O presidente da Central Única das Favelas (CUFA) fala da influência do rap, desigualdade e impacto da pandemia na periferia
Foi na favela das Quadras, no bairro de Aldeota, em Fortaleza, que Preto Zezé trilhou o caminho que o levaria a ser um dos mais importantes ativistas na luta contra a desigualdade social. Lá, aos 12 anos, ele tomou uma decisão muito comum aos jovens que ali moravam: largou os estudos e começou a trabalhar, lavando carros, para ajudar a melhorar a renda da família. Uma realidade dura, mas que também lhe trouxe munição para um dia se tornar presidente da Central Única das Favelas, a Cufa.
Viver em meio à cultura de rua – da pichação, dos bailes funk e, principalmente, do rap – abriu seus olhos para uma questão até então nebulosa em seu pensamento: o que significa ser preto no Brasil. “A música ajudou a transformar o ódio em indignação", diz. E se o ódio paralisa, como conta, foi a indignação que o fez lutar pelo próximo.
Com um discurso claro e calmo pelo qual é conhecido, Preto Zezé contou ao Trip FM sobre o papel de sua mãe em mantê-lo fora do crime, o impacto da pandemia nas favelas e o que o dinheiro significa para ele. Ouça o programa no Spotify ou leia um trecho da entrevista a seguir.
Trip. Eu vou começar falando da dona Fátima. Eu sei que a história dela vai além do orgulho que ela tem hoje por você. Quando você era moleque, ela teve um papel importante em segurar a sua onda. O que ela fez?
Preto Zezé. Naquela época a gente tinha ânsia pela rua, um lugar sempre muito atraente, onde ficavam os caras mais comentados, que tinham os olhares das meninas mais bonitas, os melhore panos – as roupas, como diz a gíria. Tudo era símbolo, maneira de sair da invisibilidade. Os indivíduos da favela nunca são percebidos. A busca por visibilidade é muito insana. O que foi interessante foi que a minha mãe soube orientar como navegar esse labirinto.
Você deu uma entrevista emblemática para o Roda Viva. É um jeito de olhar para as coisas que você não vê geralmente na televisão. Você diz que no Brasil não se nasce preto, se descobre preto. Quando você se descobriu preto? Descobri entre 15 e 16 anos de idade. Hoje eu tenho 45. O rap ajudou muito. Foi uma época de adrenalina e revolta incontida. O rap ajudou a controlar e até politizar essa revolta. Hoje você já tem um avanço maior, mas naquela época existia uma falta de referências positivas para a constituição saudável de uma identidade negra. Você tinha apenas o rap: um veículo de informação, lazer e denúncia e que ajuda também nessa história da identidade do negro, da releitura da história a partir de uma perspectiva racial. Aí é difícil ficar ileso porque você descobre todo o processo do racismo à brasileira, que muita gente assume que existe, mas ninguém assume que pratica.
Fale um pouco sobre essa história da música organizar o ódio na sua cabeça. O que é isso exatamente? O que surge quando você descobre que é negro, quando compreende as origens da desigualdade, compreende o que causou tantas privações, como a de esperar comida de lixo de supermercado, de brigar pelo produto que venceu há menos tempo, é uma erupção de revolta, de ódio, e o rap ajuda a segurar a onda. O rap ajuda a construir o discurso, a fazer dessa revolta uma agenda para que isso se desdobre em ações práticas para reverter essa realidade. À medida que você entende isso tudo, surge um elemento do ódio que é importante porque ele se transforma em indignação. A indignação é um processo permanente de mobilização contra as injustiças. O ódio, na verdade, se você não tomar cuidado, ele vai imobilizar.
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Imagem principal: Raquel Espírito Santo