Um herói escocês na Amazônia

A escola criada por Paul Clark no alto Rio Negro alfabetiza crianças e chacoalha a vida de uma comunidade ribeirinha

por Henrique Skujis em

Paul Clark é uma espécie em extinção. Para dedicar a vida a uma causa gigante e invisível, trocou a gelada, cosmopolita e populosa Glasgow, na Escócia, pela abafada, microscópica e deserta Gaspar, no Amazonas. De mãos dadas com a mulher, a italiana Bianca Bencivenni, o escocês criou uma escola de ensino fundamental nos confins da floresta amazônica, no meio do nada.

O escocês tem a floresta refletida nos olhos verdes e esculpida no corpo magro e forte. Quando fala – voz grossa e mansa –, é enfático, preciso, decidido. As rugas enganam a idade. Gosta de caminhar descalço, com as barras da calça dobradas na altura das janelas. Nos lábios, sempre um cigarro – mesmo após o enfisema e o infarto que quase o fulminaram dias antes do último Carnaval. Não larga uma garrafa térmica com café. A caneta fica pendurada na orelha. Os óculos, no pescoço. É frenético. Anda muito. Fala. Gesticula. Ensina.

Paul Clark durante uma aula na escola Vivamazônia - Crédito: Henrique Skujis/Acervo Trip

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O casal pousou no Brasil pela primeira vez em 1984. A passeio. Voltaram no ano seguinte. Chegaram a flertar com um negócio turístico para ganhar a vida na comunidade de Xixuaú. Desistiram. Em uma nova visita, em meados dos anos 90, um caboclo, tão paciente e anfitrião nas primeiras lições em terras selvagens, pediu aos gringos vindos do norte do planeta que ajudassem na alfabetização dos filhos. Paul e Bianca toparam. Ensinavam inglês, matemática e o que sabiam de português e da vida para quem quisesse aprender. “No começo, eles é que ensinaram tudo para nós. Muitas crianças nunca tinham visto um livro, mas sabiam o nome de centenas de espécies de peixes e plantas”, lembra-se Paul.

À época, a escola da comunidade de Itaquera, a 15 minutos de barco do Gaspar, estava largada. O poder público, sabe-se, nunca deu bola para essa bobagem chamada educação. Paul e Bianca levaram a brincadeira de ensinar adiante. Em 1998, quando a história começou a ficar mais séria, passaram a sacola entre amigos italianos, aproximaram-se das mentes e corações mais abertos da comunidade e, assim, materializou-se o improvável: em uma palafita a beira do rio Jauaperi, no meio do nada, na divisa entre Amazonas e Roraima, estava criada por um escocês e por uma italiana uma escola para alfabetizar e educar brasileirinhos.

Com auxílio dos alunos e sem verba ou apoio governamental, precisaram desenvolver livros didáticos e um método próprio de ensino, baseado na pedagogia construtivista, com uma boa pitada de holismo e muita natureza. “Foi necessário produzir um material, porque o livro de ciências, por exemplo, usava a Groenlândia para falar da importância da água”, revela Paul, com a irreverente ironia britânica.

Barco transporta os alunos da escola Vivamazônia, no Amazonas, para a comunidade de Itaquera, em Roraima - Crédito: Henrique Skujis/Acervo Trip

Duas décadas de batalha

Centenas de alunos vindos da comunidade de Itaquera passaram pela escola do escocês, batizada Vivamazônia. No currículo, língua portuguesa, inglês, matemática, geografia, história, arte e muito meio ambiente. E é aí que mora o perigo. Paul bate de frente com uma cultura predatória. Se os filhos aprendem sobre a importância óbvia da preservação, muitos pais ignoram tal consciência – ou tem outra visão sobre a floresta. Peitam o escocês, que, sem dar corda ao assunto, conta já ter apagado incêndios criminosos e escapulido de duas ameaças de morte. “O fato de um gringo comandar a escola e lutar contra a pesca predatória incomoda cegos que tratam a floresta como pura mercadoria.”

Paul é vice-presidente da Associação dos Artesãos do Rio Jauaperi (AARJ), presidida pelo amigo Francisco Lima, piloteiro da barca que transporta as crianças entre Itaquera e Gaspar e cujas seis filhas estudaram na Vivamazônia. Além de fazer jus ao nome, a associação luta contra a pesca predatória e toca um projeto de proteção de quelônios. Com apoio da Katerre – agência de viagens do empresário paulistano Ruy Carlos Tone, Paul capitaneia a coleta de ovos de quatro espécies – iaçá, irapuca, tracajá e tartaruga da Amazônia – em seis praias, de quatro comunidades: Gaspar, Itaquera, Samaúma e Xixuaú.

Paul Clark na visão de um de seus alunos na escola Vivamazônia - Crédito: Henrique Skujis/Acervo Trip

Os moradores engajados no projeto recebem salário para monitorar as praias e ganham R$ 3 por ovo coletado e cuidado. Em 2014, a equipe do escocês recolheu 2.339 ovos e por eles zelou até o nascimento dos filhotes, soltos pelos alunos nas águas do Jauaperi. Em 2015, o número de ovos encontrados e salvos caiu para 1.662. Em 2016, para 1.212. E em 2017, para pouco mais de 600, um indício de que, a despeito dos esforços da comunidade, o bicho pode estar a caminho da extinção, ao menos neste trecho do rio. 

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Paul Clark nasceu 60 anos atrás, filho de um pai editor de livros e de uma mãe que também amava a leitura. Passava férias na casa da família na Toscana, região central da Itália. Para estudar literatura francesa, mudou-se para Florença, também na Toscana, onde foi corretor de imóveis e conheceu Bianca.

Nesse período na Amazônia, tiveram dois filhos  – Yara, 21 anos, e Ian, 12, dois loirinhos em meio aos caboclos –, totalmente enturmados e convertidos ao “amazonismo”. “Ter filhos na Amazônia foi a melhor escolha que fizemos na nossa vida”, diz Bianca. Os irmãos remam, pescam, nadam e vivem como se o DNA europeu fosse só aparência. Em fevereiro, quase perderam o pai. Como já escrito acima, o escocês foi ao chão às vésperas do Carnaval quando seus alvéolos acusaram o golpe de uma vida com doses cavalares de fumaça. Ao enfisema pulmonar, seguiu-se um infarto, que não exigiu cirurgia, mas o colocou de molho e sob cuidados médicos em Manaus. 

Paul Clark e Ruy Tone, empresário paulistano e colaborador da escola Vivamazônia - Crédito: Henrique Skujis/Acervo Trip

Se tivesse batido as botas, teria perdido o anúncio da notícia pela qual lutou com força nos últimos 16 anos. Dia 5 de junho, depois de incontáveis dribles do governo, da resistência de parte dos moradores e das já citadas ameaças de morte, Paul comemorou a criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi. Era uma de suas maiores demandas desde que fincou raízes na floresta. Ao lado de Francisco, o escocês liderou audiências públicas, escreveu cartas de próprio punho, coletou assinaturas e bateu de frente com adversários. “O mérito é da AARJ, mas é uma vitória pessoal do Paul”, diz Ruy, que acompanhou o processo de perto.  

A nova reserva tem 580 mil hectares – quase quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo – distribuídos entre os municípios de Rorainópolis, em Roraima, e Novo Airão, no Amazonas. Nesta imensa área, agora protegida por lei, são encontradas espécies de peixes ornamentais e comerciais, como surubim, tucunaré, barbado e piranha. Há cerca de 42 espécies de mamíferos, entre elas, onça-pintada, onça-parda, jaguatirica, ariranha, tamanduá-bandeira e tatu-canastra. A área é lar de 150 famílias, que vivem da pesca artesanal e da extração de castanha. “Educação mais preservação é igual a progresso”, crava Paul, aliviado com a conquista, mas ciente dos limites do seu heroísmo.

Dia desses, o escocês viu uma tartaruga amazônica, daquelas de quase um metro de comprimento, ser capturada e colocada de ponta-cabeça na beira da trave de um campo de futebol para virar prêmio de um torneio de cobrança de pênaltis. “As famílias e a cultura são influências muito mais fortes do que as nossas. Precisaríamos de 20, 50 escolas como a Vivamazônia para pensar em uma pequena revolução cultural. Mas acredito que, ao enriquecer cada casa, cada família, cada criança com educação, estamos semeando essa revolução.” 

Paul nas telas

A história da Vivamazônia virou documentário em curta-metragem (abaixo), produzido pela Bossa Nova. O filme foi lançado no dia 13 de agosto na abertura do show de Milton Nascimento no Teatro Amazonas, em Manaus. Paul e Bianca foram chamados ao palco e receberam as devidas homenagens na voz do próprio artista.

 

Vai lá

Para visitar a Vivamazônia, entre em contato com a Katerre. A agência organiza anualmente um roteiro de barco entre Novo Airão e a Comunidade do Gaspar. A viagem coincide com a soltura dos quelônios no rio e inclui interação das crianças locais com os visitantes – é, portanto, ideal para viajantes de todas as idades. Os pernoites são a bordo do Jacaré-Açu, embarcação de madeira extremamente confortável e aconchegante, com oito cabines climatizadas, e todas as refeições incluídas. www.katerre.com

Créditos

Imagem principal: Henrique Skujis/Acervo Trip

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