Nossa sociedade está doente. E não apenas porque o IMC das modelos aponta números semelhantes aos dos refugiados da Somália. Mas porque aceitamos como padrão de beleza um estereótipo irreal
A reportagem que você vai ler a seguir é um alerta. Não só para adolescentes que se prestam a atingir pesos e medidas ameaçadores, mas para todos os que continuam a adotar esse tipo de referência doentia como parâmetro.
Comprar um biquíni não costuma ser tarefa das mais agradáveis. O provador, aquele espelho enorme, as luzes frias, e as abomináveis gordurinhas que, de acordo com o padrão de beleza que nos é imposto devem ser eliminadas. Já! A missão biquíni pode ser ainda mais penosa depois que vemos todas aquelas garotas lindas desfilando na passarela em época de Fashion Week. Nelas, os maiôs caem perfeitamente. Já na vida real ...
Mas, aqui, a pegadinha: fomos a campo e descobrimos que as modelos são tão magras que possuem um índice de massa corporal (a relação entre peso e altura, o primeiro recurso da medicina usado para perceber se uma pessoa é subnutrida, normal ou obesa) bem abaixo do considerado saudável por especialistas. Em outras palavras, de acordo com os médicos consultados, elas provavelmente estão desnutridas.
Sim, aquelas garotas que costumamos ter como ideal de beleza podem até nos convencer de que representam o padrão estético, mas não podem nos convencer de que são exemplo de saúde. A Tpm pediu que um médico do Ambulim (Ambulatório de Bulimia e Anorexia do Hospital das Clínicas) analisasse o índice de massa corporal (IMC) de sete modelos que desfilaram moda praia na São Paulo Fashion Week e na São Paulo Fashion Rio. Invadimos o Ambulim armadas das fichas dessas moças, alguma famosas, outras quase. Peso, altura, idade: tínhamos tudo em mãos. Os médicos do HC fizeram os cálculos e, bingo – todas as modelos das fichas estavam aquém do índice considerado saudável. Mas, mais arrepiante, os índices de IMC delas eram preocupantes. Trocando em gordurinhas: se essas moças fossem levadas até um médico, ele certamente pediria vários exames de sangue para analisar o tamanho do estrago.
Em números: o IMC da maioria das modelos analisadas fica entre 12 e 15. O considerado saudável pelos médicos é de 20. O meu, uma mulher magérrima, é 17. O de Camila Pitanga, Soninha, Marina Person e Angélica é 20. O de uma vítima de desnutrição de um país como a Somália ou a Etiópia é cerca de 12. Ou seja, as modelos que nos mostram roupas e ditam as regras desse jogo chamado “padrão de estética” estão mais próximas, em matéria de saúde, das vítimas da miséria do que da gente.
Corpo inteligente
“Muitas dessas meninas já devem ter deixado de menstruar”, diz o psiquiatra Fabio Salzano, do Ambulim. Segundo ele, com o peso muito baixo o corpo não consegue mais ter energia para fazer uma coisa simples, como ovular. Nosso corpo é inteligente, e, por isso, é bom não subestimá-lo ou castigá-lo – afinal, quem, com um peso desses, estaria preparada para ser mãe?
De acordo com Carlos Cintra, graduado em educação física e personal trainer especializado em fisiologia, o IMC é o índice utilizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para medir o peso das populações. Mas é uma medida que deve ser analisada com cuidado. “Um jogador de basquete pode pesar 100 quilos e ser considerado obeso de acordo com o índice, só que ele pesa isso tudo por causa de sua massa muscular”, diz. No caso das modelos, no entanto, Cintra afirma que a presença de músculos provavelmente é inexistente. “Uma menina com 1,78 metro e 46 quilos (medida de uma das modelos analisadas) não tem massa muscular”, afirma. E alerta. “A falta de massa muscular faz com que a longevidade diminua.” Em outras palavras: ser só pele e osso pode encurtar a sua vida. Será que é com essa menina que você deseja parecer?
Os profissionais da moda admitem que o corpo exigido hoje pelo mercado é magro. Muito magro. “A modelo deve ter cerca de 20 quilos a menos que a sua altura”, diz Alê Gomes, booker da agência L’equipe. Ou seja, se você tem 1,60 metro, deve, para ter chance em passarelas e campanhas publicitárias, pesar 40 quilos. Faça aí suas contas. Você, como eu, muito provavelmente não tem 20 quilos a menos do que sua altura. Mas a gente espera que essa constatação não vá deixá-la frustrada. Porque, como vimos, o importante é não sacanear seu corpo e sim tratá-lo com carinho, alimentado-o de forma correta: nem mais, nem menos.
Em busca do corpo irreal
“O corpo que a moda pede é irreal”, diz Rogério S, produtor de moda. “Aquele na passarela é o corpo de uma adolescente, uma mulher em formação. Uma mulher de 30 anos nunca vai ter esse corpo.” A estilista Jaqueline Di Biasi, da grife de biquínis Salinas, concorda. “As meninas de 22 anos são velhas.” Mas, de acordo com ela, não tem jeito, pelo menos por enquanto. “As garotas magras são as que ficam bem com todas as roupas. Funcionam melhor na passarela. Só que as mulheres não devem querer parecer com as modelos. São corpos específicos, é uma profissão. Me preocupo, sim, em imaginar que influência isso tem sob uma adolescente.”
Fabiana Kherlakian, estilista da Cia. Marítima e da Água Doce, garante não estar preocupada com o padrão. Acha que modelos mais saradas são as indicadas para desfilarem os biquínis que desenha. “Quando faço o casting, procuro mulheres bonitas, não importa se bundudas ou coxudas.” Para a próxima campanha da Água Doce, escolheu a modelo Mariana Weickert que, por conta de sua participação na programação de verão da MTV, está mais sarada: 65 quilos para seus 1,80 metro. Ainda é pouco. Mas, dois anos atrás, Mariana chegou a pesar 50. O mais cruel é que, segundo Fabiana, com essas medidas Mariana está tecnicamente fora do padrão.“Mas não quero que meus desfiles tenham a cara de garotas branquelas e esquálidas. A modelo precisa inspirar saúde.” A ex-modelo e hoje stylist de moda Lara Gerin, 33, pisa fundo: “Se o padrão esquálido é o ideal para a moda, é um ideal infeliz. As modelos ficam o dia inteiro sem comer e fumam sem parar. Já fiz parte desse esquema. Hoje, acho que elas poderiam ser magras e saudáveis se se comportassem como atletas: tivessem nutricionista, alimentação regrada, fizessem exercício. Você é o que você come. Nesse caso, o que você não come”.
Freud explica
Na hora em que cria seus biquínis, Jaqueline Di Biasi garante que pensa em mulheres normais. “É para ficar bonito em qualquer tipo de corpo. O desfile é outra coisa. É pura fantasia.” Pode ser. Mas é pena que tanta fantasia acabe interferindo na vida real e afetando o destino de mulheres como você e eu. Sem contar as milhões de adolescentes que se submetem a sacrifícios extremos, correndo o risco de ficar com a saúde debilitada, apenas para atingir os tais “20 quilos a menos que a altura”.
É o caso da modelo carioca Fabíola Cabral, 24 anos, 1, 72 metro, 50 quilos e que desfilou nos mais recentes São Paulo Fashion Week e Fashion Rio. Há pouco tempo, ela resolveu se matricular numa academia para ganhar massa muscular. “Fiquei com mais bunda, mais bonita e saudável. Estava magra, mas me sentindo bem.” A empolgação acabou na hora em que ela foi fotografar para um catálogo de moda praia. “Falaram que eu estava gorda na impressão da foto. Me disseram para dar uma secada.” E, no bate-papo, Fabíola revela mais. Conta que no backstage do desfile nunca há comida. “As meninas que estão começando são obrigadas a ficar seis, sete horas esperando. Não comem para não aparecer nada na barriga. A pressão abaixa e elas colocam um punhado de sal na boca pra conseguir desfilar.” Nesta temporada, ela diz ter visto modelos com marca de injeção no bumbum. “Dizem que estão gripadas. Mas, na boa, são marcas de injeção com remédio para emagrecer.”
Nardi Davidson, diretor da Viva Vida e há mais de 33 anos no mercado da moda feminina, sobe o tom e critica o escapismo dos desfiles. Na opinião dele, quanto mais perto da realidade, melhor. Para o catálogo da coleção de inverno da grife, por exemplo, optou por fotografar mulheres bonitas, sem se prender ao peso. “Quando você apresenta uma imagem impossível de ser atingida, está mostrando nada mais que ilusão, e isso gera frustração. Essa overdose de imagens de mulheres supermagras vem também da publicidade, das revistas masculinas e, pior ainda, das femininas, que divulgam uma referência estética inalcançável.”
Como é que a gente se vacina, então, da overdose de mulheres magras que insistem em nos perseguir pela mídia? “Com bom senso”, responde o publicitário Marcelo Pallotta, diretor de arte da Giovanni FCB. “As pessoas têm de usar o radar interno para saber o que é real.” Ele acredita que de uns tempos pra cá um outro padrão está surgindo. É o tal tipinho sarado, disseminado por Cicarellis e Sarahybas. “O grande problema é que vender biquíni é diferente de vender cigarro. Somos obrigados a informar os males dos cigarros nas embalagens. Mas o biquíni em si não é um mal. O que pode fazer mal é a magreza de algumas modelos.” Mas será que, um dia, chegaremos ao ponto de sermos avisadas, nos outdoors ou propagandas de TV, que tanta magreza pode ser prejudicial à saúde?
Anorexia e bulimia
O problema, segundo Salzano, é que a fantasia acaba influenciando de forma nociva. “A imagem de modelos supermagras na moda e na mídia não causa anorexia, mas aumenta a probabilidade da doença em quem já tem essa tendência.” Como exemplo, ele cita um estudo realizado nas Ilhas Fiji e publicado, em 2002, pelo The British Journal of Psychiatry. Antes da chegada da televisão, os casos de distúrbios alimentares eram considerados praticamente inexistentes. Com a chegada da TV, e suas mulheres magras e lindas, os casos de distúrbios começaram a aparecer. Assim como a insatisfação da mulher em relação a sua imagem.
“A mulher que olha um corpo na passarela se frustra ao pensar que não consegue ser assim”, ressalta a antropóloga Mirian Goldemberg. “Por conta desse inatingível padrão, muitas jovens com o corpo bonito deixam de ir à praia porque acham que estão gordas. Elas se privam do prazer.” Como bem sabemos, as mais corajosas até vão, mas ficam enroladas em uma canga. Será que um dia deixaremos de ser assim?