E a vida passa na TV

por Fernando Luna
Tpm #147

A primeira coisa que me lembro de ver na televisão foi a própria televisão

A primeira coisa que me lembro de ver na televisão foi a própria televisão.

O aparelho em si, eletrodoméstico, com seu painel frontal cromado, a textura lisa do plástico imitando a madeira e uma alça no topo para ser levado de lá para cá, embora não me lembre dele noutro lugar além da prateleira mais baixa da estante branca, na altura exata do meu braço de criança esticado. Tinha botões misteriosos, exceto aquele que, puxado, produzia um barulho mecânico e suave, que a tecnologia não sabe mais fabricar, e fazia aparecer no centro do tubo de imagem um ponto de luz, um big bang caseiro se expandindo até ocupar toda a tela, agora uma realidade paralela em preto e branco.

Só depois vieram as imagens.

O cara barbudo conversando com o boneco ranzinza que vivia dentro de um barril, em Vila Sésamo. O céu cinza na abertura da novela Saramandaia, com Ednardo cantando “Pavão mysteriozo” – claro que na época eu não sabia de Saramandaia, Ednardo e muito menos de pavão mysteriozo. A silhueta dos elefantes caminhando pela savana africana com o sol por trás, na abertura de Mundo animal.

No primeiro aparelho de TV em cores lá de casa, vi a o vermelho e o negro (do Flamengo, não de Stendhal) massacrar o Liverpool na final do Mundial Interclubes, transmitida de Tóquio na madrugada de 13 de dezembro de 1981. O único álibi aceitável para um moleque estar de pé, quicando de alegria, àquela hora.

Uns três anos depois, voltava a pé do Baixo Leblon e ligava a TV com volume baixinho, para não acordar ninguém enquanto assistia a um filme no programa Coruja colorida, do canal 4 – ninguém chamava a Globo de Globo, era simplesmente o canal 4. Quando passava o Verão de 42, com aquele garoto mais ou menos da minha idade tentando conseguir alguma coisa com uma mulher mais ou menos como as do Baixo, ficava difícil dormir – mesmo depois de a TV sair do ar.

Pode parecer estranho, mas ali pelas 4 da manhã um locutor explicava em off: “Faremos agora uma pequena pausa em nossa programação. Apenas o tempo necessário para você despertar para um novo dia, uma nova vida”. Era incrível escutar isso: a prova de que a noite tinha sido aproveitada até o fim e, ao mesmo tempo, o alento de saber a cama logo ali. Daí em diante, a vida acelerou e a TV acompanhou o ritmo – ou foi o contrário?

A programação ocupou as 24 horas. Lentes de visão noturna mostram mísseis caindo em Bagdá a qualquer hora. Os seis ou sete canais se multiplicam com o cabo. Chegam Arquivo X, Friends, Seinfeld. Senna morre
ao vivo numa manhã de domingo. Beavis e Butt-Head avacalham a TV na MTV.

(Breve intervalo: há uns dias, passo pelo canal onde ficava a MTV e dou de cara com um telepastor exortando seus telefiéis: “Quero R$ 10 milhões! São 100 mil doa ções de R$ 100! Doe agora!”. Na ex-MTV, Jesus and Mary Chain!)

O telefonema me diz para ligar a TV, um avião bateu no World Trade Center. Minha primeira TV com tela plana. O mar invade cidades asiáticas e “tsunami” entra no vocabulário universal. Fim de semana abduzido
pela Netflix e a primeira temporada completa de House of Cards. Um link no Facebook para o streaming da Mídia Ninja. Mesmo com sinal fraco no celular, o YouTube carrega o vídeo do debate presidencial em que
o nanico do Aerotrem encolhe ainda mais.

Quem te viu, quem TV?

Fernando Luna, diretor editorial

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