O exato instante em que toda a paisagem muda

por Maria Ribeiro
Tpm #169

Eu estava distraída, essa espécie de suprafelicidade disfarçada de desatenção, aquele segundo antes das chamadas da vida

Eu estava em Lisboa. Era junho. Era do outro jeito. E era a primeira vez. Já tinha tido o céu, as ladeiras, as roupas na janela, o elétrico, o mosteiro, o pastel de nata. Já tínhamos feito compras naqueles armarinhos antigos e visto a casa onde morou o Mário de Sá Carneiro. Eu entrei na van pra ir a uma premiação de cinema, pensando “que legal, vou conhecer o Luiz Bolognesi e ver o filme dele”. Eu estava procurando 2 euros pra comprar um chocolate, achando bonita a camisa do meu marido. Distraída, essa condição suave da existência, espécie de suprafelicidade disfarçada de desatenção, aquele segundo antes das chamadas da vida. E, então, Ana ligou.

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Ana é minha sobrinha-filha de 22 anos, com quem dividi o nascimento dos meus filhos, a morte do meu pai e o melhor crepe de Nutella de Paris. Ana é o meu amor, minha grande parceira na família, a minha garota de Saquarema que cresceu e virou atriz – mas esse é outro texto e se bobear um romance. Ana ligou e eu não atendi pra não falar no celular no meio de um monte de gente – e também pra não pagar interurbano – e aí ela escreveu. “Inês nasceu, tia. Tá todo mundo bem.”

Alguém nascer e estar todo mundo bem talvez sejam as duas maiores invenções de toda a história da humanidade. Eu chorei. Primeiro chorei de alegria, e pensei que meu irmão Otávio tinha mesmo que ser pai, e que emocionante vai ser ver isso, vislumbrei. Depois eu chorei outro sentimento que não sei definir exatamente, mas que talvez tenha a ver com a Ana ter sido a portadora da notícia da chegada da Inês, uma sobrinha recebendo a outra, a nossa meninice, a minha e a delas, cada uma com a metade da idade da outra. E, por fim, chorei porque comecei a discar pra casa do meu pai, 2274-0830, e só no número oito lembrei que ele não estaria mais naquele telefone nem em nenhum outro lugar que não dentro de mim, ou de quem quisesse guardá-lo. E aí doeu um pouco, meu pai não conheceria a Inês, sussurrei.

Isso foi há três anos. Pensei no exato instante em que toda a paisagem muda de filtro porque de volta à capital portuguesa senti o entorno mudar quando soube da morte do Domingos e do renascimento da Camila. A gente não era próximo, mas em todas as vezes que conversamos senti que havia ali a humanidade inteira, e uma simplicidade comovente. Domingos era um palhaço-gato. Puta sacanagem.

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Mas agora é o presente. Minha Lisboa é outra, eu sou outra, estamos em setembro e Camila vai ficar bem. Inês tem 3 anos e Ana vai pra Ásia. As ladeiras seguem com casas coloridas e bandeiras estendidas nas sacadas e, entre um tropeço e outro, a gente segue esperando uns telefonemas bonitos, de preferência dizendo “que está todo mundo bem”.

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Créditos

Imagem principal: Rimon Guimarães

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