Milly convidou a mãe para convalescer em sua casa e, para seu desespero, ela aceitou
Minha mãe ligou no meio da tarde para avisar da operação de catarata e dizer que, depois da intervenção, teria que ficar uns dois dias meio quietinha. Minha mãe não sabe ficar meio quietinha e, morando sozinha, teria todas as desculpas do mundo para desobedecer a recomendação médica. Eu então sugeri que viesse para minha casa, sabendo que ela educadamente diria não, porque, afinal, tem três outras casas para as quais pode ir. E que são convenientemente habitadas por um total de nove netos, idades entre 2 e 19, distribuídos entre elas. Como fica a cada dia mais evidente que minha mãe nasceu para ser avó, fiz o convite mais por educação; afinal, lá em casa não tem netos, apenas duas cadelas muito simpáticas e uma gata que dorme na minha cama e diz que me ama há seis anos. Por isso, quando minha mãe, sem precisar de dois segundos para deliberações, disse que aceitava, já não sabia o que fazer, muito menos como daria a notícia à gata.
Resolvi que seria a sangue frio tão logo ela chegasse. E assim foi: “Oi. Como verde te cai bem... Você emagreceu?”, e, enquanto a gata colocava a bolsa sobre a mesa – uma mania da qual reclamo há seis primaveras, mas que naquela noite eu seria capaz de elogiar – e eu ria sabendo que estava prestes a lançar alguma pequena bomba no meio da sala, fui invadida por uma coragem súbita e disse: “Minha mãe vem passar alguns dias com a gente”.
É sempre bom lembrar que minha mãe, essa que estava chegando para dormir na casa que divido com a gata, é a mesma que, quando contei que era gay, saiu de meu carro em plena Santo Amaro, das mais feias e movimentadas avenidas de São Paulo, e me deixou falando sozinha, preferindo seguir a pé do que voltar para o automóvel da filha homossexual. É a mesma que ficou sem falar comigo por quase cinco anos, a mesma que passava reto por mim em festas de família e que não ligou mais em aniversários.
“Ótimo! Vamos arrumar o quarto de hóspedes”, foi a resposta da gata. Talvez ela não tenha entendido, pensei, antes de repetir mais alto e mais lentamente. “Minha mãe. O hóspede é minha mãe.”
“Eu entendi da primeira vez”, disse a gata, abrindo a geladeira, tirando de lá uma cerveja e, naturalmente, esquecendo a bolsa em cima da mesa – mas quem se importa com uma bolsa quando a mãe está prestes a chegar de mala e cuia?
Bagagem extra
E o quarto de hóspedes foi arrumado para receber a matriarca, que chegou no fim de uma sexta-feira escaldante de fevereiro munida de uma malinha de roupas, de uma sacolinha com remédios, com um dos olhos cobertos por uma espécie de tapa-olho transparente e me parecendo bastante animada para alguém que havia saído de uma sala de operação poucas horas atrás.
Depois de colocar suas coisas no quarto, foi para a sala, sentou em frente à TV e disse apontando para o monitor: “Tem RAI?”. Expliquei que nosso pacote não trazia a RAI. “Como vocês não têm RAI? Todo mundo tem RAI.” E, depois de uma breve pausa cheia de inconformismo por não termos a emissora italiana, emendou: “Vamos pedir uma pizza?”. “Vamos!”, disse a gata, muito animadamente. Mais ou menos nessa hora o interfone começou a tocar e a romaria de netos teve início.
“Viemos ver a Nonna”, disse o de 15 anos, que entrou com a namorada. “Você acredita que elas não têm RAI?”, disse minha mãe, segurando o rosto do menino com as duas mãos, tascando-lhe um beijo estalado e informando na sequência que havíamos pedido uma pizza. Logo depois, chegou o de 19 anos, também com a namorada. “A gente não tem RAI”, informei aos dois. “Pedimos uma pizza”, disse minha mãe, ignorando meu sarcasmo. Melhor ligar e pedir mais duas, pensei.
Não sei exatamente quando minha mãe decidiu que seria melhor me aceitar e continuar a me amar, mas o fato é que já faz alguns anos que ela voltou. Hoje, tem com a gata uma relação de cumplicidade e companheirismo e nunca mais ameaçou se matar ou me matar se eu tornasse pública minha homossexualidade (ela é siciliana, deem um desconto ao conteúdo dramático): minha mãe e a gata falam ao telefone quase que diariamente, decidem coisas da casa, fofocam e, a atividade predileta, tiram sarro de mim.
Visita perfeita
Minhas irmãs aparecem para visitar a Nonna convalescente trazendo com elas mais uma penca de netos. A cada chegada, a notícia bombástica de que não tínhamos RAI. “Suas irmãs têm RAI”, repetia a matriarca. E, antes mesmo de a pizza chegar, eu já estava no telefone com a provedora do sinal a cabo implorando para que ela liberasse o sinal da RAI custasse o que custasse.
Sem nenhum tipo de aviso prévio, havia agora em minha casa, sempre tão arrumada e sossegada, uma reunião familiar. E a RAI em volume máximo. A matriarca, um pirata moderno, rodeada pela prole e pelos netos, parecia a pessoa mais feliz do mundo. Quando fui dormir, depois de colocar minha mãe na cama e já muito tarde, estava exausta e ouvindo a voz do apresentador da RAI ecoando pela casa mesmo com a TV desligada.
No dia seguinte, sábado, a gata e eu acordamos mais tarde e, assustadas, lembramos da Nonna em nossa casa. Mas minha mãe não estava mais na cama, que já tinha sido impecavelmente arrumada. Teria decidido ir embora? Saímos pelo apartamento à procura da matriarca. Na sala, uma farta mesa de café da manhã nos aguardava; minha mãe havia descido, ido à padaria e voltado com um banquete. Deitada no sofá da sala, com a RAI a todo vapor, virou a cabecinha, deu bom-dia e disse: “Estava esperando vocês acordarem. Vamos comer?”.
Busco na memória e não consigo lembrar quando ela voltou a ter orgulho de mim ou como a recuperei. Mas, feliz por tê-la ao meu lado outra vez, puxo a cadeira, sento e me sirvo de café, esperando que minha mãe e minha gata me façam companhia.