A psicodelia parece estar mais perto de nos ajudar a curar dependências químicas e problemas psíquicos do que de criá-los. Pesquisas sobre o tema vem sendo retomadas. Será esse o início da revolução?
Desde o ano passado, a cidade de Goiânia é palco de um ensaio clínico que coloca o Brasil entre os poucos países que estudam o uso terapêutico do MDMA, princípio ativo da droga popularmente conhecida como ecstasy. A pesquisa segue o protocolo de estudos internacionais que podem, já em 2021, transformar a substância num medicamento aprovado para o tratamento de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), condição grave que afeta frequentemente vítimas de traumas físicos ou psicológicos. Os resultados das primeiras fases de estudo são empolgantes. E, ao contrário do que pode parecer, a coisa é séria.
Os pacientes do estudo passam por uma triagem rigorosa. Além do diagnóstico de estresse pós-traumático, eles precisam fazer dezenas de exames e atender a cerca de 30 requisitos clínicos. Não podem, por exemplo, ter usado MDMA mais de dez vezes na vida e nenhuma vez nos últimos seis meses. E o tratamento não significa simplesmente tomar o remédio. “Não é como antibiótico, que a pessoa toma por uns dias e cura a infecção”, diz o neurocientista e líder do estudo, Eduardo Schenberg, do Instituto Plantando Consciência. “Se as doses não forem acompanhadas de psicoterapia, ele dificilmente resolverá o problema. O papel da substância é colocar o paciente num estado psicológico excelente para a terapia.”
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Os pacientes do estudo fazem um total de três sessões sob efeito de MDMA. Antes e depois de cada uma delas, eles também passam por três consultas normais, sempre com dois terapeutas, um homem e uma mulher. As sessões com a droga começam de manhã, depois de exames e uma análise clínica de última hora. O paciente toma 75 miligramas da substância – dose abaixo da média – e pode decidir se quer mais 50 miligramas, 50 minutos depois. Os efeitos duram de seis a oito horas. Durante todo esse tempo, ele permanece numa sala com um clima especialmente preparado: luz baixa, música instrumental relaxante, um sofá confortável. Os terapeutas só atuam conforme a demanda do paciente. De meia em meia hora, eles medem a pressão arterial e oferecem líquidos para reidratar. Nas primeiras três horas, os pacientes costumam ficar quietos, introspectivos. Depois, geralmente caem no choro e interagem com a dupla.
“Essas pessoas têm muita dificuldade de falar sobre o trauma”, explica Schenberg. “Algumas entram em desespero apenas de pensar em abordar o assunto, ainda na triagem.” O papel da droga é aumentar a empatia pelos terapeutas e abrandar o desconforto causado pelas lembranças traumáticas, permitindo que eles se abram com mais facilidade e menos sofrimento. Ao fim da sessão, os terapeutas vão para casa e o paciente dorme na clínica, para o caso de qualquer emergência. No dia seguinte, ele tem uma sessão “careta” para discutir os insights de sua “viagem”. Uma das vantagens do MDMA é que ele não afeta a memória do paciente. “Ele lembra de tudo com clareza, consegue relatar com precisão a origem do trauma e o que aconteceu em cada sessão”, diz Schenberg. Além disso, o paciente não precisa ficar usando a substância depois do tratamento – são três doses durante as sessões e acabou.
Tarja psicodélica
Repare que não é algo para se fazer sozinho – e muito menos com qualquer ecstasy, cujo conteúdo real nem se conhece ao certo. E a interrupção do tratamento pode ser pior do que não fazê-lo, porque durante o processo o paciente encara de perto traumas profundos. Se isso não for feito com a assistência de profissionais treinados, o quadro geral pode ficar ainda pior. Por isso, toda a equipe envolvida no estudo passou por sessões semelhantes nos EUA como parte da preparação para o estudo.
Feita com os devidos cuidados, a terapia psicodélica com MDMA tem produzido resultados inéditos no tratamento do estresse pós-traumático. Em 2017, os Estados Unidos autorizaram os ensaios clínicos de fase 3, necessários para aprovar o uso terapêutico da droga — essa é a última etapa do processo de registro de um medicamento. Na fase anterior, de testes de segurança, 56% das pessoas que participaram do estudo não apresentavam mais o diagnóstico do transtorno dois meses depois da pesquisa.
Depois de um ano, 68% estavam livres da doença. Um resultado revolucionário, considerando que os participantes do estudo conviviam com o problema há 18 anos, em média, depois de tentar resolvê-lo com diversas abordagens farmacológicas e terapêuticas. A fase 3 repete os testes com outros 200 pacientes, ao menos, e grupos de controle, consumindo placebo. Se os resultados positivos se repetirem, estima-se que a terapia assistida com MDMA seja aprovada até 2021. O estudo de Schenberg está na fase-piloto. Se conseguir um investimento de cerca de R$ 2 milhões até o ano que vem, o Brasil pode seguir o cronograma da fase 3 previsto para a Europa e ter o tratamento aprovado em prazo semelhante.
Atualmente, o MDMA é a substância psicodélica mais próxima de uma aprovação formal. Mas não é a única com resultados promissores nem a primeira a ser estudada com fins medicinais. O LSD, a psilocibina (dos cogumelos alucinógenos), a ibogaína e o DMT (da ayahuasca) têm sido estudados para o tratamento de diversas condições, como depressão, TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) e dependência química, e para elucidar importantes mecanismos de funcionamento de nosso cérebro.
Essa onda de interesse medicinal por essas substâncias não tem nada de novo. Entre as décadas de 50 e 60, apenas nos EUA foram produzidos mais de cem estudos com LSD para o tratamento dessas mesmas doenças. Os resultados eram, em sua maioria, extremamente positivos. O problema é que a maioria deles era feita com poucos pacientes, sem grupos de controle tomando placebo e outros padrões metodológicos. E a ciência estava muito longe de conseguir explicar os mecanismos de ação neurológica dessas substâncias. Antes que as pesquisas pudessem preencher essas lacunas, foram solapadas por uma interferência nada científica: a guerra às drogas.
Em 1968, o governo americano, principal financiador de pesquisas sobre os psicodélicos, estabeleceu penas para a posse e venda de LSD. E em 1970 essas drogas foram enquadradas pela lei americana como substâncias de “classe 1”, que causam dependência e não têm qualquer utilidade médica — ao contrário do que as pesquisas da época apontavam. Com a nova regulação, todas as verbas federais para estudos sobre o potencial terapêutico de substâncias psicodélicas foram cortadas.
As pesquisas sobre o tema só voltaram a surgir em meados dos anos 2000, especialmente depois da publicação de um artigo sobre o potencial da psilocibina por Roland Griffiths, da Universidade John Hopkins (Maryland). Mais importante do que o assunto era o pedigree do artigo: publicado por um neurocientista e psiquiatra reconhecido como um dos maiores especialistas em drogas do mundo e vindo de uma das mais importantes escolas de medicina dos Estados Unidos, ele passou uma mensagem muito importante: a ciência psicodélica não é coisa de uns doidões hippies. E portanto merece respeito e investimento.
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Outro pioneiro dessa retomada é o neurocientista Rick Doblin, fundador da Maps, sigla em inglês de Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos. A instituição, responsável pelo estudo de fase 3, quer tentar aprovar o MDMA nos EUA. Foi fundada em 1985 e, por anos, seu trabalho se resumia a ações educativas. Até que em 2000 eles aprovaram na Espanha seu primeiro estudo clínico, que acabou vetado pelo governo local, mas Doblin conseguiu a autorização para outros. O maior deles começou em 2010, com 24 veteranos do exército americano – nenhum dos estudos recebe verbas do governo.
“Somos financiados exclusivamente por doações de pessoas físicas e de empresas”, diz Brad Burge, diretor de comunicação da associação, que está prestes a completar o orçamento de US$ 25 milhões necessários para o estudo de fase 3. “Faltam US$ 400 mil. Por acaso você tem esse dinheiro para nos doar?” Não temos, mas ele garante que não vai ser difícil completar a verba. “As coisas estão mudando. Nunca se produziu tanta ciência sobre psicodélicos quanto agora”, celebra Burge.
E o Brasil tem um papel importante nessa retomada, com destaque nessa linha de pesquisa, ao lado dos EUA, do Reino Unido e da Suíça.
No ano passado, o Psychedelic Science 2017, congresso organizado pela Maps, em Oakland (Califórnia), foi uma boa mostra do crescimento do interesse pela área e da relevância dos nossos pesquisadores. Foram mais de 3 mil inscritos – dez vezes mais que a edição anterior –, incluindo representantes de bancos de investimento e da indústria farmacêutica . “E o Brasil sem dúvida está adquirindo um protagonismo internacional neste campo. A comitiva brasileira foi bastante significativa na conferência”, diz a antropóloga Bia Labate, uma pioneira dos estudos de ayahuasca, iniciados por ela ainda na década de 90.
Longe da farmácia
Atualmente, há estudos no país com substâncias psicodélicas em curso em diversos centros de pesquisa importantes, como a Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Estadual de Campinas (SP), a Universidade de Brasília, a USP de Ribeirão Preto e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), além do estudo do Instituto Plantando Consciência.
Um dos principais estudos realizados recentemente por aqui foi feito pelo pesquisador Draulio Araujo, do Instituto do Cérebro da UFRN. Ele e sua equipe avaliaram a eficácia da ayahuasca para o tratamento de depressão refratária (que não responde a medicamentos existentes). O nível de depressão dos pacientes foi medido com escalas usadas em psiquiatria antes do estudo e em intervalos de até 21 dias depois. O consumo de uma única dose de cerca de 100 mililitros da bebida produziu reduções significativas e persistentes dos sintomas da doença, indicando que ela tem um potencial antidepressivo que merece ser melhor investigado.
“Não vejo essa substância indo para prateleiras de farmácia, mas sendo usada no futuro como parte de um procedimento, como um anestésico é empregado em uma cirurgia”, diz Araujo. “Porque não é uma experiência terapêutica trivial e precisa ser feita num contexto cheio de cuidados”, diz o cientista, observando que a ayahuasca – assim como psicodélicos, em geral – é contraindicada para pessoas com histórico familiar de esquizofrenia ou transtorno bipolar, por exemplo.
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Para o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN e coautor do estudo, a ayahuasca e outras drogas psicodélicas também tendem a enfrentar resistências. “A indústria de antidepressivos, por exemplo, já deveria ter acabado”, diz Ribeiro, explicando que estudos recentes mostram que o efeito dos antidepressivos é pequeno e só dura dois meses, em média, com resultados insatisfatórios a longo prazo. Os psiquiatras mudam a dose, mudam o remédio, mas muitos pacientes seguem tomando-os por anos, sem benefícios, e combinados com tranquilizantes.
“É uma tragédia. A ciência sabe disso, mas a clínica está mais acoplada à indústria. Imagina se de repente aparece um remédio que você toma duas vezes por mês ou três vezes na vida e resolve seu problema? Seria uma bomba”, diz Ribeiro. Qual seria o resultado dessa bomba psicodélica? “Um mundo com mais gente se tratando de maneira adequada, com mais saúde e felicidade.”
Esqueça o cafezinho
Enquanto cientistas tentam domar os poderes psicodélicos para usos medicinais variados, no Vale do Silício a moda é pegar uma onda lisérgica em busca de mais prazer e criatividade no trabalho. A ideia é tomar microdoses de LSD – cerca de um décimo da normal, que varia de 100 a 150 microgramas. Essa quantidade não causa os efeitos normais da droga, mas permitiriam ao cérebro levar o dia, digamos, de um jeito diferente. Segundo os defensores da prática, a dosagem aumenta o foco, a clareza emocional e a criatividade. O fato, porém, é que nenhum cientista se prontificou ainda a testar esse suposto benefício do LSD. Talvez estejam faltando algumas microdoses nos laboratórios.
Mapa cerebral
Cada lado (ou “hemisfério”) do nosso cérebro contém grandes lobos (pronuncia-se lóbos), que podem ser divididos em diversas regiões. Didaticamente, podemos associar cada um deles a algumas funções principais. Por exemplo, o lobo frontal é importante para funções cognitivas e controle de movimento ou atividade voluntária; o parietal processa informações sobre temperatura, sabor, toque e movimento; o occipital é o principal responsável pela visão, muito ativo nas experiências psicodélicas; e o temporal processa memórias, integrando-as às sensações de sabor, som, visão e tato. Além desses quatro grandes lobos, há ainda o insular, bastante importante no processamento de sinais corporais, integrando sensações viscerais, de dor e temperatura. Fora essas macrorregiões corticais (que estão na “superfície” do cérebro), há diversas regiões subcorticais não ilustradas na figura, mas também relevantes para as experiências de estados alterados de consciência.
Caiu na rede
A “rede neural padrão” (em inglês, default mode network) é composta por diferentes áreas espalhadas pelo cérebro, que, em condições normais, funcionam de maneira integrada e são responsáveis pela percepção que temos de nós mesmos – nosso pensamento autorreferenciado e a autopercepção no mundo. Essas regiões são banhadas pelo neurotransmissor serotonina, cujas substâncias psicodélicas (LSD, psilocibina/cogumelo, DMT/ayahuasca) mimetizam seus efeitos. Diversos achados indicam que os psicodélicos agem justamente alterando o funcionamento dessa rede, diminuindo a conexão entre suas áreas centrais, o que parece induzir às sensações de dissolução do "eu", tão comum nas experiências com essas substâncias, e outras atividades, tais como a prática da meditação e o envolvimento em rituais de grupo.
*Para a elaboração dos gráficos que ilustram esta matéria contamos com a colaboração dos cientistas Draulio B. de Araujo, Patrícia Bado, Theo Marins, Tiago Bortolini e Stevens Rehen
Créditos
Imagem principal: Vapor 324