A coluna em que o cérebro subjetivo e inexato de Mara Gabrilli se tornou metódico e racional
Por que minha vida tem parecido tão exata ultimamente? No sentido do pensamento metonímico e da ausência do meu desejo artístico. Às vezes me sinto uma engenheira metalurgista em pleno turno de trabalho quando a hora é de entretenimento. Apesar de cumprir uma agenda rígida e me esforçar na pontualidade dos eventos, a persistência e leveza das horas tentam esconder minha íntima desordem. Estou com a faceta criativa tão bagunçada quanto minhas roupas no armário. Mas isso não é visível a olho nu. Você não conseguiria detectar nenhuma confusão no meu guarda-roupa. As camisas estão penduradas na seção de camisas, organizadas por cores. As calças têm espaço apropriado e estão em seqüência de cores e texturas. Só que eu não uso calças, só saias. Acho confortável, feminina, prática para vestir e fazer xixi: na emergência, é só levantar. Então, para que as calças?
Não é fácil ver as faltas e os excessos quando perambulam na particularidade do imaginário. É isso que eu chamo de íntima desordem. Na última semana aconteceu de um compromisso ser desmarcado duas vezes no momento em que eu já estava a caminho. Algo muito intranqüilo acontecera como se eu houvesse sido expulsa do meu próprio dia. Pensei, apavorada, que eu teria que ser adulta em tudo. Será que se vive sem felicidade?
Paradoxal, pois vivo com a tácita impressão de ter inventado um destino em que caibo perfeitamente. Não seria um contra-senso criar desconforto para mim mesma? E por que te escrever sem ao menos entender o que acontece? Como se eu portasse uma síndrome e buscasse em você os mesmos sinais e sintomas. Mas espere aí... Foi um “break” na agenda que desencadeou a reflexão. Talvez eu descubra onde foi que perdi a metáfora. Ela, que sempre foi o elemento substancial no ritmo do meu pensamento!
Sabia que acabo de perceber que organizo meus lenços de seda de forma cronológica? Os antigos na gaveta e os novos fora. As jóias também. Uau, é uma conduta reincidente quando se trata de adereços.
Os meus enfeites estão entrando e saindo nas questões substantivas. Agora estou menos exata e mais biológica. Você conhece o dr. Oliver Sacks? Neurologista inglês admirável pela sua humanidade. Para ele, o paradoxo da doença está soberanamente no potencial criativo. Assisti a um documentário que ele produziu sobre a síndrome de Williams. As pessoas portadoras são festeiras, comunicativas, fazem amizade com facilidade, cantam e dançam. Não compreendem muito os números, as horas e o tamanho dos objetos no espaço. Curioso é que parecem irmãos, pois todos têm a mesma cara, que é totalmente diversa da semelhança na síndrome de Down. Outras síndromes fazem isso também. Quando Sacks examina o homem, se coloca dentro dele e deixa de lado a objetividade reducionista e a ótica fria da ciência.
Agora estou nada biológica e preciso insistir nesse olhar profundamente humano. Transitar no limite entre a realidade e a ficção. Viajar... Que saudades da minha amiga Patrícia. Mora no Rio de Janeiro e entende tudo de mim. Apesar de ser uma engenheira metalurgista – exata – é muito humana!
* Mara Gabrilli, 38 anos, é publicitária, psicóloga e secretária municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo. Fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@prefeitura.sp.gov.br