, esclarecida, lê muito.

A intensidade vem dela também?

Sou mais parecida com meu pai nisso. Ele é mais impetuoso e emotivo.

Que lembranças tem da sua infância?
Foi uma infância bem paulistana, classe média. Nasci na Vila Nova Conceição. Passava o dia brincando no quintal com meu irmão. Eu ficava dançando igual ao Flashdance. Quando tinha 10 anos, nasceu minha irmã que tem [síndrome de] Down. Naquela época, se sabia muito menos sobre isso e tinha aquele fantasma de ela ficar no hospital direto. Lembro desse drama. Depois de sete dias, minha avó olhou para ela e disse: "O que é isso? Ela é normal, leva para casa".

Como foi crescer ao lado dela nos anos 80?
Foi uma coisa muito forte. Mas a chegada dela foi a de um bebezinho fofo e querido. Lembro de ajudar minha mãe a fazer fisioterapia nela. Foi todo um esforço para que a Mel [Melina] se tornasse uma pessoa independente. E ela come, bebe, dorme, faz tudo sozinha. Por causa dessa experiência crescemos como família, ficamos muito juntos.

O que era mais difícil?

Lidar com o preconceito de pessoas que ficavam olhando quando passávamos na rua. Nós odiávamos. Quando alguém perguntava qual era o "problema" dela, minha mãe ficava puta da vida e eu também. "Não tem problema nenhum." A gente considera que ela tem algo a mais, e não a menos. E a gente teve que correr atrás para entender e se adequar a um crescimento diferente. Você desenvolve a disposição para aceitar o outro. E as crianças com Down são muito amorosas, gostosas de conviver, a gente considera a Mel um presente. Agora estamos contentes porque ela acabou de virar bailarina profissional.

Teve receio de suas filhas nascerem especiais?
Tive, como toda grávida tem. Mas acho que, se tivesse descoberto algo, não teria tirado. Até porque nossa história familiar me ensinou a aceitar isso.

Em 2004, pouco depois que sua filha mais velha nasceu, você perdeu um irmão de 10 anos. Como foi isso? Foi uma perda muito dura. Ele morreu atropelado. Era filho do meu pai com minha madrasta, que é uma pessoa maravilhosa. A junção de ter um filho e perder um irmão me desestabilizou muito. E a morte de uma criança é uma coisa bem difícil. Toda a minha intensidade, se é levada para um lado ruim, me destrói. A terapia não estava dando conta de mim e acho que também tinha uma disfunçãozinha química, então passei a tomar antidepressivo.

Como tomou essa decisão?

Demorei para aceitar a possibilidade de tomar remédio. Nunca quis. Achava que ia ficar blindada, boba, sem ter acesso às minhas emoções. E trabalho com elas, então quero ver as coisas com clareza e, ao mesmo tempo, poder acessar a dor, a tristeza. Até que um médico do Rio sugeriu que eu experimentasse um remédio novo. Tiro e queda. No dia seguinte, não é que estava ótima, mas voltei ao normal. Voltei a ser eu mesma. Antes, estava sofrendo muito. Não estava nem conseguindo pegar avião, achava que ia morrer e minhas filhas ficariam órfãs. E esse remédio ainda me acompanha.

Pensa em parar de tomar?
A ideia é ir parando. Mas ainda não foi possível parar por causa da minha vida. O tempo inteiro tenho que lidar com personagens que demandam muito de mim.

Você casou, teve filhas, virou uma pessoa diurna. Cansou de tanta intensidade?
Fui sendo vencida pelo cansaço. Depois da peça O Livro de Jó veio a Apocalipse 1,11, que foi um mergulho mais profundo ainda. Tive que entrar como atriz e como pesquisadora do submundo mesmo, da prostituição. Eu ia para a rua, passava a noite na delegacia ou no puteiro, dava aula no Carandiru para os presos. Não dava para sair de tudo isso e beber, ficar louca, porque no dia seguinte eu ia ter que acordar cedo e enfrentar essa dinâmica pesada de trabalho de novo. Era um mundo muito diferente do meu. E a gente se misturou ali mais do que talvez pudesse se defender. Comecei a ficar meio doente.

O que aconteceu?

Minha rinite alérgica virou uma rinite na pele, com feridas que só passaram quando parei de fazer a peça.
Era tudo muito. Muito físico, muito nu, muita exposição. Emburaquei mesmo. No meio do processo, fui fazer o filme Kenoma e conheci meu marido. Nesse momento, eu já estava ascendendo do fim do mundo para o mundo.

E o que tem de mais legal no "mundo"?
A possibilidade de transitar por vários universos, não só o da loucura, da putaria. Essa é uma chave que os atores têm. E melhora bastante com a idade. Em uma semana, posso estar supermamãezinha, em casa, e, na outra, posso estar bebendo mais, fumando. Fiquei menos fechada. Além de ter ganhado flexibilidade como atriz, fiquei mais flexível como ser humano. Não sou uma coisa só.


Tpm+

Visitamos o set de A Cadeira do Pai, filme protagonizado por Mariana Lima e Wagner Moura, com lançamento previsto para o ano que vem – e contamos aqui detalhes dos bastidores

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