A editora da Companhia das Letras Vanessa Ferrari conta o que aprendeu nos clubes de leitura em prisões de São Paulo
Quando o escritor sul-africano J. M. Coetzee, representado pelo seu romance Desonra, encontrou pela primeira vez o grupo de leitoras da Penitenciária Feminina de Santana, entendi que não seria exagero pensar numa revolução literária no país.
Três anos haviam se passado desde o primeiro clube de leitura que ajudei a organizar, com Dois irmãos, de Milton Hatoum, e que se seguiu com livros-reportagem, contos, romances estrangeiros, quadrinhos e clássicos da literatura. Essas moças, que uma vez por mês se reúnem para uma conversa sobre livros, deram o caminho das pedras para a formação do leitor e obrigaram os mediadores a repensar as máximas em que o senso comum se apoia com tanta propriedade.
Olhar para esses encontros como exceção, porque elas estão presas e por isso são “leitoras especiais”, seria um erro terrível. Ser condescendente ou autoindulgente, no módulo “vejam como sou boa, como faço o bem”, também seria uma tragédia. Elas hoje estão presas, mas no passado viveram a precariedade escolar num ambiente social em que a literatura é a última das preocupações. Ali, bem a nossa frente, topando os desafios, abraçando a diversidade literária com alegria e afiando a capacidade crítica, está o retrato de quase todo o país.
Este ano, em parceria com a Funap, os clubes chegaram a mais oito penitenciárias no estado de São Paulo, vinculando-os à remição da pena. E não foi só pelas páginas de J. M. Coetzee, mas também com livros de escritores como José Saramago, Raduan Nassar, Marjane Satrapi, Marçal Aquino e Juan Pablo Villalobos, aliados à combinação de informalidade, liberdade para não gostar de uma obra (independente do status do autor) e uma mediação que mais calibra do que se impõe, que em pouco tempo essa turma foi deslocada do conforto da autoajuda e dos pastiches dramatúrgicos da TV para as inquietudes da literatura.
Mais importante do que definir o papel da literatura em nossas vidas é a percepção de que basta oferecer alguma beleza no lamaçal da desigualdade para que as pessoas se agarrem a ela. Por isso, em vez de gastar energia para tirar da frente a nossa feiura social, poderíamos, de modo mais eficiente e prazeroso, oferecer a essa população alguma luz. Uma vez dada essa condição, aí, sim, podemos cobrar a fatura – e por enquanto, por uma inversão perversa, o credor está preso e quem está fora, bradando por justiça, somos nós, os devedores.
Vanessa Ferrari é editora da Companhia das Letras e mediadora voluntária do projeto de Clubes de Leitura Penguin-Companhia