por Nina Lemos
Tpm #84

Mulher Melancia, Melão, Filé. Investigamos o fenômeno das mulheres hortifrúti

Há pouco mais de um ano, a melancia era apenas uma fruta vermelha e cheia de caroço. Nessa mesma época, Andressa Soares era apenas mais uma menina bonita da periferia do Rio de Janeiro que andava pelas ruas sem que ninguém a parasse para pedir um autógrafo. Ouvia muitas vezes a palavra gostosa, algo comum para quem, no país da bunda, ostenta uma de 121 centímetros. Hoje, Andressa deixou de ser Andressa. Ganhou outro nome, é a Mulher Melancia. Vestida (ou será despida?) com a fantasia da personagem, virou fenômeno nacional. Conseguiu aquilo que tanto se sonha nesta era de culto a celebridades. Mora na Barra da Tijuca (o bairro preferido pelos famosos do Rio de Janeiro) e vive de avião para cima e para baixo. Um fenômeno tão forte que trouxe seguidoras: a Melão, a Jaca, a Morango, a Maçã, a Filé...

Nesse curto espaço de tempo, Melancia esteve três vezes na capa da Playboy. O primeiro ensaio, uma edição especial de abril de 2008, esgotou os 200 mil exemplares colocados à venda. O segundo, de junho, vendeu 365 mil e rendeu uma terceira capa, de dezembro. Melancia, na ocasião, foi o destaque da edição das melhores fotos do ano. Mais que isso.Com a popularização dos bailes, seu corpo virou sonho de consumo de meninas de todas as classes sociais.

É nos peitos da Melão, no bumbum da Melancia e nas pernas da Jaca que muitas garotas têm se espelhado – várias daquelas que antes sonhavam com a magreza das modelos. Será que finalmente o padrão de beleza está ficando mais democrático? Infelizmente, os especialistas não pensam que seja isso, mas sim uma pura e simples razão de mercado. “Se o único padrão de beleza fosse a magreza, todo mundo só venderia produtos para emagrecer, mas, existindo vários padrões, você pode vender para engordar”, diz Everardo Rocha, professor da PUC-Rio e especialista em antropologia do consumo. Em outras palavras, os corpos estão sempre à venda. Seja o das modelos esqueléticas ou o das gostosas.

Pé na jaca
A Tpm acompanhou bailes da Mulher Melancia e da Mulher Melão em São Paulo e comprovou: elas “interagem”com um público de meninos excitados com a possibilidade de subir ao palco e “dançar”com elas. No show da Melão, por exemplo, o garoto da plateia é molhado e seco por ela com sua camiseta. No da Melancia, o escolhido ajoelha no palco com as mãos para trás e toma uma bundada no peito que o derruba (literalmente). Sem falar no da Filé, que pede cartões de crédito para o público, escolhe um e passa o objeto – pasme – no meio de suas nádegas. Mas por que será que tantas meninas querem ser como elas? Leandra Pereira, 24 anos, fã de Melancia presente em um dos shows de sua musa, explica: “Ela mostrou para o Brasil que por meio de um corpo se consegue sucesso”. E vai além: “Lógico que eu queria ter um corpo assim, qualquer mulher gostaria”. Leandra não é a única. Para a antropóloga Mirian Goldenberg, especialista em corpo e sensualidade, essas dançarinas-frutas sintetizam a sociedade brasileira: “Nossa cultura sempre valorizou o corpo e a sexualidade como um capital”, afirma.

Mulher bonita não paga, mas...
Os empresários do funk já se acostumaram a um novo tipo de abordagem: o das meninas que querem seguir carreira nos palcos. “Elas me param para perguntar como fazem para ser dançarinas”, revela o empresário Marcelo Rocha, da Galáctico Produções, que representa 40 grupos de funk carioca em São Paulo. “A menina tem que seduzir não só os caras, mas também as garotas. No fundo, elas querem ter o corpo igual ao das dançarinas”, atesta Mr. Catra, personalidade respeitada no funk há mais de 20 anos. Ele descobriu a Mulher Filé, 100 centímetros de quadril, numa dessas noitadas. “Ela parou o baile. E, se isso aconteceu, serve pra ser minha dançarina.”

Mr.Catra procura uma nova dançarina, já que seu Filé decidiu seguir carreira solo. Para encontrá-la, está promovendo o concurso “Garota Mr. Catra”, cuja final será realizada este mês. De acordo com ele, até janeiro 60% das candidatas inscritas, meninas de todo o Brasil, eram de classe média alta. Seu produtor, Chrystian Beejay, conta que hoje em dia o número de mulheres que o procura para ingressar nesse mundo aumentou bastante. “E isso acontece em balada classuda, como a Disco e a The Week”, garante, referindo-se a casas noturnas frequentadas pela elite paulistana que chegam a cobrar R$ 100 de entrada.

Para conquistar tanto sucesso, Melancia trabalha duro. Em um sábado de dezembro, às dez da noite, de calcinha, regata e cabelos soltos, ela abre a porta do quarto de hotel em São Paulo. A cama bagunçada e o prato de macarrão que comeu assim que acordou, às 17 horas, revelam que não houve nenhuma preocupação em arrumar ou esconder nada. Aquela é mesmo Andressa Soares se preparando para subir no palco na forma de Mulher Melancia. O itinerário da noite está tranquilo: apenas três shows. Ela tira isso de letra, já que está acostumada a fazer até oito apresentações na mesma noite. Tanto trabalho compensa. Andressa, aos 20 anos, já comprou uma casa para a mãe, um carro e um apartamento. Também investe na criação de uma clínica de estética no Rio de Janeiro e cuida do licenciamento de produtos com seu nome. Como depende do número de shows, ela não tem um salário fixo – e faz questão de não revelar quanto ganha. Quando estourou no país com o Créu, grupo que integrava antes de se lançar em carreira solo, já estava acostumada à atenção dada à sua bunda. “Danço desde os 14 anos porque meu pai tem uma academia de dança de salão. Quando me apresentava, me chamavam de Lua Cheia.” Andressa não se ofendeu quando virou Melancia – ela foi batizada em um programa de rádio carioca. Nem quando era xingada por mulheres no início da carreira: “Quando comecei escutava cada coisa... Piranha, puta. Agora não: as mulheres elogiam mais, dizem que sou linda”.

“As pessoas me criticam, mas sabem quanto eu estou ganhando para rebolar a bunda em um clipe, que seja? Eu quero mais é fazer muitas capas de revista, juntar meu dinheiro... Aproveitar enquanto der”

Essa relação de amor e ódio não é tão louca quanto parece. Tânia Hoff, do programa de mestrado em comunicação e práticas de consumo da ESPM, acredita que o fenômeno é similar ao que acontece com personagens de novela, apresentadores e atrizes. “A partir do momento que uma imagem ganha lugar de exposição, ela passa a ser modelo de referência e, consequentemente, ganha adeptos.” A relação dos homens com mulheres como Andressa, a Melancia, é diferente. “Quando chegam perto, eles nem conseguem falar nada. Só ficam olhando”, conta a própria.

Pisca-bumbum
Os garotos fazem a mesma coisa quando vislumbram Renata Frisson, 21 anos, a Mulher Melão. Há um ano ela deixou Santa Catarina com um objetivo: ser destaque do Carnaval. Abalou. Saiu em quatro escolas, três delas com os seios à mostra. Ela narra sua trajetória com orgulho, enquanto espera no camarim para fazer um show no clube Cabral, em São Paulo, para 2 mil pessoas.“Tudo aconteceu rápido. Fui eleita em dois sites como musa do Carnaval, ganhando de pessoas famosas que tinha como ídolas.” Seus 500 mililitros de silicone – em cada seio – renderam de cara um convite para o mesmo programa de rádio onde nasceu a Mulher Melancia. Renata não esconde que o sonho da sua vida era mesmo ser famosa. Hoje, guarda dinheiro e mora em um flat, também na Barra da Tijuca. Mesmo assim, diz que o maior sonho que realizou até agora foi “ter aparecido em programas de televisão”, conta a garota, que largou a faculdade de direito em Balneário Camboriú, SC.

Melão, que é amiga da Melancia, não pensa em ser dançarina para sempre. “Isso é uma fase, quero casar e ter filhos”, diz, pragmática. Melancia, por sua vez, sabe que a fama é passageira.“ As pessoas me criticam, mas sabem quanto eu estou ganhando para rebolar a bunda em um clipe, que seja? Eu quero mais é fazer muitas capas de revista, juntar meu dinheiro...Aproveitar enquanto der.”

Em seus shows, as mulheres-frutas sobem no palco ao som de músicas compostas para elas, espécie de hinos. “Bota o melão para quicar/ Bota o melão para quicar”, canta o MC Frank, parceiro da Melão, acompanhado pela multidão. “O meu lema é este aqui: Solteira sim, sozinha nunca/ Sou garota melancia/ E rebolo a minha bunda”, canta a Mulher Melancia. A coreografia, no caso das duas, acompanha as letras. Melão pula cada vez que ouve a ordem de quicar seus seios. E Melancia levanta a bunda em direção ao público enquanto todos gritam. Sobre a cena do cartão de crédito, apelidada “passa cartão” no YouTube, Filé, ou Yani de Simone, 19 anos, explica: “Antes eu fazia o pisca-bumbum, que é o movimento de contração das nádegas. Mas comecei a achar muito sem graça e quis dar uma incrementada. O Catra sugeriu passar um cartão de crédito e eu achei legal, engraçado”, conta. “Gosto da viagem das pessoas... Não tenho vergonha nenhuma, acho superdivertido, sou um caixa eletrônico que, às vezes, engole o cartão!”

“Eu fazia o pisca-bumbum, que é o movimento de contração das nádegas. Mas comecei a achar muito sem graça e quis dar uma incrementada. O Catra sugeriu passar um cartão de crédito e eu achei legal, engraçado”

A psicóloga e sexóloga Carla Cecarello, presidente da Associação Brasileira de Sexualidade, discorda da ideia de independência vendida por essas mulheres. “Ao acharem que podem fazer o que quiserem, ao mostrarem as partes do corpo que bem entendem, elas acham que estão maravilhosas e que têm liberdade, quando, na verdade, estão usando o corpo para satisfazer os homens”, opina.

Será então o funk um vilão e as frutas parte de uma gangue especializada em subjugar as mulheres? Essa é uma polêmica que vai longe. A antropóloga Mylene Mizhari, especializada em moda e estética, afirma que a exposição do corpo no Brasil não é privilégio dos bailes onde as mulheres-frutas se exibem. “Não podemos esquecer que as escolas de samba oferecem, todo ano, o espetáculo de corpos ultrapreparados pra serem os mais gostosos possíveis e, assim, ganhar destaque na mídia.”

Excesso de gostosura
Alheia ao debate acadêmico, a operadora de telemarketing Kátia Xavier, 26 anos, quer mais é se divertir nos bailes. Mãe de três meninos, ela ganhou o apelido de Mulher Melancia dos amigos, devido às semelhanças com sua musa. “Admiro todas as mulheres-frutas: a personalidade, o jeito de se vestir, se expressar. Acho mais bonito que modelo de passarela. Os homens também gostam mais.” Mr. Catra confirma: “As mulheres preferidas do funk são aquelas que fugiram do spa, que têm aquele ‘a mais’ de gostosura, tá ligado?”. O básico é ter mais de 1 metro de bumbum.

Para Mirian Goldenberg, as formas curvilíneas do mundo do funk são como uma volta ao padrão típico da mulher brasileira. “Com sua baixa estatura, cabelos pretos, quadril largo e pernas grossas, elas resgatam a beleza típica da miscigenação do país.” Andressa, a Melancia, e Renata, a Melão, não estão preocupadas com esse tipo de polêmica. Andressa prefere gastar seu tempo enchendo seu laptop cor-de-rosa com fotos da família. Namorar? Não, as mulheres com os corpos mais cobiçados do Brasil não têm namorado. Melancia diz que é culpa da agenda. Melão acha que os homens têm medo dela.

Enquanto os marmanjos continuam assustados, Melão se prepara para desfilar no Carnaval, onde provavelmente será, de novo, eleita uma das mais gostosas da temporada. “Só no Brasil existe essa relação de mulher ser comida. No fundo, somos todos fruto, e frutas, dessa sociedade”, finaliza Mirian Goldenberg.

* Colaborou Bruna Bopp

O sonho da bunda própria

O funk nos mostra, sem rodeios, um projeto de feminilidade que aceitamos consumir em pequenas porções 

Por Denise Gallo*

Mulher Melancia. Mulher Morango. Mulher Jaca. A feira é completa e variada. O feirante capricha nas ofertas: paga a bunda, leva o peito, arremata a coxa. Chacoalha tudo. Mulher para comer aos pedaços. Raw food. Aceitamos cartão de crédito!

O fenômeno das mulheres hortifrúti invadiu a cena alimentar brasileira. De costas, para quem não viu. Mulheres-suporte remexem seu bumbum-celebridade com entusiasmo nunca visto. No ponto alto da performance, ela – a bunda – é quem está de frente para a plateia. Olhos e boca, peitos e barriga, em geral importantes elementos na composição dos espetáculos rebolativos, aqui se acanham e cedem lugar à protagonista. Se ainda restava alguma dúvida, o funk nos joga na cara: a bunda é o poder!

“Onde este mundo vai parar?” “Imaginem: chamar a mulher de filé!” “Que horror: usar o corpo desse jeito!” “Só podia ser coisa do funk!” Pois eu acho que Mr. Catra, ao passar o cartão de crédito no bumbum da Mulher Filé, está dando uma imensa contribuição às reflexões sobre o projeto de feminilidade propagado pela mídia contemporânea. Afinal, essa imagem sintetiza, como poucas, o ideal de consumo que sorvemos mensalmente nas páginas das revistas: o corpo turbinado, representação da mulher poderosa, em relação obscena com um cartão de crédito. Nada mais preciso.

Ou existe alguma dúvida de que o corpo saradão, sujeito a toda sorte de intervenções médicas e estéticas, é o que faz a roda da mídia feminina girar? A fronteira que separa o sucesso do fracasso? Por que os closes de pedaços de corpos erotizados, que se pretendem modelos, não nos choca nas páginas das revistas “chiques”? E encarar que o bumbum da Mulher Melancia seja objeto de desejo de tantas jovens nos parece curioso? Da mesma forma, não vejo muita diferença entre chamar a mulher de jaca ou filé e colocar uma modelo dentro de uma forma de brigadeiro para vender xampu. A não ser o fato de as primeiras serem produzidas pelos “excluídos” do funk e as segundas pelos “incluídos” da publicidade, com suas artimanhas discursivas tão mais sofisticadas.

A crueza do funk não deve ser vista como uma aberração, mas como um convite a entrarmos em contato com a realidade de que a construção da subjetividade via corpo sedutor ainda move o feminino no século 21. Não por acaso, no site das três maiores revistas femininas do país, a busca pela palavra-chave “corpo” produz cinco vezes mais ocorrências do que “mente”; 11 vezes mais ocorrências do que “política”; 23 vezes mais ocorrências do que “solidariedade”. Viva o banho de realidade da bunda do funk!

* Denise Gallo, 38, é sócia de Uma a Uma , empresa de inteligência de mercado especializada em comportamento feminino: blog.umaauma.com.br. Seu e-mail: denise@umaauma.com.br

ASSISTENTE DE FOTO FELIPE PORTARO AGRADECIMENTO CABRAL (WWW.CABRALSP.COM.BR) E EXPRESSO BRASIL (11 6724-6854)

fechar