”Quando alguém me chama para tirar uma foto, a pessoa vem e diz: ’E o racismo? É muito difícil, né?’. Poxa, eu só queria tomar uma cerveja...”
Este é o terceiro ano consecutivo em que tive a alegria de participar da Casa Tpm. Pude ver de perto a transformação do evento e o cuidado para levar as presentes à reflexão, à troca, ao afeto. Nesta edição mais recente, falei sobre o quanto a militância é dura e adoece psiquicamente as pessoas que não buscam ser algo mais do que militantes, que não têm outros temas de interesse.
Contei uma história que me ocorre com alguma frequência. Depois de passar o dia todo falando de feminismo negro, vou ao bar com pessoas queridas. Quando alguém me chama para tirar uma foto, a pessoa vem e diz: “E o racismo? É muito difícil, né?”. Poxa, eu só queria tomar uma cerveja...
Aliás, quero muito mais. Como mulher negra, sou colocada nesse lugar de só poder falar sobre racismo e machismo, como se nossa existência não fosse infinitamente mais diversificada e complexa. Como me contou a pensadora portuguesa Grada Kilomba, em entrevista para a revista Carta Capital, em 2016, “o racismo nos coloca fora da condição humana, e isso é muito violento. Muitas vezes nós achamos que alcançar essa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, eu vou dizer que sei ainda mais. Pra mim é muito importante desmistificar isso. Eu quero ser eu, não quero ser idealizada nem inferiorizada. Assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei, e dias em que não sei. Às vezes eu choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e às vezes eu não quero. Quero ter essa liberdade humana de ser eu”.
Ao reivindicar a liberdade humana de ser eu, conto outras coisas sobre as quais sinto alegria em fazer e falar. Por exemplo, gosto de tomar vinho, de programar viagens, de viajar. Gosto de ouvir Otis
Redding, Milton Nascimento, Whitney Houston. Gosto de ficar quieta, passar a tarde no sofá vendo filmes que passam pela televisão. Gosto de ser mãe, de passar tempo com a minha filha, vê-la feliz entre pessoas queridas. Gosto de namorar e, acima de tudo, gosto de ter tempo para fazer as coisas que gosto de fazer. Sem ter culpa por isso.
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Adoro conversar sobre tênis e, modéstia à parte, vou muito bem como comentarista e como torcedora – mas só quando minha filha ou as irmãs Serena e Venus Williams estão jogando. Pouca gente sabe, mas um dos meus primeiros textos como colunista foi uma crítica aos comentaristas tradicionais dos canais de esporte fechados, que insistiam em masculinizar Serena, chamando-a de Serenão. Foi a maior briga depois desse artigo. Teve até quem chorou para se defender.
Brincadeiras à parte, o autocuidado é fundamental para a sanidade e efetividade da luta política. Não se trata de mera banalidade, como muitos afirmam, no alto da arrogância do militante ISO 9001. Devemos praticar mais, não sentir culpa por se cuidar, se curtir, se namorar. Estar bem consigo mesma é a etapa necessária para buscar a liberdade da outra, para que esta se curta também. E assim vamos, em busca da liberdade de sermos nós mesmas.
*Djamila Ribeiro é mestre em filosofia política, coordenadora da coleção Feminismos plurais e autora dos livros O que é lugar de fala? e Quem tem medo do feminismo negro?. Idealizadora do selo Sueli Carneiro, voltado para pensadores/as negros/as, palestrou
Créditos
Imagem principal: Pablo Saborido