Aborto: enquanto debatermos princípios, continuaremos diante de um cenário de morte
Dia desses, durante uma das diversas andanças de campanha pela cidade, encontrei um casal no shopping que se aproximou e disse me reconhecer da missa do padre Joaquim. Elogiaram meu trabalho, mas questionaram se eu era a favor de pesquisas com células-tronco embrionárias. Claro, respondi.
O casal, visivelmente desgostoso, afirmou que minha opinião ia contra os princípios da vida. Diante do desconfortável, expliquei que o procedimento era regulamentado por lei no Brasil, que o embrião se formava no terceiro dia de fecundação, e que era um um estágio muito anterior ao feto. De qualquer modo, se não usado iria para o lixo e nada de pesquisa para doenças incuráveis.
Embora um entendesse de ciência, eles tinham um pensamento extremamente religioso, o que me fez refletir sobre o quanto limitamos nossa opinião sobre questões cuja dimensão é tão grande quanto desconhecida. O aborto é uma delas.
Em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal autorizou o aborto de anencéfalos, a Câmara foi tomada por um mar de caixões de crianças. Um cenário aterrorizante que nada lembrava um protesto pela vida.
Nesse caso, o STF deu o direito para que a mulher decida levar ou não a gravidez adiante, já que os riscos de morte são extremamente altos, sem ter que recorrer à Justiça e ser submetida a um processo doloroso que poderia durar meses. As mulheres podem hoje seguir suas próprias convicções, decidindo carregar ou não a dor de saber que o filho dificilmente sobreviverá. Ou carregando a esperança. O que importa é que agora essas mulheres têm escolha.
Não é mais possível discutir questões como essa, que são de saúde pública, de forma tão filosófica e pouco prática. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, em todo mundo metade das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No Brasil, ele é realizado de maneira clandestina, de modo precário e perigoso. Causa hemorragia, febre, infecções. E quem recorre ao procedimento é a mulher pobre, uma vez que com dinheiro é possível interromper a gravidez de modo seguro em clínicas.
Clandestino
Dados do SUS apontam que os agravamentos por aborto clandestino ocupam mais leitos dos serviços públicos e privados na área de saúde da mulher e ultrapassam os casos de câncer de útero e mama.
Por que a legislação inglesa é tão convicta quanto ao aborto ao mesmo tempo que as leis americanas passaram a ser revistas? Quais são as experiências desses países e o que podem ser bem aproveitadas aqui?
Não temos a dimensão que a descriminalização do aborto teria no Brasil hoje. Mas sabemos que tanto a lei quanto os serviços de saúde da mulher aqui estão aquém do esperado. E, enquanto debatermos princípios antes de políticas públicas, continuaremos diante de um cenário de mortes.
Outro dia, em uma escola, conheci um menino diagnosticado como um feto anencéfalo. Considerado cego e surdo, me olhou com emoção, vibrou em silêncio com minhas palavras, e, numa energia de felicidade, posamos para a foto.
Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Pró ximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br