Correio elegante: o escritor João Paulo Cuenca escreve uma carta de amor à cidade de São Paulo
De: João Paulo Cuenca
Para: A cidade de São Paulo
Em 2006 eu era colunista da Tpm e o texto do mês de outubro saiu com o título de "Não existo em São Paulo". Eu existia, mas somente a trabalho. Era uma época em que a cidade ainda era mais cara que o Rio de Janeiro (hoje é o contrário) e a discussão entre o melhor das duas resumia-se a clichês sobre cores do céu e ausência de mar. Nos últimos anos, uma leva crescente de cariocas exilou-se por aqui fugindo da esculhambação extorsiva do balneário. Eu fui um deles.
Há nove anos escrevi: "Em São Paulo, dentro de um quarto de hotel no topo de uma pirâmide. Minhas janelas, que não abrem jamais, são azuis. Refletem-se no prédio do outro lado da rua. Nele, centenas de sombras encaram monitores, arrastam-se de um lado ao outro do andar, como formigas. Colo o rosto no vidro temperado: sou uma minúscula mancha distorcida impressa no arranha-céu de escritórios, separado de mim, janela e hotel, por uma avenida. Além da minha pequena cópia, a fachada também reproduz, numa perspectiva cubista, anúncios coloridos, telas cinéticas de cristal líquido, edifícios em construção e, quando anoitece, o traço brilhante e vermelho dos faróis que vão, o rastro branco e oblíquo dos que chegam. Abaixo, fora do ar-condicionado e do cômodo sem cheiro, uma procissão interminável de automóveis disputando espaço com motociclistas em bando. Surgem repentinamente: uma nuvem de poeira e barulho metálico abrindo passagem".
Eu era chato e visualmente barroco nas descrições, mas o pior vinha quando tentava fazer poesia: "Indiferença bruta e soberana das catedrais de ferro, vidro e concreto, debruçadas sobre avenidas e marginais, de salões imensos no térreo onde, às costas dos vigilantes de terno, jorram fontes d’água, crescem jardins e até palmeiras. Pobres das palmeiras da Faria Lima, que sobre a copa enxergam um teto branco e morrem sem conhecer o céu".
Blá-blá-blá. Quase uma década depois, morando no 23º andar do Copan, eu bebo café debruçado numa janela de onde não enxergo formigas encarando monitores, mas gente. Cada um com uma história e um endereço. Vivo numa cidade onde pessoas de todo o Brasil – e, cada vez mais, de todo o mundo – vêm para se reinventar. E, no processo, inventar uma nova São Paulo todos os dias.
Vim morar aqui justamente em busca de oxigênio. Se antes eu sublinhava a falta de horizonte, hoje entendo que São Paulo é sobre espaço.