Diretora de documentários provocadores sobre a infância, entre eles Muito além do peso, Estela é voz ativa na defesa das crianças
Estela Renner era muito menina quando assistia à avó paterna, dona Cilú, filmar a família com uma Super-8 em punho. Era meados de 1970, e o cinema era não só um passatempo, mas uma paixão daquela mulher, que tinha como atividade principal cuidar da casa, olhar pelos quatro filhos e, como bem lembra Estela, “ser avó”. Em um dos cômodos de sua casa, Cilú construiu uma ilha de edição. Sabia montar os filmes, gravava em planos variados e investia no equipamento. Foi suficiente para encantar Estela.
Se para a avó era custoso e ousado demais seguir com o cinema como profissão, para a neta foi não só viável como infalível. Hoje, aos 41 anos, Estela é diretora e roteirista, reconhecida dentro e fora do Brasil por documentários estilo nocaute, que desestruturam quem os assiste. O motivo é simples: ela toca em temas caros à sociedade e cada vez mais quentes. Infância é sua especialidade, e sobre o assunto já são dois longas lançados e um em fase de finalização.
O primeiro, Criança, a alma do negócio, de 2008, coloca luz na má publicidade dirigida aos pequenos e inaugurou o trabalho da Maria Farinha Filmes, produtora criada ao lado dos sócios Marcos Nisti e Luana Lobo. Muito além do peso (2012), seu maior sucesso, é derivado do primeiro filme, mas com um foco específico: a epidemia de obesidade infantil no Brasil e no mundo. O longa já ultrapassou 2 milhões de visualizações na internet. Nele, Estela e sua equipe viajam o país visitando famílias e mostrando o que e como nossas crianças comem. Um mérito e uma coragem desse projeto: os rótulos e as marcas dos produtos são todos expostos. Tabelas nutricionais são escancaradas ao lado de punhados surpreendentes de açúcar, gordura e sal; ingredientes muitas vezes velados nos alimentos.
O projeto mais recente foi um pedido de três instituições à diretora. A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o Instituto Alana – ONG parceira e a maior incentivadora das obras de Estela – e a Fundação Bernard van Leer, todas dedicadas a causas da infância. “Queremos que você faça um filme autoral sobre a importância dos três primeiros anos de vida de uma criança”, dizia o convite que Estela atendeu “com o coração”. O longa está sendo chamado de Be - um filme sobre os primeiros 3 anos da vida de uma pessoa mas o nome
ainda pode mudar, [o nome ficou: O começo da vida] e deve estrear no primeiro semestre de 2016. “Sem afeto e presença simplesmente uma criança não acontece. Por isso é tão precioso e primordial investir no amor na primeira infância”, diz a diretora, convicta depois das filmagens do documentário.
De família de classe média alta, criada no bairro paulistano de Alto de Pinheiros e educada em uma escola de elite, Estela foi ter contato com o que lhe era diferente na adolescência em viagens que fazia como bandeirante a comunidades carentes do interior do país. Antes de decidir o que faria da vida, deu boas voltas. Foi modelo, atriz, cursou nutrição na USP e desenho industrial no Mackenzie, e dirigiu muita publicidade. Mas sempre soube que precisava trabalhar com pessoas e para elas. Ela gosta de chamar isso de “empatia pelo outro”. O cinema virou certeza quando foi fazer um vídeo no México, um trabalho voluntário para promover uma creche que cuidava de crianças que viviam na fronteira do país com os Estados Unidos. “Dirigi e me dei conta de que queria mesmo fazer audiovisual.”
E ali está ela, pronta para perturbar. Na sede do Instituto Alana, em um arranha-céu no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde também fica a Maria Farinha Filmes, Estela nos contou sobre sua vontade de cutucar através das câmeras. Ainda falou de maternidade, dos três filhos, de seu casamento com o cineasta Tadeu Jungle, publicidade, redução da maioridade penal e transformação social. “Me interesso por filmes que provoquem e sensibilizem, que ajudem a transformar o mundo em um lugar melhor. Pode parecer utópico e clichê, mas levo a sério. Sendo um pouco sonhadora, acredito na transformação que podemos realizar com o cinema.”
Tpm. Em Be você fala sobre a importân-cia do amor na primeira infância. Sua experiência como mãe influenciou?
Estela Renner. Tenho três filhos, mas isso não significa que já sabia o suficien-te. Claro que eu tinha um começo, um lugar de onde partir. Além de ser mãe, não tive babá. Sempre tive uma relação muito próxima com eles. Mas estudei muito para fazer o filme. As três instituições que me convidaram são sérias, idôneas, e lidam com esse assunto há muitos anos. Foi assim que decidi ficar em cima de uma das descobertas científicas que mais revolucionaram o olhar para a primeira infância. A criança não é uma tábula rasa quando nasce, em que você insere um monte de informações. Mas também não é puramente bagagem genética. Ela vai se formar através das relações humanas e da genética. Então, esses primeiros três anos são uma janela gigante para a formação dos indivíduos. Muita gente acredita que não há aprendizado nesse período. Mas, na verdade, esse é o momento mais formador da vida. Isso muda tudo.
Por isso o amor nessa fase é tão importante? Sim. Sem amor simplesmente essa criança não acontece. E amor se estende a muitas coisas. É você amamentar seu filho, e quem não puder amamentar, é dar a mamadeira com amor e atenção, olhando nos olhos dele. Segurar esse filho nos braços e se dedicar ao contato amoroso através do olhar, do toque.
Que adulto esperamos que uma criança abandonada constantemente, que vive um estresse tóxico diário, vire? Segundo James Heckman, nada dá mais lucro pro Estado do que investir no ser humano assim que ele nasce.
O filme está sendo finalizado em um momento no qual discutimos a redução da maioridade penal. Esquentando essa discussão vemos diversas histórias de menores infratores que nasceram e cresceram em famílias fragmentadas, sem amor. Você concorda que o problema dos crimes muitas vezes está nesse contexto familiar? Vou recorrer a James Heckman, um dos especialistas que entrevistei para o Be. Ele ganhou o prêmio Nobel de economia e tem muitos artigos publicados nos Estados Unidos. James falou de um estudo que fez para identificar em qual idade a criança aprendia mais. Quando chegaram na primeira infância, viram que era o momento em que de fato mais se aprendia. E perceberam que as sociedades que mais cuidavam dessa fase conseguiam prevenir crime, violência, comportamentos compulsivos e uso de drogas. Para o James, é mais fácil e possível, em termos econômicos, oferecer uma primeira infância saudável e amorosa do que tentar consertar no adulto comportamentos nocivos. É mais importante investir na família e nos cuidadores dessa criança do que depois “fix a broken man”, como ele diz. Porque como você vai voltar lá atrás em experiências traumáticas formadoras daquela identidade? Elas estão solidificadas, vêm de um tempo em que aquela pessoa era bebê. E mais, essa pessoa nem tem mais acesso a essas memórias. Que adulto esperamos que uma criança abandonada constantemente, que vive um estresse tóxico diário, vire? Segundo James Heckman, nada dá mais lucro pro Estado do que investir no ser humano assim que ele nasce.
O investimento no capital humano logo na primeira infância. Sim. Isso é simplesmente investir na humanidade. E como fazer isso? Antes de tudo, investir nas pessoas que cuidam desse bebê. Porque ele não cresce sozinho, é feito das relações humanas. Uma criança nasce com todo o potencial, mas, se ela não tem um pai, uma mãe, um cuidador, que dá pra ela um ambiente livre e seguro, alimentado e afetuoso, essa criança não tem como descobrir seu melhor lado.
Um adulto que não teve essa primeira infância afetuosa é obrigatoriamente irrecuperável? Acredito que não. Pelo menos não é algo unânime. Uma coisa que é interessante dizer: claro que existem formas de recuperação. A pessoa pode ter vivido uma primeira infância muito dura e, com o tempo, e se a vida for generosa, conseguir se reconstruir. O que não é ok, e leva à loucura e à morte, é não ter de fato relação alguma, não ter sido aceito ou compreendido em nenhum momento da infância.
Você é a favor ou contra a redução da maio-ridade penal? Contra. Sou a favor de a gente carregar no colo os bebês. Sou a favor de uma injeção de afeto e atenção na primeira infância. Imagine que só de você dedicar tempo conversando com seu filho, quando ele chegar à escola formal, o vocabulário dele será superior. Precisamos investir no momento em que essa criança nasce. E também, claro, estamos falando de gravidez. Mexer apenas no sistema prisional não transforma nada.
Sou a favor de a gente carregar no colo os bebês. Sou a favor de uma injeção de afeto e atenção na primeira infância.
Algo surpreendeu você fazendo esse último filme? Uma das coisas que me impressionou é que nós todos somos seres de linguagem. A criança nasce com muitas linguagens. Então, o significado que a gente dá pra determinadas situa-ções da vida do filho define muito da per-sonalidade que ele vai ter. Eu não sabia desse “poder” que o pai, a mãe e as pessoas que rodeiam essa criança têm. Por exemplo: a criança cai, ela chora, o pai fala: “Não seja chorão, levanta logo”. Ou pode falar: “Você é muito corajoso. Você só caiu por um pouquinho”. Então, são dois nomes: chorão e corajoso. E essas palavras, esses significados que os pais estão dando, eles vão inserindo a criança não só no mundo da linguagem como também no mundo dos significados. Outro exemplo: o que é ser “a princesa”, e qual é o perigo de você dizer isso pra sua filha? Espero que eu tenha feito direito enquanto mãe! Me surpreendi com o quanto as palavras são poderosas.
Qual é o nosso papel enquanto pais? Criar um ambiente seguro e dizer: “Vai que a gente tá aqui pra você. E você vai falhar, mas tudo bem”. E a ideia é que esse ambiente tenha um nível de dificuldade pra que a criança queira aprender, mas não um nível de dificuldade tão grande que a deixe com a autoestima baixa desde pequena. Assim, ela não vai avançar.
kerning1Então, quanto mais amor e segurança vo-cê dá no começo da vida, mais longe ela vai, sempre sabendo que pode voltar.
Você sempre quis ser mãe? Sempre. Na verdade, eu não aguentava mais esperar. Com 27 anos eu precisava ser mãe. Ninguém planejaria ser mãe na época em que tive meu primeiro filho, o Marcos. Eu estava morando fora, cursando o segundo ano do mestrado de período integral na University Of Miami. Era assistente do professor e tinha um trabalho extra por isso. Pra minha sorte, tinha um day care dentro do campus da universidade. Tem pessoas que dizem que as mulheres têm um relógio biológico pra ser mãe. Eu acho que eu sempre tive. E, além disso, eu estava casada e já tinha me encontrado profissionalmente. E eu queria viver a maternidade, não aguentava mais esperar. Simples assim.
O que é ser “a princesa”, e qual é o perigo de você dizer isso pra sua filha?
O nascimento do Marcos ajudou você a chegar nessas questões que mais tarde foi tratar em seus filmes? Você tem três documentários que falam de infância. Eu acho que ter filhos me acendeu, sim, uma chama de preocupação gigante de honrar as crianças ao redor do mundo. Não só as minhas, mas todas. Sempre quis dedicar parte do meu trabalho e do meu tempo ao trabalho social. E, claro, sempre quis reunir as duas coisas: fazer algo bom pro mundo e que pagasse meu sustento. E que bom que a Maria Farinha Filmes consegue fazer isso. A ponta da Maria Farinha é transformação, são as causas, é dar ferramentas pra que as pessoas se apropriem delas e movimentem a sociedade rumo à reflexão. Sendo um pouco sonhadora, acredito na transformação que podemos provocar.
O filme Muito além do peso provocou essa reflexão, não? Muito além do peso é mui-to feliz nesse sentido. A pessoa pode desligar o filme e de fato olhar pra geladeira e jogar algumas coisas fora. E mesmo na minha casa, onde eu achava que tinha tudo sob controle, eu podia lembrar de situações em que meus filhos foram seduzidos pela má propaganda dirigida a eles. O Lucas quando tinha 3 anos pediu para comprar comida no posto de gasolina porque eles davam brinquedo junto. Meu filho tinha virado um pequeno promotor de vendas daquele posto. Mas o filme também já causou um outro tipo de transformação. A prefeitura de São Paulo lançou um prêmio, o Muito além do Prato, que é pras cozinheiras das escolas públicas. Ou então aquele bolinho que aparece no filme, que demorava um ano e meio pra estragar, a receita foi trocada! Agora eles fazem um bolinho que estraga. Porque, se não tem nenhuma formiga que se interessa pelo bolo, por que estávamos dando ele pras crianças? Esse filme virou um case, porque foi muito visto. Foi para o cinema, mas está na internet: muitoalemdopeso.com.br.
Um material desse não pode ser inacessível. Claro. Com o Be já disponibili-za-mos os trailers na internet pra poder começar um movimento. E o filme é só parte dele. Estamos fazendo uma série de seis episódios e organizando ações lociais com a Unicef em 139 países. Estamos conversando com o governo brasileiro para que possamos ver essa primeira infância como um olhar pra humanidade. Vamos dar força pras pessoas que cuidam da humanidade? Pais, professores, profissionais de saúde pública.
Como você vê o sistema educacional brasileiro na primeira infância e nosso tipo de licença-maternidade? Um país que dá quatro meses de licença-maternidade pra suas mães, como o Brasil, que mensagem está passando? E um país que dá um ano intercambiável entre os pais, como a Dinamarca? É até mesmo uma questão de gênero. Na Dinamarca, isso fica a cargo dos pais. Eles decidem quem é a pessoa certa pra tirar a licença. E um país como os Estados Unidos que não dá o direito à licença-maternidade? Lá, se você quiser ficar com o seu filho pra amamentar, vai depender da pessoa que te emprega. Existem empresas como a Google, que oferece licença-maternidade e paternidade, e tem outras que dizem que, se você quiser ficar com seus filhos em casa, precisa usar suas férias. Olhando essas coisas entendemos como cada país forma sua humanidade. E o que acontece com aquela criança que os pais não têm outra escolha a não ser deixar seus filhos em creches desestruturadas, onde os professores são mal pagos e lidam com dezenas de crianças por sala? A criança corre o risco de carregar um vazio. Ainda bem que as crianças são mais resilientes e arrumam formas de preencher esse vazio.
Você participou da campanha da Tpm #precisamosfalarsobreaborto. Como vê a importância da legalização? Sou a favor do aborto como política pública. Sem falar que a mulher precisa ter liberdade pra fazer o que quiser com seu corpo. Essa é a premissa número um. E, veja, eu jamais faria um aborto, mas isso não quer dizer que eu seja contra a legalização.
Um país que dá quatro meses de licença-maternidade pra suas mães, como o Brasil, que mensagem está passando?
Como foram seus partos? Meus três filhos nasceram de parto normal. Agora minha opinião: o parto humanizado nada mais é do que você escolher as pessoas que vão ficar com você, ter direito de ter seu filho junto com você, no seu peito, assim que ele nasce. Existem cesáreas que são assim, humanizadas. Tem algumas que esperam a mãe entrar em trabalho de parto. Eu acho que o melhor parto é o parto possível, que a mãe, depois de muita informação, escolheu ter, que vai ser bom pra mãe e pro filho e, claro, que os dois sobrevivam. Na história da obstetrícia, anos atrás, a mulher começava a ter filho com 14, 15 anos. E só parava quando morria, depois de 18 filhos. Quantas mães não morriam em seus partos? Então a cesárea é muito importante, a anestesia é muito importante. A minha opinião é que o uso indiscriminado, que é feito por conveniência do médico, e que engana os pais em relação à cesárea, obviamente é desonesto e não deveria acontecer. Mas uma mãe e um pai que se informam, e ela opta por ter uma cesárea, porque está dentro do desejo dela... quem sou eu pra julgar?
Você trabalha , viaja muito. Já se sentiu culpada por não estar presente na vida dos seus filhos? Acho muito difícil uma mãe que não se sinta culpada. Por muito tempo senti culpa por estar longe dos meus filhos. Depois de um tempo entendi que faço o melhor que posso. E é isso, tem o que você pode, o que você consegue fazer. E, quando estou com as crianças, sou íntima delas, estou de fato com elas. Quando não estou, garanto que exista alguém amoroso e cuidadoso do lado delas.
Queria saber um pouco da sua infância, da sua criação. Eu sou filha de dentistas. Nasci e cresci em São Paulo, em Alto de Pinheiros. E tenho dois irmãos, um que também é dentista e outro que é psiquiatra. Acho que não tem outra palavra pra descrever minha infância além de larga. Eu era livre. Meus pais me deram esse presente, eles sempre acreditaram nas minhas decisões. Eu ia andando
pé pra escola desde os 7 anos. Aliás, todos os meus amigos. Isso hoje em dia é impensável. Mas minha infância foi isto: muitos amigos, muita brincadeira na rua, muita natureza, muito acampamento, eu era bandeirante!
Sua família sempre teve dinheiro? Eles não tinham dinheiro pra me mandar pros Estados Unidos fazer mestrado, mas tinham pra me colocar no Santa Cruz. Então, se eu me comparava às minhas amigas da escola, eu não era rica, mas quando fui fazer USP percebi que eu era muito rica.
Você fez um curso de nutrição na USP. Foi sua primeira faculdade? Foi. Eu sempre gostei da questão da nutrição, do alimento. Foram muito marcantes na minha formação as viagens de mochilão pra comunidades carentes. E tive esse choque de realidade. Estudava em uma escola elitista e, nas viagens, comecei a me deparar com gente em situações precárias. Naquela época se falava muito em fome. E pra mim a nutrição tinha muito a ver com isso. Mas logo no segundo semestre me desinteressei pela faculdade. Eu dormia nas aulas. E foi simbólico quando a pessoa que eu mais admirava na sala, a Macarena, me acordou um dia numa aula e falou: “Estela, muda de curso. Você não gosta disso aqui”. Voltei pro cursinho e fui fazer comunicação social na ESPM. Depois de um ano, também não estava completamente feliz, mas estava envergonhada de ficar trocando de curso – na época fazia também desenho industrial no Mackenzie. Tranquei tudo e resolvi viajar.
E pra onde você foi? Estava com 19 anos e fui trabalhar como modelo. Na época, o Bob Wolfenson gostou de mim e me chamava pra tudo. E foi bom porque isso me deu muito dinheiro. Fui pra Europa muitas vezes, comprei um carro.
E você gostava de ser modelo? Era ok. Mas nunca foi meu sonho, era mais uma forma de eu poder ganhar dinheiro e me sustentar. Daí o próprio Bob falou: Vai pro Japão, ganha seu dinheiro e pronto”. Morei um ano no Japão. Eu tinha 21 anos, mas os japoneses me pediam pra dizer que tinha 15.
E como foi esse ano? Em quais cidades ficou? Tóquio e Osaka. Ganhei muito dinheiro, conheci a cultura japonesa. Mas lá eu não podia fazer o que queria, eu só podia trabalhar. Tinha um contrato, eram muitas fotos. Até que um dia liguei pro meu pai e disse: “Eu não aguento mais um dia neste lugar”. Daí voltei. Nunca mais trabalhei como modelo, e guardei o dinheiro. Voltei para a ESPM e me formei. Por muito tempo eu achava que queria ser atriz. Cheguei a passar um ano no Rio atuando em uma novela. Aliás, uma novela que foi um fiasco. Chamava Brida, era pra TV Manchete. Foi quando descobri que não era uma boa atriz.
E o cinema nisso tudo? O cinema demorou pra vir. Veio quando fui fazer um vídeo institucional no México, era um trabalho voluntário pra promover uma creche que cuidava de crianças que viviam na fronteira do país com os Estados Unidos. E foi fazendo esse vídeo que me dei conta de que queria mesmo trabalhar com cinema. Usei a grana que ganhei como modelo no Japão pra pagar um mestrado de três anos focado em ficção, roteiro e direcão na University of Miami. Eu tinha 25 anos. E a partir daí fiquei sete anos nos Estados Unidos.
Logo de cara você já se encantou com o formato de documentário? Na verdade, eu me interesso por filmes que provoquem reflexão, que sensibilizem, que ajudem a transformar o mundo em um lugar melhor. E isso pode parecer uma ideia um pouco clichê, mas eu levo a sério. É o que me move a fazer audiovisual. Muitas pessoas já usaram o poder do audiovisual pra uma coisa macro, nem sempre boa. Por exemplo, Hitler usava seus filmes para manipular as pessoas, em prol de uma juventude hitlerista. Os objetivos de sua campanha eram execráveis. E, com o Criança, a alma do negócio, que foi meu primeiro filme, a gente esclareceu muitas coisas – eu falo “a gente” porque foi um filme patrocinado pelo Instituto Alana, falando de uma causa deles. Os pais se identificam e percebem que eles vivem essa questão de criança versus consumo cotidianamente em suas casas.
Como foi a reação das pessoas a esse filme, que expõe algo que atinge todos os pais? Muitos pais ficaram chocados. Publicidade dirigida à criança é inegociável. Como usar a publicidade pra vender para crianças? Por que não negociar diretamente com os pais, já que são eles que detêm o dinheiro para a compra? A gente ensina nossos filhos a não falar com estranhos. Por que a gente permite que estranhos falem com os nossos filhos o tempo todo pela televisão? Acredito que a publicidade dirigida à criança seja, acima de tudo, abusiva. A criança é um ser lúdico, delicioso, que acredita no adulto, que acredita no bem.
Acho que é esta a publicidade de hoje: invasiva, chata, que está a toda hora tentando me empurrar produtos porque me “conhece” e observa meus movimentos.
Você trabalhou no mercado publicitário. O que você acha da publicidade hoje? Sou completamente contra qualquer tipo de publicidade dirigida à criança. Em relação à propaganda dirigida aos adultos, somos ou deveríamos ser conscientes. Mas eu, Estela, prefiro usar meu tempo de outra forma. Não dá pra movimentar uma economia que termina no lixo. E eu sei o quanto é poderoso o audiovisual. Prefiro fazer o audiovisual do bem, transformador. A publicidade precisa se reinventar. Você está procurando um microondas, e começa a chegar no seu e-mail ofertas do produto. Está claro que eles estão nos observando. Acho que é esta a publicidade de hoje: invasiva, chata, que está a toda hora tentando me empurrar produtos porque me “conhece” e observa meus movimentos. Acho que um caminho pra uma publicidade mais interessante é o daquela que apoia experiências que dão sentido à vida.
Você ficou sete anos nos de Estados Unidos, entre Nova York e Miami, o que fez nesse tempo? Eu casei com o David, pai dos meus filhos, que é norte-americano. Fiquei 11 anos com ele. Trabalhei depois que me formei como montadora na MGM latino-americana. Adorava montagem. Queria ser diretora, mas sempre achei que pra isso era preciso saber montar bem. E saber escrever também, coisa que eu sempre gostei. Sempre foi muito natural pra mim escrever.
Você teve seus filhos nos Estados Unidos? Os dois primeiros. E acho muito difícil ter filho sem ajuda. Ninguém merece. Pre-cisa ter alguém ali. Um pai, uma mãe, um grande amigo, uma avó, uma sogra, alguém com quem você possa contar. E, nos Estados Unidos, ter uma babá carinhosa era muito caro. Quando o Marcos fez 6 meses, matriculei ele no day care. E criei meus filhos meio que intuitivamente, lembrando do que foi bom na minha criação.
O que trouxe você de volta ao Brasil? Eu amo morar aqui, não me imagino morando em qualquer outro lugar no momento. Foi muito bom ter morado fora, mas eu sou muito família, senti muita falta da minha avó, que tem 95 anos. E eu queria criar meus filhos perto dos filhos das minhas amigas de infância, que são pessoas muito importantes pra mim. Minhas raízes estão todas aqui. É bom viajar, muito bom viver uma experiência fora, mas quando você tá criando seus filhos quer muito que eles sejam próximos às pessoas que você ama. Lembro, que quando a gente voltou para o Brasil, as crianças falavam da marginal: “Nossa, que rio horrível!”. E eu falava: “Não fala mal do rio Pinheiros!”. Quando você conheceu o Tadeu Jungle, seu atual marido? O Tadeu marido veio muito tempo depois de nos conhecermos. Primeiro, nosso contato foi profissional. Quando voltei pro Rio, comecei a dirigir publicidade para a Academia de Filmes, produtora de que o Tadeu é sócio. Ainda estava com o David nessa época e fui mãe da Siena nessa fase.
Como foi ter a Siena, terceira filha, aqui no Brasil? Queria ter mais um filho mesmo trabalhando muito. E eu já tinha entendido que não existe um tempo certo, o tal “melhor momento”. No dia em que ela nasceu, recebi um telefonema do Paulo Schimitz, que é o produtor executivo da Academia de Filmes, perguntando se eu podia fazer Amores expressos, uma série de documentários filmados no mundo inteiro. Aceitei. Levei Siena ainda bebê pra Cuba, pro México... Gastei todo o meu cachê em passagens pras pessoas que iam me ajudar com ela.
O que o Tadeu trouxe profissionalmente pra você? Acho que o Tadeu me traz uma curadoria do mundo. Ele é um cara que não perde uma Bienal de Veneza, por exemplo. A gente foi na Documenta, que é uma exposição de arte que tem a cada cinco anos. Encontrar o Tadeu foi uma trombada cultural. Tudo que ele gostava me interessava. A gente tem essa infinidade de afinidades. Encontrar com ele era um pouco como me reencontrar.
Vocês estão juntos há três anos, são casados, mas moram separados. Por quê? A gente tem uma relação de troca incrível. Moramos na mesma rua, estamos juntos de fim de semana e nos falamos sempre. Tem funcionado bem assim.
Você tem vontade de voltar a trabalhar com ficção? Acho que cada documentário é um novo mestrado. É muito estudo, muita pesquisa, e eu adoro. É superenriquecedor. Eu saio afiada no assunto, tenho a chance de entrevistar os maiores especialistas do mundo e ouvir as entrevistas deles exaustivamente. Mas, ao mesmo tempo, eu tenho um lado subjetivo forte, gosto muito de escrever ficção, gosto de ator, gosto de roteiro. Então espero que meu próximo projeto seja de ficção.
Aqui, um dos trailers do novo documentário de Estela: