Única finalista brasileira da categoria de Novos Diretores da 31ª Mostra Internacional de Cinema, a diretora do documentário Meu Brasil, Daniela Broitman, fala sobre a relação de movimentos sociais com políticos e o espaço da mulher no cinema naciona
Daniela Broitman tem os cabelos bem cacheados e castanhos. Tem também um sorriso e olhos de menina, e durante a exibição de seu documentário Meu Brasil na 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo parecia uma iniciante despontando rapidamente no cenário cultural nacional. A análise não está totalmente errada. Daniela está apenas em seu segundo documentário, mas não é tão inexperiente assim. Formada em jornalismo, ela ajudou a criar o caderno Zap! de O Estado de S. Paulo, que venceu o Prêmio Esso de Jornalismo em 1996. Seu primeiro documentário A Voz da Ponta – A Favela Vai ao Fórum Social Mundial, co-dirigido e co-produzido com Fernando Salis, ganhou o Prêmio de Excelência da Brazilian Studies Association. Meu Brasil já recebeu o Prêmio do Júri Popular de melhor documentário longa-metragem na mostra competitiva do Cinesul 2007 – 14° Festival Ibero-Americano de Cinema e Vídeo – e foi o único documentário brasileiro entre os cinco finalistas da categoria Novos Diretores da Mostra, vencida pelo filme Transformaram Nosso Deserto em Fogo, do diretor Mark Brecke. No filme, Daniela traça o perfil de líderes comunitários das favelas do Rio de Janeiro e as batalhas para melhorar a comunidade. A Tpm conversou com a diretora sobre o papel das mulheres no cinema nacional, violência e preconceito.
Tpm. O documentário Meu Brasil foi um desdobramento do seu primeiro filme A Voz da Ponta – A Favela Vai ao Fórum Social Mundial?
Daniela. Na verdade, o segundo é muito diferente, tanto tecnicamente como em termos de estrutura, edição, personagens. O primeiro não entra na vida de nenhum personagem, na questão do papel do líder comunitário. É sobre um grupo que vai ao FSM e, por isso, retrata muito mais o fórum do que o grupo em si. Mas passei a conhecer o papel do líder comunitário quando estava fazendo o primeiro documentário. Comecei a entender um pouco mais sobre a liderança e me deu vontade de conhecer a fundo vários líderes.
E como foi a busca por esses personagens? Você os encontrou por intermédio do seu primeiro documentário? Como era entrar na favela, conversar com eles?
Quando comecei a fazer esse projeto, não queria que tivesse muita ligação com o primeiro, que fiz com outra pessoa. Queria decidir do começo ao fim. Então, realmente comecei do zero com o Meu Brasil. Não contatei os líderes que eu já conhecia. Além de ONGs e comunidades, tive muita ajuda do Comitê Rio do fórum. Eles gostaram muito do meu projeto e a partir daí a gente começou a fazer essa parceria. O Comitê Rio tem mais de duas mil organizações, entre ONGs, sindicatos e associações, no mailing list deles. Então, por meio desses contatos todos fizemos uma primeira reunião em novembro de 2004. Na primeira seleção, onde expusemos o projeto, havia 70 líderes. Depois fizemos uma seleção baseada em alguns critérios: os que tinham menos condição financeira, os que nunca tinham ido ao fórum e, além disso, a pessoa tinha que participar de todas as oficinas de capacitação e direitos humanos que estávamos fazendo. A idéia não era só chegar ao fórum com um ônibus cheio de liderança que não sabia nem o que era o FSM e o que ia fazer lá. A intenção era que eles fossem para lá com algum objetivo e não fazer turismo.
Esse grupo de 70 líderes foi reduzido depois a 33. Desses que ficaram, você concentrou a história em apenas três – a Gaúcha, o Carlos e a travesti Juliana. Por quê?
A Juliana representa a discriminação sexual, o Carlos representa a discriminação social – ele tinha uma condição econômica confortável e, de repente, perdeu tudo que tinha – e a Gaúcha representa a discriminação racial. Além dessa questão da discriminação, eles têm idades diferentes e sexualidade diferente. Tem um homem, uma mulher e um travesti. Quis que todos os três fossem representados e não levar três mulheres ou três homens. Esse filme fala muito do respeito da diversidade. E eu queria mostrar justamente isso, a importância de você aceitar as diferenças e o outro.
No convite do filme tinha a frase “como surge um líder comunitário, sem vínculo com o tráfico e partidos políticos”. No documentário, essa questão é abordada rapidamente. Então, queria saber como você observou essa ligação.
Tem um momento no filme em que a Gaúcha fala para a comunidade: “Não deixa vir esses políticos aqui não, encher vocês de panfletos, camisinhas e chaveirinhos. Têm que trazer água, esgoto e luz”. Acho que é uma fala superimportante, porque está dizendo assim: “Olhem, não deixem políticos corruptos virem aqui e tentar comprar vocês. A gente tem que se unir e pedir o que a comunidade precisa”. Essa discussão é muito delicada O movimento social é heterogêneo, é muito importante eles terem a consciência de que não podem ser cooptados pelos partidos políticos, porque se você está querendo fazer o bem para sua comunidade não importa se você é do partido x, y ou z.
Em Tropa de Elite, é retratada uma ONG totalmente infiltrada por partidos políticos e pelo tráfico.
É uma discussão difícil. Os próprios líderes com quem trabalhei ficam na fronteira, quase caindo para lá e para cá. Ficam ali numa corda bamba, tendo que ter muito equilíbrio para não cair. A Ângela, oura líder comunitária, fala: “Quer dizer que se o político chegar lá oferecendo para ajudar aquela situação na comunidade eu não vou aceitar? Como eu faço?”. Entre eles mesmos tem sempre essa discussão: como fazer para ser um líder comunitário honesto e não aceitar ser cooptado por partidos? Não é uma coisa resolvida, não tem uma resposta pronta, um manual. Eles estão sempre muito inseguros em relação a essa questão.
Por que a escolha de fazer um filme falando de violência, mas sem mostrá-la?
Quanto mais a gente mostra violência, mais a gente ensina a fazer violência. Há opiniões diversas. Podem dizer que estão mostrando porque reflete o que acontece. Reflete, mas acho que você instiga também. Você mostra para jovens como fazer certas coisas. Violência brutal anestesia. Acho que falar da maneira que é falado no filme [Meu Brasil] me emociona muito mais do que mostrar um monte de gente baleada.
O que gera esse fascínio pela violência? Os filmes mais discutidos no Brasil, nos últimos anos, são Cidade de Deus e Tropa de Elite, famosos pelas imagens de violência.
Queria muito ter uma resposta. Acho que tem diversas razões. É o fato de serem filmes de grande orçamento. Talvez não tão grandes se comparados com filmes americanos, mas muito grandes se comparados com outros filmes nacionais. Megaproduções sempre atraem os olhos. Tem também a questão da adrenalina, de você querer uma diversão fácil e não ter que pensar muito. Esses filmes não abrem espaço para discussões.
O cinema brasileiro tem períodos em que algumas temáticas estão mais em alta. Como você vê isso?
Acho bem curioso, porque quando eu comecei a fazer o meu primeiro documentário Cidade de Deus estava saindo e foi uma grande retomada do tópico favela. Desde então, parece que esse tópico continua em alta. Eu não escolhi o tema porque está chamando a atenção do público. Escolhi porque me envolvi com os líderes. Queria entender por que tanta violência, por que eles são tão acusados e por que há tantos clichês e estereótipos em cima das pessoas que moram em favela. E os líderes comunitários são pessoas que têm papel fundamental na diminuição da violência. Eles estão lá cuidando de jovens, alfabetizando, mostrando outros caminhos, ensinando a cuidar do meio ambiente e a se prevenir em relação a Aids e DSTs. É uma grande contribuição para a paz. Foi por isso tudo que eu escolhi o tema.
O Brasil parece estar construindo sua história a partir do cinema.
Acho isso também. Alguns períodos da história ficariam perdidos se não fosse pelo cinema, como a ditadura, por exemplo. As gerações mais novas não têm a menor idéia do que aconteceu naquela época. É muito importante o cinema preservar e, mais do que isso, criticar.
Tropa de Elite, Cidade de Deus, Notícias de uma Guerra Particular, do João Moreira Salles, e o seu documentário Meu Brasil retratam um período recente, imediato, sem um certo distanciamento histórico, como é feito nas produções sobre a ditadura militar (1964-1985). Como é essa construção e como você acha que vai ser vista daqui a algum tempo?
Não sei se daqui a alguns anos o país vai estar um caos, espero que não, ou se vai estar mais tranqüilo em termos de violência. Eu acho que alguns acadêmicos e historiadores vão poder assistir e ver o que estava acontecendo na época. São instrumentos históricos e educacionais importantes. É incrível a quantidade de acadêmicos que têm interesse no meu filme. É uma maneira de eles verem a realidade.
Para você a escolha do “produto cinematográfico” documentário foi uma maneira de juntar o jornalismo e o cinema?
Totalmente. O cinema sempre foi um grande sonho. Quando eu estava fazendo jornalismo, queria muito fazer cinema também, mas não sabia exatamente o quê. Não queria atuar, queria escrever sobre cinema. Cheguei a prestar uma bolsa para um curso de cinema em Cuba, mas quando eu fiquei sabendo que eram três anos achei muito. E era complicado largar a faculdade para ir para lá, e o jornalismo era muito importante para mim. Acabei deixando essa idéia de lado. Quando fui fazer meu mestrado na Califórnia, fiz um curso de crítica de cinema. A partir daí minha paixão por cinema e documentário aumentou muito. Voltei para o Brasil equipada, certa de que era isso que eu queria. Também fiz ciências sociais por dois anos na USP, mas acabei parando. A sociais era uma grande paixão e ao longo desses anos eu percebi que o documentário era a grande fusão entre cinema, jornalismo e ciências sociais.
Você falou que estava muito encantada por estar entre os finalistas do prêmio da Mostra principalmente por ter poucas mulheres nesse meio. Existem poucas mulheres no cinema em geral ou apenas na direção?
Tem aumentado, mas na direção eu ainda vejo poucas mulheres, principalmente jovens. As mais velhas já estão conseguindo espaço, finalmente. Infelizmente, acho que o Brasil é muito machista. Eu vim de uma experiência nos Estados Unidos e o tratamento lá com a mulher é muito diferente.
Tem alguma diretora brasileira em que você se inspira ou tem admiração pelo trabalho?
Aí que tá. Conheço muito mais trabalhos de homens do que de mulheres. Tem a Kátia Lund, que fez Cidade de Deus com o Fernando Meirelles. Tenho minhas questões com o filme, mas a considero uma pessoa batalhadora e muito forte por trabalha nas favelas. Vi um filme da Lúcia Murat, Maré, Nossa História de Amor. É uma ficção, mas eu acho que a produção tem uma sensibilidade feminina interessante. Ele mostra uma favela sem muitos clichês. Gostei muito.