Prostitutas: empoderadas ou vítimas?

por Letícia González

Com a aproximação da Olimpíada e a questão do turismo sexual essa discussão pega fogo no Rio de Janeiro e nas redes sociais

Tudo começou com o anúncio “Turismo sexual e Olimpíadas: quebrando tabus”, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas e da Marcha das Vadias. A convocação, via Facebook, anunciava uma roda de debate no dia 16 de junho, duas semanas à frente, mas a briga se inflamou ali mesmo e de imediato, na internet. Furiosas com o nome do evento, um grupo de feministas se organizou para criticar a ideia. Em dois dias, uma guerra estava declarada.

De um lado, as prostitutas, idealizadoras da conversa, propondo discutir a realidade dos megaeventos, em que a “vida fácil” não passa de ilusão. Ao invés de lucros altos, as festas esportivas muitas vezes trazem uma violência policial dedicada a “limpar” os centros urbanos de sua presença. Do outro, feministas radicais, também conhecidas como radfem, para quem a venda de sexo é sinônimo de abuso sexual. “Prostituição e pornô são estupros pagos. Regulamentar, como elas defendem, não é dar direitos, e sim transformar o corpo da mulher em objeto”, acredita a gaúcha Fabiana Baldo, jornalista e dona da página RadFem Resiste, que se engajou na discussão. O grupo milita pelo fim de toda oferta de sexo, mesmo a autônoma praticada por adultos.

A prostituta Indianara Siqueira, 45 anos, travesti e presidente do Coletivo Transrevolução, foi um dos primeiros alvos. “Me chamaram de cafetina e ameaçaram me reportar à polícia. Dezenas de vezes, todos os dias desde que anunciamos o evento”, lembra. “Eu deveria ser presa, escreviam elas.” Quando colegas e ativistas entraram em defesa, passaram a ser criticadas em suas páginas pessoais também. Como resultado, quatro foram banidas da rede social após denúncias em massa. Uma delas foi a prostituta Monique Prada. “Fiz um comentário sobre os projetos de lei que falam da profissão. Meia hora depois minha página começou a sofrer denúncias e saiu do ar”, lembra. Segundo a estudante de gestão de recursos humanos Juliana Lima, 25 anos, do grupo das feministas radicais, a ação foi espontânea. “Não foi organizado. Uma mostra para outra e a coisa viraliza. A internet tem essa força”, conclui. Como outras militantes, ela acredita que “não se pode colocar um preço para o consentimento no sexo”.

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Nunca vi uma truculência tão grande. É assustador”, define o antropólogo Thaddeus Blanchette, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estudioso da prostituição há 12 anos. “Quando as radfem se mobilizam para bloquear o perfil de alguém, estão privando essas mulheres de toda sua rede de apoio, todos os contatos que a deixam mais segura. Dizem lutar contra a vulnerabilidade das prostitutas, mas a reforçam. Cadê a sororidade?” Ele também entrou no debate e afirma ter “perdido a conta” depois da trigésima mulher a insultá-lo em menos de 12 horas. “Macho explorador e proxeneta, é o que sou para elas. Estão até hoje me xingando.”

A advogada Eloisa Samy rebate a ideia: “Dizer a verdade não é xingar”. Carioca e ativista de direitos humanos, ganhou visibilidade em 2014, quando pediu asilo político ao Uruguai depois de ser acusada de comandar protestos violentos. Ela é também uma radical. Isso inclui defender o fim do sexo pago e não aceitar transexuais e travestis no movimento feminista. “Entendemos que o transexualismo não passa de performance.”

A posição dificulta o diálogo com as prostitutas organizadas, que incluem trans como a pré-candidata a vereadora de Campinas pelo PSOL Amara Moira. Seu perfil pessoal no Facebook também foi bloqueado após denúncias. “A mim, elas rotulam: macho de saia, fetichizador da opressão feminina se prostituindo por prazer. São incapazes de aceitar a profissão como escolha.” Após notificação, ela precisou comprovar seu nome social para reaver seu perfil e defender suas ideias. “Quando elas falam que tudo é estupro, estão banalizando a coisa de forma perigosa. Se é assim, como poderei ir à polícia em caso de violência real?”

Os dois grupos se acusam de não saber ouvir. Depois de dias de críticas, as radicais que integrariam a mesa no fatídico evento foram desconvidadas pela organização. “Os ataques eram atrozes e foram piorando. Elas diziam que iriam invadir 'de bonde' o local. A ideia inicial era ter um diálogo, mas a violência das ameaças nos fez repensar. Não podíamos permitir que chegassem para oprimir”, explica Indianara. As radfem criaram, então, um evento paralelo para discutir o tema entre elas. Ambos foram transmitidos via streaming e disponilizados na internet.

“Não concordo com feminismo de mulheres agredindo mulheres. Nesse caso específico, acredito que o protagonismo é das prostitutas”
Djamila Ribeiro

O debate está longe de terminar. A feminista Djamila Ribeiro, atual secretária adjunta de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, lamenta tanta agressividade. “Não concordo com feminismo de mulheres agredindo mulheres. Nesse caso específico, acredito que o protagonismo é das prostitutas. As feministas radicais não vivem essa realidade e precisam se propor a ouvir, fora do purismo teórico. Como mulher negra, entendo o que é alguém de fora querer te salvar e dizer o que é melhor. Recuso esse papel e considero violência tirarem a fala de quem vivem sua vida.”

As páginas bloqueadas pelo Facebook começaram a voltar ao uso nesta semana. O site afirma que os nomes sociais das transsexuais são aceitos mediante combinação de até três documentos para comprovar a identidade. Quanto às acusações de infração das regras por parte das prostitutas, o Facebook afirma através de comunicado enviado à Tpm: “Quando reportados, os conteúdos são analisados por um time dedicado que avalia denúncias 24 horas por dia, 7 dias por semana, em mais de 20 idiomas e em tempo reduzido de resposta". A ideia da empresa é que essas avaliações sejam feitas de forma cada vez mais dinâmica para que quem é denunciado de forma indevida não fique muito tempo sem sua página. Na plataforma, as trabalhadoras do sexo utilizam seus links para falar de direitos mais do que para contatos de trabalho – para isso usam o Twitter e a rua. “Os clientes não têm tesão pelo ativismo”, garante Indianara. 

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Imagem principal: cartaz do evento que disparou a discussão

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