Maestro Júlio Medaglia: A música é a matemática das artes

por Redação

Regente das mais renomadas orquestras do Brasil e da Alemanha, o maestro fala ao Trip FM sobre a versatilidade da música e da importância do incentivo à cultura

"A música é a mais racional das artes", diz o maestro Júlio Medaglia. “Na pintura existe mais subjetividade. O cara tira ou põe um pouco de amarelo, apaga ali, e pode ficar bonito e dar prazer. Mas na música, não. Se você colocar um oitavo de segundo depois já desarma com o esquema”. Fundador da Amazonas Filarmônica, o maestro regeu as orquestras mais importantes do Brasil e da Alemanha e foi aluno de Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, John Barbirolli e Hans-Joachim Koellreutter

Surfando com versatilidade na música, além do seu lado erudito, colaborou para uma das obras-primas da música popular brasileira, assinando os arranjos de Tropicália, canção de Caetano Veloso que marcou o início do movimento tropicalista. Eram tempos, lembra o maestro, em que as rádios reproduziam músicas que não pertenciam ao circuito comercial e a televisão abria espaço para a música erudita. Fora do universo musical, o maestro Júlio Medaglia escreveu mais de 500 artigos e 5 livros, o que o levou a ocupar a cadeira número três na Academia Paulista de Letras, que já pertenceu a Mário de Andrade. “Eu me encantei muito com o poder semântico da palavra. A palavra é feiticeira, é uma bomba”, conta. 

Aos 82 anos, ele é responsável pelo programa Prelúdio, concurso musical para instrumentalistas da TV Cultura que recebeu o prêmio de melhor projeto cultural da TV brasileira. O maestro bateu um papo com a Trip sobre música erudita e popular, a solidão dos artistas e a falta de incentivo à cultura no Brasil.

Trip. A gente admira muito as pessoas que surfam, que conseguem obter prazer e ao mesmo tempo influenciar as mais diferentes praias. Você se mudou para Salvador muito jovem, depois foi para a Alemanha, para a Amazônia, para Brasília, navegando em mundos musicais muito distintos. Um dia você está fazendo trilha de cinema, preparando um especial da Globo, no outro está escrevendo um livro ou regendo uma orquestra para milhares de pessoas no meio da rua. Essa mobilidade intelectual é fascinante. De onde vem essa inquietude?

Maestro Júlio Medaglia. A minha aliança com a música foi acidental. Na minha família ninguém é músico. Meu pai vendia peças de automóvel importadas, minha mãe era costureira da alta sociedade de São Paulo e minha irmã trabalhava numa empresa química. Mas um dia apareceu uma empregada lá em casa, que morava no interior de Minas, e na mochila ela trouxe um pequeno violino, para criança. Eu passei a brincar com aquele instrumento e, certo dia, numa corda só, eu consegui tocar Noite Feliz e comecei a me encantar com aquela sonoridade. A minha mãe se deu conta que tinha uma prima de segundo grau que tocara violino e ela começou a me dar aulas. E comecei a tocar com orquestras amadoras, até que me encontrei com professor alemão Koellreutter, que morava em São Paulo. Ele iluminava nossa mente com ideias, filosofias, exposições, provocações culturais, e eu comecei a me encantar não só com a música, mas com todo aquele arcabouço cultural gigantesco. Na realidade a música é fruto de um monte de coisas sociais, políticas, étnicas e éticas e, com isso, eu fui me interessando por outros campos dentro do universo sonoro e cultural. Consegui uma boa bolsa de estudos do governo alemão e me formei na Universidade de Friburgo como regente sinfônico, mas o Brasil me chamava.

Naquela segunda metade da década de 60 tinha a bossa nova, os festivais na TV Record, que eram verdadeiras loucuras em termos de geração de uma nova turma para a música brasileira de primeira qualidade. Nessa época comecei a estudar e a escrever também as trilhas sonoras para peças de teatro. E aí quando eu fiz uma para Cacilda Becker e Walmor Chagas, uma peça de teatro chamada “Isso devia ser proibido”, tinha lá um baiano que tinha chegado de Salvador e me pediu para fazer um arranjo da música dele, que “talvez vá se chamar Tropicália”. Aí nascia a minha relação com o Caetano [Veloso]. O arranjo acabou propondo uma série de novas soluções, de falas no meio, ruídos de pássaros e assim foi.

Eu fui ampliando o meu universo de relacionamentos e de atividades também. Comecei a escrever no jornal O Estado de S. Paulo, escrevi uma história da bossa nova e a história da música do século XX. Eu me encantei muito com o poder semântico da palavra. A palavra é feiticeira, é uma bomba. Abrindo meu leque de opções culturais e fui parar nos Estados Unidos a convite do Conservatório de Boston, criei uma orquestra no teatro maravilhoso que existe em Manaus, fui convidado para dirigir o Theatro Municipal em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Teatro Nacional, em Brasília. Fui me deslocando de uma cidade para outra, de um universo para outro, mas sempre mantendo esse espírito de não só fazer música, mas ser o animador cultural, porque no Brasil precisa ter essa função educativa. Eu espero ter cumprido alguma coisa nesse sentido.

Essa vida nômade que você acaba de relatar, riquíssima do ponto de vista profissional e cultural, muitas vezes gera certas disfunções na vida pessoal. Ela foi atrapalhada por essa riqueza profissional? No fundo o artista é um grande solitário. Você está regendo um grande concerto, na grande sala, com uma grande orquestra e, quando acaba, você vai para o hotel e fica sozinho, quietinho lá assistindo televisão. Aí o táxi te leva, você está outra vez sozinho, em outro hotel do mundo. Existe esse conflito entre a solidão e a coletividade, mas isso faz parte da coisa. Minha mulher é alemã, eu casei na Alemanha e ela veio para o Brasil. Eu tive a sorte de ter uma pessoa que compreendesse essa vida nômade e isso nunca atrapalhou, felizmente, nosso relacionamento. Eu estou o tempo todo viajando, mas isso faz parte da vida do artista. O artista que tem que estar onde o povo está, como diz o velho Milton Nascimento.

Quem é leigo tem uma noção, vê a figura do maestro cuidando da harmonia ali, daquele grupo de música. Mas como é que uma pessoa resolve ser maestro? O que é ser maestro? O maestro, com os dedos e sua energia pessoal, transfere a técnica e a emoção que ele tem na mente. A dificuldade maior é passar suas ideias, a sua emoção e sua concepção artística para 80 pessoas. Exige um bom tempo de estudo, de trabalho e amadurecimento para você se relacionar com essa comunidade, essa grande empresa chamada orquestra. Você está à frente de um time de primeira, se você vacilar está perdido. A regência é aquela que exige o maior número de matérias, harmonia, contraponto, fuga. E conhecer muito bem todos os instrumentos, senão você não pode chegar para um flautista e dizer: “Faça isso”. Depois do domínio deste gigantesco arcabouço técnico, aí começa um relacionamento com a parte artística, cultural da música. Depois o seu relacionamento como o líder de uma comunidade, porque você tem que passar através de um gesto de mão, às vezes muito simples, toda a concepção de uma grande sinfonia. Então de fato é uma profissão complicada, exige muito esforço, conhecimento e talento. 

O que a gente mais ouve são queixas da falta de reconhecimento, da falta de estrutura, da falta de condição para trabalhar nessa área. Nesse momento então, nem se fala. Maestro ganha dinheiro ou são só dois ou três e o resto fica na pindaíba? A seleção é mesmo muito rigorosa, mesmos nos países do mundo que têm muita atividade orquestral. Existem maestros que são muito bons, mas falta um pouco de talento para determinadas coisas e não chegam a ocupar cargos importantes. Mas aí ele presta serviço de outra maneira: cria orquestras jovens, prepara novas gerações ou então vai dar aula de regência. Na Alemanha tem 80 casas de ópera e cada uma delas troca a ópera toda noite, como o projecionista do cinema troca a bobina do filme. No Brasil existem muito poucas orquestras, as excelentes são só três ou quatro. Então de fato é muito complicado profissionalmente sobreviver com essa profissão. Tive a sorte de encontrar um caminho e poder dirigir algumas boas orquestras do país. Não posso me queixar.

Tem uma entrevista sua ao saudoso Abujamra em que você fala que a música é uma ciência exata. Tem até uma frase que é: “A música é alma da geometria”, alguém disse isso. E você descreve uma partitura como sendo equações, aquelas que tem milhões de sinais, números e algarismos. Me explica um pouco esse aspecto da sua visão sobre a música. A música é a mais matemática das artes. Quando você imagina uma orquestra tocando, eu faço ‘pá’ e nesse acorde, que durou um oitavo de segundo, vinte músicos fizeram juntos. Como é que eles fizeram juntos? Eles têm uma sensibilidade para aquela geometria musical montada que faz com que, quando o maestro faz um sinal, eles saibam onde entrar. Mas no ‘pá’ teve um trompete que tocava um 'Lá', este 'Lá' tinha 444 vibrações, porque se tiver 400 vibrações já desafina. A própria formação da orquestra, como os músicos se entrelaçam, cada um jogando com seu código matemático na frente, quer dizer, ela é a mais racional das artes. Se você ver as obras de Bach, tem todo um relacionamento acústico, melódico, harmônico e rítmico, que é um projeto de uma arquitetura, uma arquitetura sonora complicadíssima. Na pintura existe mais subjetividade. O cara tira ou põe um pouco mais de amarelo ali, um vermelhinho ali, apaga aquilo ali e pode ficar bonito e dar prazer. Mas na música, não. Se você colocar um oitavo de segundo depois já desarma com o esquema. Então toda a orquestra funcionando é um grande computador que provoca emoções. 

Você trabalhou com Caetano Veloso, Jards Macalé e outros artistas populares de alta qualidade. Existem pessoas como você, que têm o privilégio, o talento e a condição de estudar com os melhores do mundo, mas tem também gente que de repente sai tocando ali e tem um outro tipo de talento, faz coisas que também mudam o mundo. Onde é que está a linha que separa o artista popular que não estudou, mas que é capaz de produzir emoção, e o pessoal que produz porcaria enlatada e que hoje tem facilidade para espalhar isso pelo planeta? Na realidade o talento musical é uma coisa espontânea e vem das profundezas da alma. O Cartola não estudou em nenhuma universidade, ele limpava automóvel, morava numa favela, mas desenvolveu essa musicalidade, espontaneamente, sem estudar teoricamente a música. Então existe a música extremamente elaborada, aquela que você faz com orquestra sinfônica, em sinfonias, concertos, óperas, e existe a música espontânea, que tem poucos elementos, mas pode ser extremamente rica. O Jobim não fez uma música com uma nota só? Se repete 50 vezes a mesma coisa e, quando ouve, o mundo inteiro cai de joelhos. "Águas de Março", repete duas notas 50 vezes e o Leonard Feather, que é o maior crítico de jazz dos EUA, diz que é uma das 15 maiores melodias do século. Existe essa sensibilidade, esse talento feiticeiro que alguns tem – o Jobim tem, que Mozart tem, que o Cartola tem. Ser popular não quer dizer ser inferior à música erudita. Agora, evidentemente, tanto na área da música sinfônica, super elaborada, como na da música espontânea, tem muita porcaria. Tem muita gente que tem conhecimento técnico que faz porcaria. Tem gente que não tem conhecimento técnico nenhum e faz jóias como essas.

Eu já vi você falando que a televisão não põe mais música e que a rádio está a serviço dessa indústria que você qualifica como "essas porcarias enlatadas". Por outro lado, você vê a distribuição da música facilitada hoje por plataformas digitais. Quer dizer, o artista que tem alguma coisa para mostrar não precisa bater na porta de uma gravadora ou da rádio. Por que é que a televisão se divorciou da música? A gente está melhor ou pior na nossa capacidade de dar acesso ao talento? Infelizmente a boa música saiu da televisão. Nos áureos tempos, a música era mais da metade da programação. Grandes nomes da música brasileira que nós temos até hoje em nossos corações vieram do rádio e da televisão. Dos anos 70 ou 80 em diante o artista ia bater na porta das gravadoras e, depois de algum tempo, as gravadoras começaram a pagar para pôr no ar a música. E as televisões aceitavam isso, davam nota fiscal, assim como põe uma garrafa de Coca-Cola no ar numa novela. Pode ser uma música maravilhosa, pode ser uma porcaria, você paga vai para o ar. Então a boa música desapareceu do rádio e da televisão, e perdeu esse aspecto de revelação da musicalidade espontânea do povo brasileiro, que é riquíssima. Nós fizemos a melhor música popular do mundo durante muito tempo. Essa música ainda existe. O próprio Macalé, que você citou, mas você não vê esse pessoal no rádio. O próprio Caetano, o Gil, que são os mais famosos compositores da atualidade, eu não vejo esse pessoal na TV Globo, na Record. A indústria da comunicação transformou a música popular num objeto mercadológico muito rápido, muito ágil e muito veloz – para vender logo e o cara comprar, gostar, depois jogar fora e comprar outro. Nesse sentido, a música popular brasileira está submersa num mar de mediocridade, infelizmente.

A Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tem a Sala São Paulo como uma espécie de templo, e os assinantes, uma espécie de sócios, pagam para ter acesso àqueles concertos semanais. E também há iniciativas como a Orquestra de Heliópolis, numa comunidade de periferia. Essa música, da qual o senhor é um dos grandes pilares aqui do Brasil, está a serviço da democratização? Ela vive ainda desses feudos de marajás que se reúnem em salas exclusivas? Qual é a da música erudita? O que tem acontecido de muito bom no Brasil ultimamente é que várias empresas estão se dando conta que elas têm que ter um relacionamento com a sociedade. Há inclusive leis que facilitam isso no Brasil, além da Lei Rouanet. Agora o governo está querendo acabar com ela, e é uma sacanagem. A Lei Rouanet recebe 0,4% dos bilhões que o governo dá para companhias de automóveis, para empresas que fazem outros produtos, e estão querendo acabar com esse mínimo, como se artista fosse bandido ou não soubesse como usar o dinheiro. Nos Estados Unidos não precisa de incentivo fiscal, porque o norte-americano se deu conta que investir em projetos culturais valoriza a sua marca ou empresa. Então a coisa virou ao contrário: hoje, o cara que não se relaciona com a comunidade em projetos dessa natureza está por fora e é discriminado na sociedade. Esse caso você citou de Heliópolis é maravilhoso. Começou com o padre Bacacheri ensinando crianças, a Votorantim colocou dinheiro, a Petrobrás também, e criou-se uma orquestra sinfônica maravilhosa, feita pelos filhos dos meninos da favela, que foram para a Alemanha tocar na cidade onde nasceu o Beethoven e povo aplaudiu de pé. Ou seja, a música salvou a criançada da droga que existia na região. Então existe esse poderio feiticeiro, positivo da música, pelo qual algumas empresas agora estão interessadas em financiar projetos desse tipo, que usam a música como elemento de inserção social para jovens de periferia. Isso a música consegue fazer e as empresas que investiram nesses projetos não se arrependerão.

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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