Cientista política explica por que política ainda é coisa de homens no Brasil
Há quase 20 anos o Brasil adotou a lei de cota por sexo para garantir a presença feminina no legislativo. Mesmo assim, seguimos sendo minoria nos parlamentos. A cientista política Patrícia Rangel explica por que política ainda é coisa de homens no Brasil
“Faltam mulheres nos parlamentos brasileiros”, afirma a Organização das Nações Unidas (ONU). Para se ter uma ideia, atualmente, elas são 11% dos prefeitos, 8,7% dos deputados federais e 7,4% dos governadores. A baixíssima representação parlamentar feminina assusta e intriga, ainda mais quando o país é governado por uma presidente e mais de 25% da Esplanada está sob a liderança de ministras. Somos a maioria do eleitorado nacional, 51,9%, mas permanecemos minoria nas candidaturas e nos representantes eleitos.
Um dado de maio de 2014 da União Interparlamentar (órgão vinculado à ONU) mostra ainda que o Brasil está no 129° lugar em percentual de mulheres em parlamentos, num total de 189 democracias no mundo. Somos o pior colocado na América do Sul. E, com tudo isso, ainda é preciso nos perguntar: será que as poucas que chegam ao poder de fato defendem interesses da população feminina?
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Mas, afinal, o que há de errado com a relação entre mulher e política no Brasil? Patrícia Rangel esclarece questões que permeiam essa relação e diz como as representantes de hoje mexem seus pauzinhos para fazer o poder valer. Ela é colaboradora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), primeira organização a se debruçar sobre a política com ênfase na participação de mulheres.
Quais os motivos da sub-representação feminina na política? Eles vão desde fatores culturais até as especificidades do sistema político, mas são sempre estruturais, ancorados em valores do patriarcado, do racismo e do capitalismo. Se as mulheres produzem riqueza, são responsáveis pela produção e reprodução da vida social, é necessário que dividam igualitariamente com os homens o poder de gerir o Estado.
É papel das mulheres defender os interesses da população feminina? Será que tem importância quem são os representantes? Seria mais relevante observar o que eles e elas fazem. Não necessariamente uma deputada possui consciência de gênero só por ser mulher. Inclusive, há mulheres que atuaram contra a coletividade feminina. A senadora Kátia Abreu e a ex-premiê da Inglaterra Margaret Thatcher são exemplos disso. Por outro lado, estudos dizem que a inclusão de uma massa crítica feminina faz diferença e que a eleição de legisladoras é capaz de transformar a política por meio da incorporação de temas relacionados aos direitos e interesses das mulheres – geralmente não contemplados por legisladores homens. Mas é preciso eleger mulheres com consciência de sua situação, que percebam que a desigualdade de gênero é estrutural e que as soluções devem ser coletivas.
"Há mulheres que atuaram contra a coletividade feminina, como Margareth Thatcher"
A Bancada Feminina no Congresso Nacional representa os interesses das mulheres? O objetivo da fundação da Bancada – que se organiza desde 1987 – foi criar uma instância de natureza suprapartidária articulada em torno de interesses relacionados aos direitos das mulheres. Para isso, ela reúne deputadas e senadoras para discutir e promover projetos de lei nesses assuntos. Hoje, são 44 mulheres entre 513 deputados federais e 13 entre 81 senadores. Foi graças à Bancada Feminina e aos movimentos feministas que garantimos as modificações do Código Civil com o intuito de assegurar igualdade jurídica entre mulheres e homens e outras conquistas legais, como a normatização do atendimento ao aborto legal no SUS (1998), a Lei do Planejamento Familiar (1996), o reconhecimento da união estável, a Lei Maria da Penha (2006) etc. Então, sim, acredito em um esforço da Bancada em representar interesses das mulheres.
Como funcionam as cotas femininas? Elas trazem algum benefício para as mulheres? As vagas de candidatura reservadas para mulheres têm um impacto imediato no combate à sub-representação feminina. Se bem empregadas, como ocorre na Argentina e em outros países, aumentam a representação em Assembleias Legislativas num curto espaço de tempo e forçam os partidos a incluir mulheres que, na ausência das cotas, ficariam de fora da disputa eleitoral. Isso existe há quase 20 anos no Brasil, que hoje reserva um percentual das vagas de 30% para os cargos municipais, estaduais e federais para o sexo minoritário – na prática, mulheres. O problema é que os partidos não as fazem valer, nem investem capital financeiro e político em mulheres. Geralmente, preferem convocar laranjas, sem experiência, apenas para cumprir as cotas. As candidaturas não são divulgadas e elas não recebem votos. Quando questionamos, vem o discurso: “Mulheres não se interessam por política, a culpa não é nossa”, o que não é verdade.
"O sistema político brasileiro ainda se mantém impermeável às demandas por igualdade"
Você já tem um panorama sobre as eleições deste ano? Por ora, podemos analisar as candidaturas disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Este ano, as mulheres são 29,1% do total de candidatos a deputado estadual (eram 21,1%, em 2010); 29,6% de deputado federal (19,4%, em 2010); 19,7% de candidatos a senador (13,3%, em 2010) e 10,5% de governos estaduais (11% em 2010). Observa-se um aumento nas candidaturas femininas. Resta saber se isso vai se traduzir em mais mulheres eleitas!
Se a cota não é suficiente, o que é preciso ser feito? Temos que reverter o quadro de sub-representação das mulheres nos parlamentos. Para a grande maioria delas a política institucional está inacessível. O espaço da representação é, em sua quase totalidade, ocupado por homens brancos. O sistema político brasileiro ainda se mantém impermeável às demandas por igualdade. E até o momento, apesar dos conflitos, tem servido para manter os privilégios de gênero, classe e raça. A reforma política, a partir de uma perspectiva feminista e antirracista, é um caminho para uma mudança sólida. É preciso um compromisso dos partidos, da Justiça Eleitoral e, claro, do eleitorado. Combater a sub-representação das mulheres na política é papel de todos nós.
Honesta é a PQP
Até 2006, a lei de atentado ao pudor e à violência sexual era redigida da seguinte maneira: “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”. Isso presumia a existência de uma mulher não honesta. Pela redação, o abuso a essas não configuraria crime. Foi a deputada Iara Bernadi (PT-SP) que propôs a retirada do termo “honesta” e também a lei que criminalizava o assédio sexual.