Salvando vidas
Adriana Melo é responsável por uma das mais importantes descobertas recentes da medicina, mas ela não está feliz. Ela está, aliás, bastante desesperada. Depois de revelar ao mundo, em 2015, a relação entre o zika vírus e a má-formação cerebral em crianças, Adriana deu início a uma travessia dolorosa. A questão nem é mais a dificuldade para vencer o preconceito e ser escutada – muito por causa disso o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica demorou para considerar o que Adriana gritava lá de Campina Grande, na Paraíba, e a situação virou emergencial. A questão é que quase nada mudou e aquilo que ela chama de uma epidemia – a má-formação em fetos – só faz aumentar todos os dias. “E se minhas suspeitas estiverem corretas isso pode se espalhar para o Brasil e para o mundo”, diz.
Há quase 20 anos, Adriana, que tem doutorado pela Unicamp, trabalha no setor de medicina fetal do Isea, maternidade pública de Campina Grande. Na mesma cidade, a segunda maior do estado, com 630 mil habitantes na região metropolitana e um importante polo industrial e de ensino superior, tem também uma clínica particular. Aos 45 anos, poderia trabalhar bem menos apenas na clínica e viveria sem tantas preocupações. Mas não é esse o caminho de Adriana. “Não tenho mais vida privada; hoje, em feriado faço necrópsia em crianças. Escolhi ser obstetra porque não gosto de morte, mas não vou me esconder agora”, diz.
Numa tarde quente de agosto, a equipe da Trip acompanhou o trabalho da médica no Isea. Dentro de uma pequena sala, usando um aparelho de ultrassonografia doado por uma multinacional coreana, ela atendia seguidamente dezenas de mulheres grávidas que se amontoavam pelo corredor apertado do hospital. A cada consulta, o pavor de ter que contar à mãe que a criança que ela carregava na barriga tinha algum tipo de má-formação. “Houve um dia em que tive que dar essa notícia a seis mães”, diz. “Não é apenas microcefalia, é todo tipo de má-formação. Tem alguma coisa acontecendo aqui e ninguém parece se importar.”
É preciso saber
Com os olhos marejados e cansada pelas longas horas que trabalha, Adriana diz que gostaria que “o sul”, como ela se refere ao Brasil que São Paulo representa, fosse até Campina Grande ver o que ela está vendo. “Passar 15 dias aqui bastaria. Mas precisa vir e fazer a parte clínica, ficar na linha de frente. Esse vírus tem um poder agressivo tremendo”, diz. “Nas últimas semanas, só aqui, foram 33 diagnósticos: genitália ambígua, pulmão malformado, coluna aberta, falta de dedos, cérebro malformado, visão prejudicada… Não podemos seguir furando essas mulheres sem saber o que queremos delas. Precisamos ser mais sérios em relação ao que está acontecendo aqui e às pesquisas que podem nos ajudar a entender.”
No dia anterior à nossa visita, Adriana tinha saído de sua clínica, onde agora uma vez por semana também atende pacientes da rede pública, aos prantos. “É muito difícil dar a notícia a uma mãe. O juramento médico diz que temos que cuidar quando possível, tratar e amparar sempre. Eu só tenho amparado.” Para ela, tão grave quanto a negligência do Estado é a culpa que querem injetar na mãe. “O sistema diz: ‘Você ficou doente porque não se protegeu da picada do mosquito’. Mas onde elas moram não tem água encanada. São mulheres pobres, muito pobres. Não podem colocar proteção nas janelas, pagar por repelente. E essa mãe sofrida ainda fica com a culpa”, desabafa Adriana. Mesmo assim, essa gente abandonada deixa com ela preciosas lições.
Alessandra e Alexandre são os pais de Samuel, 7 meses. Samuel tem má-formação cerebral e Alessandra, que trabalhava como faxineira, precisou largar o emprego para cuidar do filho. Alexandre ganha R$ 900 por mês como assistente de pedreiro e tem que sustentar sete pessoas. Mês passado, gastaram R$ 400 em remédios para Samuel, um menino risonho e sedutor que foi capaz de emocionar uma jornalista estrangeira que por lá passou e se sentiu compelida a dar R$ 5 mil ao casal. Alessandra aceitou, mas doou o dinheiro para a construção de um instituto que Adriana vai erguer para tratar gratuitamente de crianças como Samuel e amparar famílias como a dela. “A doutora Adriana é minha família também, e essas crianças são guerreiras, não são coitadinhas”, afirma Alessandra. “Com essas mulheres a gente aprende sobre comunidade e gentileza”, diz a médica.
Adriana tem duas filhas e um marido que a apoiam em sua batalha solitária. Ainda assim está faltando chão. “Médico não está imune a sofrimento. Tem sido muito difícil. Muito”, ela diz, com os olhos cheios d’água. Espírita, Adriana não é a favor do aborto, mas completa: “Se a gente diz que não pode abortar, nossa obrigação passa a ser dar as condições para que elas criem seus filhos. Dizer que não pode tirar e ao mesmo tempo abandonar é desumano”. Em 2014, o Brasil teve 147 casos de microcefalia, pouco tempo depois os casos suspeitos passaram de 4 mil e, segundo a Fiocruz, poderão chegar a 16 mil em 2016. A doutora Adriana grita por ajuda.