… é porque não quer papo. Mesmo que ela tenha sido puta, mesmo que ela tenha ido até a TV para falar sobre isso
Não sou o tipo de pessoa que puxa assunto na fila do correio ou no elevador. Claro, dou bom dia, boa tarde e comento do calor de vez em quando. Mas não passo disso. Para lugares onde há espera (médico, dentista e afins) levo sempre meu livro para deixar claro que não quero muito papo. Assim, evito conversas desagradáveis sobre política ou sobre a minha vida sexual e amorosa – sim, porque se foi puta tem que falar de sexo em qualquer lugar, né? Não! Livro na cara e estamos resolvidos. Só que, em Alphaville [bairro da zona oeste de São Paulo], nem sempre é assim.
Minha sorte é que o pessoal daqui não costuma assistir RedeTV e dificilmente me reconhecem. Às vezes percebo uns olhares de dúvida, mas ninguém me aborda. Isso é um descanso pro Gerald, meu marido, que fica sempre preocupado se alguém vai ser inconveniente. E, acredite, há sempre alguém doidinho para ser inconveniente.
Pois ontem usei meu melhor disfarce: saí sem maquiagem, de legging, tênis e uma regatinha velha. Prendi o cabelo e fui levar Malévola, nossa gata, ao veterinário. Na sala de espera havia uma mulher com dois cachorrinhos esperando para ser atendida. Nos cumprimentamos e logo eu comecei a ler meu livro.
- Nossa, parece que eu te conheço
- Ah, é?
- Sim, você tem o rosto familiar
- Ah, muita gente me fala isso. Deve ser porque sou comum.
Eu realmente não estava com a paciência requerida para contar toda a minha história, os motivos que me levaram a fazer minhas escolhas, e porque diabos eu tinha ido parar em Alphaville. Me reservei o direito de permanecer calada. Voltei a ler. Ela me perguntou da gata, falou dos cachorros, eu disse que também tinha cachorros. Fui gentil, falamos sobre cachorros, mas não fechei a brochura num claro sinal de quem voltaria a lê-la em breve. Assim que considerei a conversa encerrada, dei um sorriso e voltei para o livro!
- Você mora onde?
- Aqui.
- Onde? - Ela queria saber em qual residencial, especificamente, para avaliar meu nível de sucesso. Porque aqui as pessoas são avaliadas assim. E daí veio o fatídico:
- Você faz o que?
Nessa hora, me lembrei do texto da Nina Lemos falando sobre como é ridículo e deselegante fazer essa pergunta para as pessoas. Bufei e respondi que fazia mestrado no interior, em Araraquara. Ah, que coincidência! A família do esposo era de lá, e os pais dela haviam se conhecido na cidade, mas agora moravam em São Paulo.
- Ah, peraí, você não é aquela menina que foi pra TV?
- É, já dei algumas entrevistas...
- Gente, você fala tudo né? Bem doidinha.
- ...
Pronto, estava aberto o portal.
- Você se arrepende? Seus pais falam com você? Seu namorado leva numa boa?
Me senti invadida, deslocada do meu centro de gravidade, que era apenas a ida despretensiosa ao petshop. Então, toca falar: não, eu não me arrependo. Fui puta, foi ótimo e depois decidi fazer outras coisas. Meu relacionamento? Bom, temos nossas crises, o que é ótimo porque isso significa que somos seres humanos e isso também faz com que nos amemos ainda mais.
E daí veio aquele olhar de pena que dá vontade de vomitar.
- É… Quando a gente casa, as coisas mudam mesmo. Eu era cantora e tive que deixar a noite. Meu marido falou “ou eu ou a música”.
Hein? Eu não disse isso! Mas, antes que eu pudesse me defender daquela acusação infame e dizer que está para nascer o homem que vai me colocar na parede desse jeito, a veterinária a chamou. Fiquei profundamente incomodada com o que aquela mulher que eu nunca tinha visto na vida dizia sobre mim. Por mais que eu tenha exposto a minha vida, existe um limite de até onde as pessoas podem invadir o meu espaço e fazerem suposições vis sobre mim. Não na minha cara, não no meu espaço.
Fiquei martelando as respostas que deveria ter dado a ela e remoendo comigo aquela opinião que não pedi.
Em nenhum momento passou pela cabeça dela que eu havia DECIDIDO fazer outras coisas da minha vida? Não por uma imposição, mas por um querer e que eu estava feliz com o novo foco? Estudando os temas dos quais eu gosto, tendo tempo pra ler, escrever, cuidar da minha mente e do meu corpo, que andavam capengas com tanta correria?
E eu deveria ter dito: gata, posso garantir que ter um relacionamento é muito mais difícil do que ser puta. E meu desafio hoje é exatamente orquestrar o meu passado e as implicações dele com o presente, que envolve um relacionamento, uma vida em Alphaville, uma carreira acadêmica no interior e a vida de palestrante. Eu também teria dito que ser puta é muito bom (não pra chocar, mas pra ser sincera), e que ser amada é maravilhoso. Finalizaria dizendo que quando uma pessoa está lendo um livro, no geral, não quer ser atrapalhada.