É tudo mentira!

por Redação
Tpm #69

Tamanha incoerência entre o que sinto, penso e faço faz com que eu siga pela vida tal qual um pinóquio animado – e ligado no automático

 
A verdade é que sequer um dia passa sem que eu minta. Existe incoerência entre o que penso, sinto e faço. Mas será que admitir isso exime minha responsabilidade de não ser verdadeira, ao menos sincera, na minha expressão? Sob o holofote implacável da minha mente essa pergunta dança sozinha, sem acompanhante. Há algumas respostas, todas tímidas, que não podem ser par da questão. Fico constrangida. Como em uma festa à fantasia, uma resposta deixa cair sua máscara, perde a timidez. No palco a pergunta já não está sozinha. Existe toda uma produção de personagens e caracteres em uma dramatização cinematográfica. Pondero que, se eu quiser desenvolver o ímpeto de ser sincera comigo, devo honrar minhas razões mesmo que nem sempre sejam apreciadas pela audiência. As cortinas por fim se abrem. A trama se desdobra.

Esclareço que eu aplaudo meu teatro. Mas quem me oferece palmas ou vaias aqui na tal realidade são as pessoas. Gente que me inspira a ser sincera em almoços despretensiosos ou como você que me lê agora – que a cada tanto deixa um comentário que faz carinho no meu grato coração. Embora eu diga que não posso ler o pensamento dos outros, posso vê-los. E todos vocês podem ver os meus também. Qualquer coisa que faça existiu antes na minha cabeça de forma elaborada ou abrupta, mas o ponto é que passou sim por um crivo mental. Os sábios dizem que tudo isso é indiferente, ou seja, esta discussão é pura balela!

Palavras: flechas lançadas

Eles defendem a idéia de que a reação de quem é centrado em si mesmo é inexistente. Em outras palavras, adubo ou flores são aceitos de igual maneira, como oferenda. Agradecem por todas. Bom para eles! Na minha subjetividade mental isso é utópico. Desprezo – sem aceitar – tanto um como as outras, se dados por quem não tenho consideração. E ainda uso isso para dizer que pouco me importo com o que pensam ou falam de mim. Mentira. O máximo que consigo é não me importar com algumas pessoas, em uma atitude agressivamente sincera, e conseqüentemente com as opiniões delas. Mas, se quem zelo me interpreta de maneira a ameaçar o relacionamento que temos, então peço e imploro que possa esclarecer qualquer que seja o ponto. Se faço um paralelo com o comportamento dos iluminados, com um pouco de sorte e herculano empenho, eu consigo não manifestar minhas tendências mentais mais sombrias, colocar um ponto final em uma discussão antes que comece, com um breve sorriso que internamente usa os dentes como portões do inferno para que minha legião de demônios fique do lado de dentro! Na maioria das vezes, no entanto, dou com a língua entre os dentes! Flecha lançada é palavra proferida. Sou exímia arqueira. E quem sabe da sabedoria e não do conhecimento que tenho me olha em silêncio, com a aceitação que nem eu mesma tenho sobre quem sou. Escrevo sobre os sábios sem partilhar de seus comportamentos imparciais.

Também sou espectadora do meu show. Na minha mente, aquela perguntinha ainda espera os passos da resposta. Posso eu me sentir melhor simplesmente porque tenho conhecimento de que falta coerência em mim? Fico chocada com minha franqueza violenta. Faço isso para que eu tenha justificativas para meu mau comportamento e, assim, invento desculpas que validam inconscientemente cada uma das minhas falências. No fim de um dia fiz bem menos do que me propus e intelectualizo motivos que me fazem aceitar a pontuação do jogo entre mim e mim mesma – entre a Patrícia que coloca o despertador às 4h40 AM e a Patrícia que ao acordar tão cedo pede mais alguns minutos. Esquizofrenia. O que não entendo cognitivamente é que, se a competição é entre duas facetas de mim e conota uma perdedora, não importa que eu ganhe porque eu também sou a que perde. A inversa não é verdadeira. É mentirosa. Não posso me considerar vencedora. Cristovão de Oliveira, meu professor de ioga e orientador tanto de uma Patrícia como da outra Patrícia, me relembra o que a matemática explica: “Mais com menos é menos”. Por isso o conflito deve cessar, para que eu possa ser inteira, e então mesmo que falhe eu venço porque honro o voto da sinceridade sem desistência, aceitando minhas condições. Quando desisto de algo fica claro que aquela tarefa seguirá à disposição da humanidade, mas desisto das minhas possibilidades ao desistir dela. A percepção sempre começa de quem enxerga, está condicionada ao que vê. Eu sou uma derrotada justificada! Agora só entre nós, isso me livra da derrota?

Obviamente sei o que devo fazer para ter minhas finanças equilibradas com meu salário ou para manter a saúde por exemplo, mas por que não faço? Porque justifico minha displicência em levar a cabo meus projetos pessoais com explicações que intelectualizam as verdadeiras razões. Assim, depois de percorrer cada possibilidade desse fluxograma, eu manipulo minha razão para ser feliz. Pensar que sou feliz. A máscara de um sorriso. Felicidade imaginária, projetada, argumentada e convencida. Falsa. Mais mentiras. Após recriminar situações externas, insuficientes 24 horas de um dia por exemplo, estou tranqüila porque, afinal de contas, não é culpa minha, fiz o que pude. Medíocre demais.

Pondero ainda mais. Trabalho voluntário. Adoro ajudar o próximo! Aliás, gostaria. Agora que outro véu foi rasgado, enxergo. Admito minhas razões vergonhosas. O que quero é sentir-me bem comigo. Quero pensar que colaboro com o mundo em vez de explorá-lo deliberadamente até a extinção da nossa própria raça. Mas eu minto para mim. Eu digo que quero ajudar o próximo. O que desejo é exaurir minha culpa, que me condena dia e noite por assassinar quem me mantém viva. A vida em si. Compro créditos com o diabo tentando ajudar. O que não sei é que os ingressos do concerto não estão à venda. O espetáculo é sempre dentro. Entra quem for sincero. E quem é está do lado de dentro, não no drama, mas na comédia, dando risada porque é contente sem precisar pensar para ser. Simplesmente é. Essa é a diferença. Eu preciso pensar que tenho credo, devoção, saúde, emprego, família e amigos para ser feliz. E, na ausência de qualquer um desses fatores, sou infeliz. Aí vivo esforçada para manter tudo aquilo que, diga-se de passagem, não me pertence. O resultado final é ofensivo, destrutivo, definha quem sou. O que eu penso possuir me possui.

O show tem que continuar

Posso consertar minha postura. Servir de exemplo e então ajudar pela presença de quem é comprometido com a retidão da verdade. Gargalho de mim, ser pretensioso que sou. Os mestres observariam compassivos. É necessário manter a perspectiva, educar o ego. Isso é grande demais para mim. Meu tamanho comporta apenas que eu seja sincera comigo – isso se eu crescer não em dimensões mas em consciência, e conscientizar minhas causas além de meus sintomas. O sintoma projeta males do mundo, a causa entretanto revela interesses pessoais (que também podem ser extremamente bem intencionados, como proteger aqueles que amo, mas interesses pessoais ainda).

Em vez de trabalhar as causas, tomo um remédio para curar os tais sintomas. Quero rapidamente estar livre deles e viver com a enfermidade velada. O nome da doença é ‘automatismo’. Já foi dito, “ignorância é felicidade”. Em um belo dia serei inadvertidamente surpreendida com más notícias; na minha santa estupidez, interpretarei o fato como um acidente sem precedentes que jamais demonstrou presságio. Provavelmente uma enfermidade qualquer que declaradamente me tirará a vida que eu desisti a cada momento, quando me neguei viver plenamente. Ainda há forças em mim para lutar pela realização do sonho de morrer de velhice. Mas, em contrapartida, embora eu diga que quero a verdade sempre, eu mesma a mascaro. Durante a auto-sabotagem vale tudo, de tarja preta a homeopatia. E, depois de pouco convencimento, falo com confiança que as mentiras que contei para mim conotam realidade. Até mesmo posso prová-las com teorias!

Como Galileu disse à Igreja ao ser condenado à prisão com a ordem imperativa de que nenhum trabalho seu fosse publicado, “nada muda os fatos”. A Terra na ocasião continuou girando em torno do Sol, mesmo com a manipulada bíblia dizendo que o planeta não se mexe. Séculos depois, a própria Igreja reconheceu o engano e permitiu a publicação da mente do gênio. Hoje conhecemos a sinceridade do trabalho de quem Einstein nomeou o pai da ciência. A Igreja é a manifestação do que foi concebido pelos homens. E, se a história de atrocidades do mundo reflete a crueldade do universo particular, então nem mesmo minha tão ativa mente consegue argumento para que meu compromisso comigo seja menos que sincero e evite situações externas que demonstram enrustidamente meu interior. Eu co-crio desgraça quando não tomo partido do dharma, do bem. As cortinas já não podem se fechar. Da platéia vejo que sou eu que crio o script sempre que o diretor me favorece com esse papel. Eu desejo honrá-lo escrevendo minha biografia com acontecimentos menos enganados sobre o que declaro sobre meus propósitos. As cortinas seguem abertas. Com o novo enredo que conscientizo por meio do ser sincero, o show deve continuar.

fechar