Grávida de três: um relato de violência obstétrica

por Kanucha Barbosa

Depois de ouvir do médico que a chance de ter múltiplos era nula durante o processo de fertilização in vitro, a psicóloga Marina Bragante conta sobre a violência que sofreu ao engravidar de trigêmeos

Quando a psicóloga paulistana Marina Bragante teve sua primeira tentativa de fertilização in vitro frustrada, aos 36 anos, resolveu se acostumar com a ideia de que não teria filhos, por mais duro que fosse para ela. Então, decidiu trabalhar tanto a ponto de “se tornar presidente do Brasil”, contou no papo com a Tpm num tom de brincadeira com fundo de verdade. Como já atuava na gestão pública, Marina aplicou para um mestrado na área em Harvard, foi aceita, e se mudou com o marido, o fisioterapeuta Luiz Roberto Sampaio, para Massachusetts, nos Estados Unidos. 

Em uma consulta de rotina com a ginecologista americana paga pelo plano de saúde da faculdade, descobriu que poderia tentar a fertilização in vitro mais uma vez: o convênio cobriria as despesas do tratamento. “Não queria me frustrar de novo. Naquela época, as pessoas já me diziam que aos 38 anos seria uma gravidez de risco, geriátrica, expressão que me assustou um pouco”, conta. No entanto, quando informou o marido sobre a novidade, a animação dele a contagiou.

Foram encaminhados a um médico que os trouxe mais esperança ainda. “Aqui é Harvard”, ele afirmou, ao falar sobre os processos de sucesso que realizava. O tratamento começou e, na consulta anterior à fertilização, o profissional explicou sobre o procedimento e o casal levantou a questão de gravidez de múltiplos bebês. “Nunca faço a transferência de mais de dois embriões ao corpo de uma mulher. Além disso, a chance de vocês terem múltiplos é nula”, respondeu o médico. 

O dia tão esperado chegou. Mas, assim que Marina entrou no consultório, foi atendida por uma médica desconhecida. Ao deitar na maca ginecológica em que receberia embriões, o tempo fechou. A equipe a informou que fertilizaria três embriões. Marina e o marido se entreolharam inseguros. “Você tem alguma coisa contra?”, perguntou a doutora. “O médico que tem nos atendido disse que não seriam mais de dois embriões”, Marina respondeu. “Na sua idade, se um vingar já é sorte”, retrucou a médica, com ares de deboche, pedindo urgência para que respondessem sobre o número. 

E se ela tivesse algo contra? Tudo estaria perdido? Os embriões voltariam para o congelador? Seriam salvos? Como ela escolheria o vencedor? “Não me deram tempo para pensar, não me deram informações”, conta Marina. Mesmo assim, com medo de algo dar errado, concordou.   

Nas semanas após a fertilização, ela demorou para entender o que havia acontecido naquela sala. Após o exame de sangue positivo, só pensava no sonho realizado. Estava grávida. Depois de anos tentando, finalmente era hora do primeiro ultrassom que mostraria o coração de um bebê batendo dentro de seu corpo. Mas, ao ouvirem as batidas de não um, mas três corações, ela e o marido entraram em choque.  

Cheios de dúvidas e precisando de amparo, eles marcaram uma consulta com o médico que os acompanhou desde o começo. Enquanto o aguardavam na sala de espera, o homem saiu de sua sala e, em pé, disse a Marina, que ainda nem havia se levantado para ser conduzida à consulta: “Parabéns, você está grávida. Não disse que queria engravidar? Tá aí, três. Eu não posso te atender agora”. E simplesmente voltou à sua sala e fechou a porta na cara do casal. A enfermeira da clínica, também com a expressão fechada, a entregou alguns folhetos informativos, disse que ela deveria evitar álcool e cigarros e mandou Marina para casa. 

Enfurecida, a psicóloga enviou um email de desabafo ao médico, que apenas a encaminhou para uma especialista em redução fetal – uma médica que poderia ajudar o casal a diminuir o número de fetos no caso de múltiplos, prática legal nos Estados Unidos. Marina, que é a favor do direito de escolha da mulher, na hora se sentiu em uma encruzilhada: “Como você brinca de Deus com suas crianças?”

Com uma importante decisão a ser tomada em suas mãos, Marina finalmente conseguiu ser atendida pelo primeiro médico. Ele explicou que dobrou a dose das injeções hormonais “pois achava que o corpo dela não iria responder ao tratamento”. Ela o questionou se não deveria ter sido avisada sobre isso, já que era o corpo dela em jogo, e ele retrucou dizendo: “Quem fez medicina aqui fui eu e não você”.   

Marina decidiu seguir com a gravidez dos trigêmeos e acabou sendo atendida pela especialista em redução, que também é obstetra, até a 16ª semana de gestação, quando concluiu seu mestrado e voltou ao Brasil. De volta a São Paulo, com dívidas estudantis em dólares, Marina, que havia mantido o convênio de saúde particular brasileiro, saiu à procura de um médico especialista em múltiplos. Encontrou um que se propôs a não cobrar nada à parte, o que já era quase um milagre. Com o sonho de um parto normal ou de pelo menos entrar em trabalho de parto, durante a gestação, ouviu do médico que ele “não fazia normal nem de um, quem dirá de três bebês” ou, ao questionar se estava liberada para se exercitar, o doutor respondeu que ela “podia esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque”. A gravidez durou até 36 semanas e 4 dias, e o trio nasceu em São Paulo, em 2018. 

Violência obstétrica 

De acordo com o Blog da Saúde, do Ministério da Saúde do Brasil, “violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas. Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos naturais e as impedem de exercer seu protagonismo”. 

Como acontece com muitas mulheres, em um momento vulnerável e ao mesmo tempo especial de sua vida, Marina não percebeu de cara que havia sofrido violência obstétrica. Foi pressionada psicologicamente, enganada e teve o seu corpo invadido por uma dose excessiva de hormônios, não comunicada pelo médico. “Me senti tratada como um objeto, como uma parede. Pensava: ‘eu sou uma pessoa, não um corpo sem cérebro, sou uma pessoa’”, relata Marina.

Ao falar sobre o episódio aos amigos e familiares, a indignação crescia e aí sim a ficha começou a cair. Seus colegas americanos insistiam que ela processasse a clínica, mas ela só queria esquecer aquela etapa e focar na gravidez. As histórias de descaso e desamparo que viveu em sua gestação, no entanto, deixaram marcas e uma revolta sentida até hoje, quando revisita o assunto. Agora, o objetivo da psicóloga é fazer com que outras mulheres não passem por algo do gênero. Como? Falando sobre o assunto. E atuando por mudanças.  

Bandeira

Psicóloga formada pela PUC-SP, Marina passou pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo e coordenou seu primeiro programa público, o Ação Família - Viver em Comunidade, antes do mestrado na Harvard Kennedy School.

Voltou com o diploma, os trigêmeos na barriga e um convite para ser chefe de gabinete do mandato da então deputada estadual Marina Helou. Este ano, se exonerou do cargo para ela mesma concorrer às eleições, mas não conseguiu se eleger vereadora na capital paulista. “Sou a favor do trabalho de conscientização pelo SUS, pelas aulas de educação sexual que tanto se luta contra. Elas são fundamentais não só pela violência obstétrica, mas também pela violência doméstica, pelo abuso, pela exploração do corpo feminino. Trazer estes assuntos à tona cabe não só às mulheres na política, mas às mulheres progressistas. Porque, certamente, as conservadoras não vão falar sobre isso”, diz. 

É preciso uma aldeia...

Mabê, como é chamada pelos amigos, acaba se tornando uma figura inspiradora para mulheres. Em seu perfil no Instagram, fala abertamente sobre assuntos que cercam seu dia a dia, sem romantização. “Não é sempre assim (ainda bem!), mas tem dias que a minha energia é sugada pela quantidade de choro, de "mamãe, mamãezinha" que eu escuto e de crianças no meu colo (aqui em casa é sempre no plural, né?). Hoje é um dia desses, e esse registro é só para dizer: estamos juntas! Ps. 14 hs e eu de pijama pq não deu tempo de trocar…”, escreve na legenda de uma foto em que aparece cansada no sofá cercada pelos filhos, sempre deixando claro que não dá conta de tudo, e não dá conta sozinha. 

Sua construção de mulher feminista, ela acredita que vem da criação. Com pais também psicólogos, sendo a mãe professora universitária, figura forte e “péssima dona de casa”, afirma que cresceu acreditando que a mulher pode ser o que ela quer. “E tem uma coisa: eu tenho 1,84m de altura. Sou muito grande, então acho que existe uma relação meio de igual para igual com homens. Nunca tive medo de homem, sempre pensei que aguentava o tranco”, conta. 

Assim que ingressou no poder público, Mabê percebeu o quanto as mulheres que se relacionava não acreditavam que poderiam também ocupar um espaço na política. Daí, tornou a sua missão estudar e trazer mudanças a este cenário. De sorriso largo emoldurado quase sempre por um batom vermelho, ela explica para a repórter aqui, também mãe de uma criança pequena, como consegue fazer campanha, reuniões, lives, entrevistas e projetos, e ainda estar presente na vida de Lorena, Olívia e Lucas: nada disso seria possível sem uma divisão equilibrada de trabalho em casa e muita ajuda da família e de amigos.

Créditos

Imagem principal: Acervo Pessoal

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