A história dos negros no bairro da Liberdade
Movimento luta para construção de memorial em terreno que foi descoberto ossada e onde seria construído um centro comercial
No dia 20 de setembro de 1821 o soldado Francisco José das Chagas seria enforcado no Largo da Forca, onde pessoas que tinham cometido crimes eram condenadas à morte no local que hoje fica a Praça da Liberdade, no bairro de mesmo nome em São Paulo. O crime de Chaguinhas, como o soldado ficou conhecido, tinha sido o de liderar uma revolta em Santos contra o não recebimento dos salários. Ele era um homem negro que integrava o serviço militar, assim como outros alforriados no século 19. O que não se esperava era que a corda em que seria enforcado arrebentaria três vezes, fazendo com que a população que assistia ao ato começasse a gritar: “liberdade”.
Chaguinhas não foi perdoado e foi morto a pauladas. Mas ganhou fama de santo popular e o corpo foi levado para a Capela dos Aflitos, erguida em 1779, que pertencia ao Cemitério dos Aflitos, onde eram enterrados negros, indígenas e os enforcados. No local, em que foi enforcado, as pessoas começaram a acender velas e surgiu a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados em 1853. Já a Capela dos Aflitos passou a receber, desde então, devotos que iam pedir milagres, colocando papéis em uma porta de madeira e batendo nela três vezes – número de arrebentamentos da corda.
Apesar de essa história ser pouco conhecida, vem daí o nome do bairro. Mais recentemente, diversos grupos começam a contar essa narrativa e há um projeto de construir um memorial que conte sobre a presença dos negros na Liberdade. O local destinado a reavivar essa história é no terreno em que estava sendo construído um centro comercial, na Rua Galvão Bueno, 48, nos fundos da capela, e onde foram encontrados nove esqueletos em dezembro de 2018. Desde então, a obra está parada e um projeto de lei tenta transformar a área como de interesse público, para que haja desapropriação e construção do espaço.
O projeto do vereador Reis (PT) foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e deve ser votado no plenário até o fim do ano. O Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Prefeitura de São Paulo, informou durante o evento “Patrimônio em debate” que tem intenção de desapropriar a área e restaurar a capela, além de criar o Centro de Referência da Memória Negra Paulistana, como proposto em audiência pública na Câmara Municipal em 17 de dezembro de 2018. Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura informa que a resolução 25/2018 estabelece a proteção arqueológica no entorno da Capela dos Aflitos.
“As ossadas chamaram a atenção dos grupos de cultura negra que atuam na região e reivindicam a presença de outras narrativas no bairro da Liberdade. Diante dos achados arqueológicos e da reivindicação, o DPH apoia e estuda a implantação do centro de memória”, informa o órgão.
Além de abrigar a forca e o Cemitério dos Aflitos, a Liberdade era palco, nos séculos 18 e 19, do Pelourinho, poste em que os escravizados eram castigados, além de receber as primeiras residências das pessoas negras alforriadas. Só no começo do século 20 começaria a ser ocupado pelos japoneses, recém-chegados em São Paulo. Esse foi um dos processos de gentrificação da cidade, que expulsou os negros que moravam naquela que foi uma das primeiras periferias paulistanas. Na década de 70, as luminárias japonesas passaram a adornar o bairro, que foi atraindo cada vez mais comércios, turismo e eventos ligados à cultura nipônica. De 2010 para cá, as migrações chinesa e coreana cresceram no bairro.
Mas, em julho de 2018, a Prefeitura de São Paulo mudou o nome da estação de metrô e da praça para Japão-Liberdade, numa ação patrocinada pela loja Ikesaki. Até hoje, Chaguinhas não tem um busto ou uma placa contando essa história na praça principal do bairro. Durante a Jornada do Patrimônio 2019, evento da Prefeitura de São Paulo de valorização da memória da cidade, uma placa foi colocada na saída do metrô Liberdade sinalizando que ali funcionava o Largo da Forca. E, neste 20 de setembro, o Cemitério dos Aflitos passa a ser sinalizado em frente à capela de mesmo nome.
Memorial
O escritor e jornalista Abílio Ferreira, que é articulador do movimento de preservação do Sítio Arqueológico dos Aflitos, lembra que a comunidade negra está em uma disputa que começa com a mudança do nome da estação do metrô. “Há uma tentativa de manter a hegemonia japonesa no bairro da Liberdade”, diz, ressaltando a importância de ter um memorial que conte sobre a história negra no local.
O centro de memória seria na área em que há construção de uma galeria comercial, terreno que pertence ao empresário chinês Ko Chia Chi. No local, havia uma outra construção que foi demolida irregularmente, uma vez que tinha apenas um alvará para a reforma do prédio. Houve paralisação das obras e foram realizadas pesquisas arqueológicas a pedido do Centro de Arqueologia do DPH. A supervisora do órgão, Paula Nishida, lembra que o terreno foi registrado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o DPH apresentou um parecer para a desapropriação da área.
Paula, que é neta de japoneses, afirma que o sítio potencializa as outras narrativas do bairro que estavam enterradas e afirma que os projetos urbanísticos de revitalização do Beco dos Aflitos e do memorial ainda não têm verbas definidas pela prefeitura. “Nós contribuímos para o estudo de tombamento. É preciso definir o que será feito depois”, afirma. Ela lembra que o projeto de construir um memorial da história negra não é estimular conflitos, como houve com a mudança do nome da estação Liberdade, mas “mediar para que todos os atores tenham o mesmo espaço na história do bairro”, afirma.
O advogado Renato Igarachi, que é nissei (filho de japoneses) e fez parte de instituições nipônicas, foi uma das vozes da comunidade contra a mudança de nome da estação de metrô. Em 26 de julho de 2018, ele fez um post no Facebook que viralizou afirmando que não concordava com a delimitação de território por critério étnico. “Ali vivem outros povos. Não apenas japoneses, mas também coreanos, chineses e migrantes de origem africana. A mudança de nome consolida esse apagamento histórico”. Para ele, a comunidade japonesa precisa ouvir sobre o que o movimento negro tem a dizer sobre a história do bairro. A Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa informou que desconhecia o projeto de memorial da história negra, mas não quis comentar sobre a proposta. Já a Associação Cultural e Assistencial da Liberdade (ACAL) “Bunka Fukushi Kyôkai” não respondeu às perguntas da reportagem.
A artesã Eliz Alves, representante da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), afirma que desde 2018 o coletivo do qual faz parte, integrado por devotos e frequentadores da capela, atua na tentativa de restauro do local, que é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephat). “A capela faz parte da história da cidade. Era um local de refúgio para as classes menos privilegiadas”, afirma.
Chaguinhas não é reconhecido oficialmente como santo pela Igreja Católica, mas têm vários milagres atribuídos a ele e há faixas de agradecimento na capela. “O primeiro milagre foi com ele mesmo, com as cordas que iriam enforcá-lo arrebentando três vezes”, considera Eliz Alves. E, apesar da história dizer que ele era negro, Chaguinhas é retratado com a pele e olhos claros, em um quadro no interior da capela, que é administrada pela Mitra Arquidiocesana de São Paulo. “É apenas uma capela, sem padre fixo, batismo ou casamento. As missas são realizadas pelo padre da Igreja São Gonçalo ou por ministros”, afirma a representante da Unamca.
Eliz diz que o diálogo junto a Mitra para o restauro da igreja é difícil – o órgão da igreja católica não respondeu à solicitação de entrevista. A capela construída originalmente em taipa de pilão passou por um incêndio em 1996 e foi pintada na época, ganhando novo forro – diferente do original – além de telhado mais moderno.
Ela lembra que o quadrilátero entre as ruas Galvão Bueno e Rua da Glória integravam o cemitério. “Quando o Cemitério dos Aflitos foi desativado, os corpos foram transferidos para o Cemitério da Consolação, mas nas escavações para o metrô Liberdade foram achadas ossadas e agora novamente”.
Além do restauro da igreja, o grupo defende que o Beco dos Aflitos tenha acesso restrito de carros. “Há cargas e descargas o tempo todo, inclusive no horário de missa. Também queremos que sejam retiradas as luminárias japonesas dessa rua. Não tem nada a ver com a história”, enfatiza. Para homenagear Chaguinhas, o grupo organizou, no dia 20 de setembro, um cortejo que começou na Igreja da Boa Morte e seguiu até a Capela dos Aflitos.
Resgate
Há ainda movimentos independentes de tentar resgatar essa narrativa. A arquiteta e quadrinista Marilia Marz é o nome por trás do livro “Indivisível”, que conta a história de Chaguinhas em quadrinhos. “Ele é um mito. Há uma versão de que ele libertava escravos que estavam confinados na Capela dos Aflitos e iam ser enforcados no largo da forca”, afirma, lembrando que esse é um dos apagamentos da história de São Paulo.
Já o historiador Philippe Arthur, do coletivo ‘Passeando pelas Ruas’, organizou durante a Jornada do Patrimônio, um passeio debatendo as memórias em disputa entre japoneses e negros no bairro. “A ideia era tentar entender como a narrativa do grupo de migrantes japoneses se sobressaiu no imaginário popular deixando de lado a presença negra naquele território e de como o poder econômico foi determinante nisso”, resume.