Caramuru: ”Para quase todo mundo, luz é sinônimo de sabedoria, felicidade, bondade”

Para quase todo mundo, luz é sinônimo de sabedoria, felicidade, bondade; mas o argumento de “tirar alguém das trevas” já foi muito utilizado para conquistar, destruir e escravizar

Luz e treva, palavras irmãs e opostas, mantêm entre si uma tensão que está entre as mais ancestrais e poderosas de nosso imaginário, provavelmente porque o Homo sapiens é um animal essencialmente diurno (desculpem, baladeiros) e com péssima visão noturna. De fato, numerosas culturas têm e tiveram, na luz, um mito fundador. Exemplos? Na história da caverna, uma das mais conhecidas de Platão (e simplificando ao extremo a coisa toda), a sabedoria, representada por um feixe de luz que chega por uma fresta, se opõe à ignorância, representada pela escuridão do ambiente. No Gênese, “Deus disse: faça-se a luz! E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa. Deus separou a luz das trevas. E à luz Deus chamou dia, e à treva, noite”. Vem daí que, para nós, é muito forte a ideia de que é na claridade do dia que estão as virtudes, o trabalho, o amor puro. Na escuridão da noite vivem os vícios, a bebida e a devassidão. Na luz os anjos, na treva o demônio. Uma mãe “dá à luz” uma criança, significando que, numa doação dela, com o parto, aquele novo ser deixa as trevas em direção à claridade, à vida. A escola filosófica que é a mãe do mundo contemporâneo, o Iluminismo, via na razão a fonte da iluminação. O Iluminismo, não por acaso, surgiu num tempo que ficou conhecido como “século das luzes”. E a lista poderia seguir, indefinidamente, viajando pelo mundo e pelos tempos, lembrando povos que tinham no Sol sua principal divindade, ou os ateus contemporâneos que se autodenominam brights (brilhantes).

Não é preciso ser um prodígio de perspicácia para perceber que, para quase todo mundo, luz é sinônimo de sabedoria, felicidade, bondade; e treva, de atraso, burrice, maldade. A unanimidade acaba quando se trata de decidir o que é luz e o que é treva. Conforme o grupo e a crença, os sentidos são, às vezes, o exato oposto. Às vezes a luz é Deus, outras vezes ela é a razão. E, conforme torça os argumentos aqui e ali, você pode transformar qualquer coisa em luz e qualquer coisa em treva. Seja qual for o significado atribuído à luz, os usos e os abusos da palavra aconteceram na mesma proporção. Já se matou (muito) em nome da luz e da razão e já se usou (muito) o argumento de “tirar alguém das trevas” para conquistar, destruir e escravizar. Luz demais, poderíamos dizer, leva à cegueira.

O Haiti é um bom exemplo. Já foi um dos países mais ricos das Américas, e hoje é um dos mais pobres e inviáveis do mundo. Fez sua revolução, no começo do século 19, baseado nas Luzes (OK, com uma pitadinha de vodu). Os escravos se rebelaram, mataram ou expulsaram os fazendeiros franceses, derrotaram um exército enviado por Napoleão e fizeram história. Foi como se Palmares tivesse conquistado o Brasil, expulsado os portugueses e libertado negros e índios. Os revolucionários haitianos eram tão fortes que apoiaram, abrigaram e armaram Simón Bolívar. E, depois, ainda baseados nas Luzes, permitiram que um de seus líderes se tornasse imperador, construísse um enorme palácio com o nome de Sans Souci (copiado do lar homônimo do rei Frederico, o Grande, da Prússia, o mais iluminista dos soberanos), reescravizasse quase todo mundo e desse início a um desastre ecológico que não parou até hoje. Alguém falou em Luzes?

Palavras abstratas

A melhor coisa, com as palavras que permitem muitas abstrações, é desconfiar delas. É não deixar que elas ganhem uma aura sagrada e intocável, mesmo quando o sagrado for o sagrado dos ateus. É por isso que eu tenho um pé atrás com o politicamente correto, com os assuntos proibidos, com o “cuidado com o que diz”. Que não gosto de palavras como “avanço” (só serve pra marca de desodorante), “progressista” (o contrário de passadista?), “novo” (se você não souber como elogiar algo, diga que é novo) ou “povo” (quem é ele? Ele pensa? Ele fala?), que, como “luz”, podem ser usadas sem compromisso, sem cerimônia, à vontade. Sim, valham-nos os baladeiros, vamos queimar as luzes, acender a treva, e... chega!

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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