Para ter onde cair vivo

por Ivan Marsiglia
Tpm #161

Ex-relatora para moradia da ONU, Raquel Rolnik defende a moradia como direito humano, festeja a retomada das ruas pelas mulheres e conta como foi ser retratada como uma feiticeira vinda das favelas

"Como ousa esta mulher brasileira vir aqui avaliar a política habitacional do Reino Unido?”. A reação furiosa de membros do Partido Conservador britânico às observações da Raquel Rolnik se deu em 2013, durante uma visita oficial da arquiteta e urbanista como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU).

Professora livre-docente da FAU--USP, autora de uma coluna no jornal Folha de S.Paulo e de livros como o recém-lançado Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2015), a “ousadia” de Raquel foi inverter a regra de trânsito do conhecimento segundo a qual ingleses ensinam e latino-americanos aprendem.

But no hard feelings. Entende-se o nervosismo dos lordes da privatização e do corte de gasto que já chefiavam o parlamento britânico naqueles anos que se seguiam à crise financeira de 2008 – quando o estouro da bolha imobiliária americana desmontou a arquitetura econômica mundial, deixando milhares de famílias endividadas e sem suas casas.

Na entrevista a seguir, Raquel, que além de exercer dois mandatos consecutivos na ONU (2008-2011 e 2011-2014) foi diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992) e Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007), fala da importância da casa como ponto de referência primordial da vida humana. Faz um alerta sobre o futuro do principal programa habitacional do Brasil, o Minha Casa Minha Vida, que diz ter sido inspirado num modelo do ditador chileno Augusto Pinochet. E comemora o momento novo que vive a cultura urbana no país, em especial a de São Paulo, que começa a abrir suas ruas e a romper a clausura dos condomínios.

Tpm. A cidade de São Paulo tem sido palco de manifestações como a ocupação das escolas pelos estudantes e de mulheres contra o assédio nos espaços públicos. Qual é a sua opinião sobre elas?

Raquel Rolnik. Considero esses os fatos políticos mais importantes do ano passado. Historicamente o lugar da mulher é visto como o da esfera privada, dentro de casa, “protegida”. Por trás do assédio está a ideia de que ela não deveria sair, que “mulher de rua” é puta. Mas elas também são donas do espaço público e exigem ser respeitadas nele. É um fenômeno que está acontecendo em várias partes do mundo e fico feliz de ver o Brasil, as cidades brasileiras, no epicentro dele. Especialmente São Paulo, que sempre foi a rainha do conservadorismo. O mesmo em relação aos estudantes. Diante da verdadeira “crise do público” que vivemos, em que as pessoas não se sentem representadas pelos políticos que ocupam governos, prefeituras ou partidos, é uma alegria ver surgir movimentos que afirmam: “O público sou eu, esse espaço é nosso”. Quando todos viam a escola pública como lugar de deterioração, sem laços ou vínculos com os estudantes, eles vêm afirmar que a escola não pertence ao governador e que eles querem participar das decisões sobre seu destino.

Recentemente você compartilhou em seu blog um comentário de sua filha Iara sobre a sua rotina intensa de trabalho: “Ser mãe é ter a consistência de estar presente e firme mesmo quando três oceanos, uma guerra, uma tese de doutorado ou mesmo uma cidade inteira para reconstruir separam a gente”. Os afetos transcendem o lugar onde a gente mora? Exatamente porque circulo tanto é que necessito desses pontos fixos para “morar”. Ter uma mãe, um companheiro, minhas filhas, uma neta para quem voltar. Onde quer que eu esteja, debatendo na universidade, trabalhando em Brasília ou discutindo com o ministro conservador britânico, eu me sinto acompanhada e também presente na vida deles. Uma das coisas mais fortes que aprendi durante o trabalho na ONU foi que, mais do que ter casa própria ou viver de aluguel, o que as pessoas necessitam é da segurança de um lar e dos afetos que ele proporciona.

O que significa moradia para você? Sou muito influenciada pelo paradigma da moradia como direito humano. A ideia básica de que todo indivíduo, grupo ou coletividade tem o direito de viver em um território que lhe propicie acesso aos seus direitos. Vejo a moradia como um portal, uma porta de entrada a partir da qual é possível acessar o direito à educação, à saúde, à não discriminação, à cultura etc.

Por que os ingleses ficaram tão irritados com seu relatório para a ONU em 2013? Antes é preciso explicar que essas relatorias estão subordinadas ao conselho de direitos humanos da ONU, que define resoluções a serem aplicadas pelos paí-ses-membros. Acontece que o conselho é muito marcado por uma divisão entre países desenvolvidos e países pobres ou emergentes. Há uma ideia de que os primeiros são o berço da democracia e dos direitos, enquanto os segundos devem seguir seu exemplo. Só que quando assumi a relatoria, em 2008, tinha acabado de estourar a crise financeira e imobiliária nos EUA. O que estava por trás do problema era o que eu chamo de financeirização da moradia. Em 2013, quando fui designada pela ONU para ir à Inglaterra, outro centro de aplicação desse modelo, os ingleses viviam uma controvérsia política em torno da bedroom tax – medida que obrigaria as famílias beneficiadas com subsídios à moradia a pagar mais caso houvesse algum quarto vazio em seus imóveis, ou teriam que se mudar para outros menores. Identifiquei nisso uma violação do direito à moradia adequada. E a estratégia do Partido Conservador, que estava no poder desde 2010 aplicando as tais medidas, foi shoot the messenger, atire no mensageiro. E disseram: “Como ousa esta mulher brasileira vir aqui avaliar a política habitacional do Reino Unido?”.

O que pesou mais nessa reação, o fato de você ser uma pesquisadora do terceiro mundo ou uma “mulher brasileira”? Acho que ficou patente não só a tradição colonialista britânica, mas também, pelo tipo de enfrentamento que se seguiu, muito agressivo, um componente forte no fato de eu ser mulher. Fui retratada no [tabloide sensacionalista] Daily Mirror como uma feiticeira de origem africana vinda das favelas. Mas embora pessoalmente tenha sido uma experiência pesada, difícil, foi importante porque deu ao relatório repercussão internacional.

Seu livro afirma que se tornou predominante no mundo um único modelo de habitação, baseado no crédito para a aquisição da casa própria, contra todas as “outras formas de existir no território”. Quais seriam elas? A ideia por trás desse modelo é de que a moradia deve ser vista como mercadoria e, em função de seu custo alto, viabilizada pela ampliação do acesso ao crédito. Assim, os mais pobres conseguiriam comprar a “casa própria” – tirando a moradia do rol de direitos a serem garantidos pelo Estado, como a saúde e a educação. Todas as políticas de habitação foram sendo desmontadas e desfinanciadas. Estoques de moradia em poder público foram privatizados e conjuntos habitacionais, demolidos. Outras formas de garantia da moradia, como o aluguel social, por exemplo, foram desestimuladas.
Sem falar nas tradicionais formas de vínculo com a terra de comunidades indígenas e quilombolas. Todas foram fragilizadas em nome do modelo da propriedade individual registrada, porque ele é o único em que o imóvel pode circular livremente no mercado.

É melhor possuir ou alugar um imóvel? Na Alemanha, por exemplo, a maior parte dos cidadãos, de alta ou baixa renda, vivem em imóveis alugados. No Brasil e na América Latina há uma valorização histórica da propriedade por causa da experiência terrível da maioria das pessoas. Elas vêm de uma história de expulsão quando eram posseiras e praticavam agricultura de subsistência, foram parar nas favelas de onde acabaram removidas. É uma situação de insegurança muito grande, diante da qual a gente pensa “tenho que ter onde cair morto”. Veja que não é nem viver, é cair morto mesmo. Mas o que a crise de 2008 demonstrou? Que na era da financeirização a propriedade já não é tão estável assim. O tratamento da moradia como ativo financeiro vulnerabiliza a pessoa que mora, expondo-a às flutuações do mercado.

Você diz que o mesmo processo está por trás de megaempreendimentos de reconstrução após catástrofes e de eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. De que maneira? A financeirização atingiu todos os setores da vida urbana e as cidades vivem em um estado que chamo de transitoriedade permanente. Por exemplo: determinada favela será urbanizada ou removida? Depende. Se aquela área for considerada de interesse da especulação privada, não precisa nem indenizar, joga as pessoas para fora. Áreas de encosta ou próximas ao oceano só são declaradas de risco quando há interesse, por exemplo, de se fazer um resort ali. Os grandes eventos esportivos são ocasiões para renegociar o território urbano no mercado internacional, a preço baixo e com mídia de graça para divulgação dos empreendimentos.

Qual é a sua opinião sobre o programa Minha Casa Minha Vida? O Minha Casa Minha Vida não é uma política habitacional, é uma política industrial. Tem a ver com a estratégia do governo para evitar os efeitos da crise internacional, usando a construção civil para gerar empregos rapidamente, com a vantagem política de mobilizar “o sonho da casa própria”. A grande inspiração é o programa habitacional chileno da ditadura Pinochet. Nele, o Estado dá dinheiro aos pobres para comprar um produto feito pelas construtoras que eles jamais escolheriam por conta própria: de baixa qualidade e longe da cidade. O grande problema desse tipo de programa é que, para garantir o lucro das construtoras, ele tem que ser construído em terra bem barata. E terra barata é terra sem urbanidade.

Como você vê São Paulo hoje? Se por um lado a gente percebe o avanço desse imobiliário financeirizado, com uma submissão das políticas públicas a isso, por outro há resistências. Estamos vivendo tempos muito interessantes. Sou otimista e diria que se trata de um momento de inflexão da cultura urbana. Transformações estão acontecendo em torno de dois eixos fundamentais, o da mobilidade urbana e o do espaço público. Foram movimentos que partiram da sociedade, e não da atual prefeitura – que, no entanto, os entendeu e está se relacionando com eles.

Essa percepção se modificou? São Paulo viveu dos anos 80 para os 90 um movimento terrível de enclausuramento. Foi quando surgiu a cultura dos shopping centers e dos condomínios fechados, all inclusive. O espaço da cidade passou a ser apenas o elemento de ligação entre enclaves fortificados. Houve então o colapso disso, quando já começava a ter congestionamento na garagem dos condomínios. Parte da classe média da cidade abandona  a ideia do carro e passa a exigir transporte público de melhor qualidade. Hoje, você vê lotada qualquer praça de São Paulo. É uma verdadeira reapropriação da cidade.

A carência de verde é outro problema apontado em São Paulo. O que achou da solução da prefeitura para o Parque Augusta e qual deve ser o destino do Minhocão, ser demolido ou virar parque linear? A mobilização em torno do Parque Augusta é fundamental por questionar o modelo de cidade que temos. Infelizmente, a prefeitura não pôde equacionar a coisa. Sou contra a desapropriação pois ela implicaria um pagamento milionário pela compra do terreno. E como se trata de uma área verde que poderia virar pública, o atual Plano Diretor tem mecanismos que permitem ao proprietário transferir o potencial construtivo de lá para outro lugar. O problema é que os donos têm um protocolo de aprovação anterior ao Plano e ninguém pode obrigá-los a aceitar essa transferência, teria que partir deles. Em relação ao Minhocão, ele é uma excrescência, sem o menor sentido do ponto de vista urbanístico. Sou a favor da demolição. A transformação em parque não vai resolver os problemas que ele causa. Sua demolição devolveria à cidade avenidas, praças e parques da melhor qualidade. Eu nasci na Barra Funda e minha mãe me levava de carrinho de bebê passear na praça Marechal Deodoro. Era um lugar lindíssimo, que pode voltar a ser.

Você tem visto outras iniciativas interessantes pela cidade? Muitas. Áreas e prédios que estavam vazios ou subutilizados têm ganhado destinação cultural ou de moradia. O casarão na Vila Guilherme, a Casa Amarela na Consolação e a Casa do Povo no Bom Retiro são exemplos. Todas iniciativas que partiram da sociedade.

Créditos

Fotos: TRËMA

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