Você depende deste cara
Nascido e criado em um ferro-velho, Cleiton trabalha para que São Paulo não se afogue em lixo, enquanto ensina ao resto do mundo a reciclar
O barulho embaixo do Viaduto Leste-Oeste, que corta o bairro do Glicério, no centro de São Paulo, é estrondoso. E quase ininterrupto. “É uma das principais vias da capital, liga o norte ao sul, o leste ao oeste. Se ela para, a cidade para também”, diz Cleiton Emboava, 35 anos, olhando para a estrutura de concreto que esconde o céu sobre sua cabeça. O movimento na parte de baixo, porém, não fica muito atrás: pelo portão de ferro verde, Kombis e carrocerias adaptadas surgem o tempo todo, chegando da rua abarrotadas de materiais recicláveis; é a primeira etapa de uma cadeia produtiva que envolve o trabalho das pessoas que fazem parte da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Nova Glicério, da qual Cleiton é presidente e faz questão de apresentar.
O passo seguinte, realizado em um box individual ou familiar, se baseia no trabalho manual de triagem e classificação dos resíduos coletados, ou seja, separar o que é papelão, garrafa PET, copo de plástico, sacola plástica colorida e branca, itens de alumínio e cobre, revistas, jornais, e descartar o que não é reciclável (borra de café, isopor, papel higiênico etc.). Na sequência, o material é ensacado e pesado em uma balança – há uma comanda para cada catador e carroceiro, tudo o que pesam vai direto para o seu nome.
Depois de ser colocado em uma caçamba coletiva destinada ao respectivo produto, o material é compactado por um prensa da qual sai em formato de fardo, pronto para a venda, feita em sua maioria para indústrias e revendedores. Em contas no banco, os associados recebem o valor proporcional ao que cada um coletou na semana – em média tiram em torno de R$ 1 mil por mês. “A reciclagem é uma abertura socioeconômica para o indivíduo que está em vulnerabilidade social. E apesar de fazer um trabalho que beneficia a sociedade toda, ele não recebe nada da prefeitura ou de empresas: logística, segurança, gasolina, almoço, possíveis problemas de saúde, fica tudo por conta de cada catador”, conta Cleiton.
As mulheres são responsáveis por grande parte do processo que é feito internamente e, segundo ele, representam cerca de 70% do total de catadores em atividade dentro de associações e cooperativas brasileiras, desempenhando também funções administrativas. “A mulher pode não aguentar puxar uma carroça pesada, só que ela tem cérebro para desenvolver alguma coisa que vai carregar o dobro daquilo que o homem carrega. Sem elas, a reciclagem não existe”, diz. “Até os anos 70, esse era um trabalho predominantemente masculino. Com o tempo, e com a diminuição do estigma social de que as mulheres não podiam trabalhar, elas foram tomando seu espaço dentro da sociedade, e da mesma forma que chegamos ao ponto de ter uma presidente mulher, temos muitas delas em situações de decadência. A reciclagem as adotou”, explica Cleiton.
Com 102 associados, e na ativa desde 1º de julho de 2013, a Nova Glicério retira das ruas, em média, mil toneladas de material por mês. Somado à labuta de outros 109 grupos de catadores de São Paulo (entre associações, cooperativas e grupos informais) e dos autônomos, que são 80%, respondem por mais de 90% do que é reciclado na capital, de acordo com números do Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis (MNCR). A cidade pararia se o trabalho dessas cerca de 20 mil pessoas envolvidas fosse interrompido? Cleiton assente com a cabeça. “Ficaria inviável em semanas.”
LIXO EXTRAORDINÁRIO
Filho e neto de carroceiros, Cleiton nasceu e foi criado em Guaianases, distrito da zona leste paulistana. Com a mãe trabalhando como vendedora de loja, desde muito pequeno acompanhou o pai, seu Arivaldo, 56, nas andanças entre a região de casa e o Glicério. “A primeira lembrança que tenho desse universo é de subir em caçambas que ficavam em um ferro-velho e pular no monte de papelão e de papel. Aquilo era a minha piscina, meu pula-pula”, conta. Junto ao ferro e ao metal que viravam sucata, esses materiais, se recorda, eram basicamente os únicos resíduos recicláveis, numa época em que havia poucos tipos de embalagem no mercado; diferente de hoje.
“Considerando desde a década de 60, quando meu avô começou a reciclar, a demanda de materiais passíveis de reciclagem foi aumentando ao longo dos anos embalada pelo crescimento da cidade, que se deu de forma acelerada e sem planejamento, e também pela evolução tecnológica, fatores que impactam muito o meio ambiente”, diz. “Aos 13 anos, eu olhava o celular Startac na mão dos outros e sabia que algum dia ele não valeria nada.” Ainda nessa idade, se casou; aos 17, teve uma filha e se tornou avô aos 33.
Nesse meio tempo, trabalhou como garçom em um buffet, se aventurou em uma empresa de segurança, fez bicos na construção civil e foi e voltou em períodos de trabalho como catador. Até que, em 2013, decidiu retornar de vez para a área de reciclagem, mas com a intenção de fazer algo além para a categoria. Passou um tempo coletando, reciclando e se informando na Cooper Glicério, cooperativa vizinha, que já era mais estruturada, onde o pai e uma das irmãs trabalham, e em 2017 veio para a Nova Glicério, então mais carente de recursos e ideias.
Logo no primeiro ano de sua gestão no espaço construído em 2009, com verba liberada pelo governo federal, à beira da Avenida do Estado e ao lado da sede mundial da Igreja Pentecostal Deus é Amor, peitou representantes da Prefeitura Regional da Sé e da Tropa de Choque, que bateram à porta com uma ordem de despejo. A medida, ironicamente, era parte do projeto Cidade Limpa e exigia reintegração de posse. “Botei os associados para dentro, fechei o portão e falei que ninguém ia entrar. Olhei para o tenente e disse: ‘Você está com essa farda porque conhece a lei. E sabe que está errado’.”
Meses depois, em abril de 2018, Cleiton embarcou para uma viagem de uma semana ao Quênia e à Tanzânia, na África, após ser escolhido por 23 cooperativas de São Paulo para representá-las no exterior. A oportunidade surgiu por meio do projeto Mapping Waste Governance (“mapeando governanças de resíduos”), que busca mapear e colaborar com iniciativas, arranjos e políticas de gerenciamento de resíduos feitas por comunidades, promovendo, também, a ponte entre os catadores e os governos locais. A empreitada abrange profissionais do Canadá, Argentina, Brasil, Nicarágua, Quênia e Tanzânia e é liderada pela professora de geografia Jutta Gutberlet, da Universidade de Victoria, no Canadá.
LEIA TAMBÉM: Dois australianos inventaram um forma de recolher o lixo que infesta os oceanos
“Uma das inovações apresentadas pelo Cleiton foi um biodigestor feito com materiais recicláveis que nos permitiu trabalhar com resíduos orgânicos, normalmente descartados em aterros. Ele ensinou os locais a construir o equipamento e colocá-lo em prática, transformando material orgânico [restos de comida e excremento bovino] em gás a ser usado para cozinhar”, conta Jutta. A seu ver, a importância de Cleiton e da Nova Glicério vai além de recuperar materiais e inseri-los de volta na economia circular, transformando o que é considerado lixo em mercadoria novamente. “A cooperativa efetua um serviço social de dar apoio a essas pessoas e capacitá-las para outras funções, como a de educador ambiental. Alguns catadores dão palestras em escolas e também ensinam pequenos empresários a como melhor separar o material que geram”, diz.
A BASE VEM FORTE
Em maio, como integrante do projeto canadense, Cleiton fez outra incursão ao continente africano, passando por Kisumu e Nairóbi, no Quênia, e Dar es Salaam e Zanzibar, na Tanzânia. Dessa vez, foi ele que importou ideias: uma delas foi descobrir novas aplicações para o vidro descartado, o que colocará em prática no laboratório que está montando em um contêiner doado por uma empresa, onde também criará produtos a partir de lixo eletrônico; a outra é uma mistura do desejo que crianças africanas manifestaram – de terem coisas como um parquinho e um banheiro melhor – com a habilidade dele de criar novos objetos com materiais recicláveis. A ideia é levar para as crianças o resultado do trabalho.
“É muito difícil reeducar um adulto, principalmente sobre a questão ambiental e em uma cidade louca, onde ele vive com a cabeça voltada para os seus problemas. Por isso, as crianças são o caminho: educando-as, elas passam a ensinar os adultos”, reflete Cleiton. “Em vez de ir de porta a porta em uma comunidade que tem 10 mil habitantes, prefiro ir à escola, onde estão os filhos dessa gente. Se ela tem 2 mil alunos, nosso trabalho chega a 2 mil casas de uma vez. Basta oferecer uma excursão ao Hopi Hari a quem trouxer mais resíduos de casa toda sexta-feira durante um mês”, diz. É a tal da sabedoria popular. Ou das ruas.
do it yourself
Aplicativo conecta catadores e geradores de lixo, e dobra a renda de quem faz o trabalho duro
É difícil encontrar uma Kombi ou carroça na Nova Glicério que não tenha o adesivo do Cataki. Lançado em 2017, o premiado app conecta geradores de lixo e catadores. Basta o profissional da coleta se cadastrar, indicar a região em que trabalha e o tipo de material que recolhe. Por meio de geolocalização, a ferramenta mostra quais catadores estão por perto e, então, é só fazer uma ligação para combinar o encontro e o preço do serviço. “Temos retornos de catadores que dobraram a renda, e outros contam que puderam começar a almoçar, pois antes ganhavam só com a venda dos materiais e agora também recebem pelo serviço prestado”, conta o grafiteiro e ativista Mundano, 33, criador do app. “Os catadores são cada vez mais essenciais, e a maior luta é contra o sistema vigente, que enterra por ano, em aterros, mais de R$ 8 bilhões em materiais recicláveis só no Brasil”, protesta. O app tem mais de 1,8 mil catadores cadastrados. Uma nova versão, que será lançada em dezembro, vai conectar catadores a empresas e agentes do poder público.
Créditos
Imagem principal: Filipe Redondo